quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Elucubrações

O último raio de sol dos meus dias reflete sempre nas janelas de um hospital no centro da cidade onde estão nascendo e morrendo pessoas. É uma luz sobre a dualidade das coisas que principiam e acabam. Também um alerta de finitudes e recomeços. É uma notícia sobre este espaço de tempo entre dois sonos — o dia que existiu e existirá inteiro amanhã, melhor ou pior que tenha sido o hoje. E se a este lapso que tudo pinta de suas cores se pudesse questionar algo, diria: aceita que as coisas reverdecem e são fanadas, como o amor no poema de Drummond.

Nos dias nublados, é à lembrança daquele raio de sol em reflexo que eu me apego, por otimismo ou por um registro insistente e positivo da memória. Pintando a parede da minha sala de trabalhar feito elucubrações muito vivas do que é feito o equilíbrio entre os avessos. Um convencimento silencioso de que todas as coisas fluem como que para um oceano certo e imenso, com textura de destino.

As coisas fluem como água também naqueles dias de sol. E às vezes é como se, sabendo da energia a ser empreendida para nadar a distância desconhecida, o único jeito fosse sentar paciente no fundo do mar e não prender a respiração e não se debater e então deixar o sal corromper os buracos e a pele  e saber, depois de tudo, acordada em terra firme, que a água salgada também é matéria viva como a chuva. Feita dos momentos que não seriam completos sem o seu oposto (aquele raio de sol refletido nas janelas de um hospital onde renascem e quase morrem pessoas). Feita de afogar e de limpar.

Ninguém nasceu sabendo explicar direito a fotossíntese, mas ninguém pode estar ou se sentir vivo sem antes aprender a conviver com todas as fases dos seus ciclos.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Pirâmides

Nunca fui ao Louvre. Mas se me pego pensando na França agora me lembro dele antes até de me lembrar da Torre. É um fenômeno engraçado. Alguns monumentos me sensibilizam mais que outros, assim como as pessoas. Ficam na memória como um caco de vidro por baixo da digital do polegar. Pra ser honesta, eu não sei bem se o que eu espero de tudo não coincide com este despertar de alguma sensibilidade, mas eu acho que sim, e só às vezes me esqueço. Eu não entendo nada de engenharia ou arquitetura ou história da arte, então penso sempre apenas poeticamente no quase encontro entre a pirâmide convencional e a pirâmide invertida do Louvre. Eu sei sentir uma ponta apontada para a outra. É quase físico. Há uma catástrofe que esse encontro concreto poderia ocasionar, não fosse um ponto estar suspenso, que eu conheço muito bem. O antagonismo que representam, deixando um pequeno espaço para a comparação das forças diametralmente opostas que são capazes de simbolizar, dentro de mim e fora. Na reflexão se este contraponto entre a vida real e física, que possibilita toda a estrutura, e uma vida divagada, inventada e analítica, que na verdade complementa a primeira, encontra lugar no cotidiano ou só muito nos inícios. Talvez comparações como esta não sejam mesmo nada saudáveis, mas desde o princípio eu não pude evitá-las, dadas as circunstâncias. É no espaço vão entre ambas as pirâmides que eu penso quando imagino tudo que me falta agora e em tudo que sobraria na escolha oposta, e vice-versa. As pirâmides sempre me lembraram que as coisas se organizam em cima das que vieram antes, e isto pode soar como uma tábua de salvação. A pirâmide oposta, ao revés, invertida, que quase toca a outra, no Louvre, me lembra de todas as escolhas anti-intuitivas que eu não fiz por medo. De tudo que eu deixo pra trás quando eu fecho os olhos e as cercas. De tudo que me sufoca e de tudo que escolho não ser. A ideia do Louvre, viva na memória, lembra todos os lugares onde não fui e pessoas que não conheci. Quando olho de perto seu retrato, um palmo de distância, sei que é a representação de tudo que eu perco quando me entrego a outra coisa. Tocá-lo, ao alcance da mão, então, nem se fala. É como estilhaçar a minha taça de beber veneno para morrer aos poucos e de tédio. Em alguma medida, eu não sei bem por quê, a ideia do que eu não posso ser deixando de estar com ele me apavora, porque talvez seja só o que me falta.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Chave, flauta e alicate

Naquele dia em que conversávamos sobre traumas e carência, um amigo me disse que vivia uma fase terrível de ferida viva na qual os portões pareciam ter-se aberto e os demônios iam saindo todos, um por um, sem que ele conseguisse fechar ou mesmo lidar com eles. A impressão tenebrosa sucedia um período no qual ele esteve absurdamente apaixonado. Ainda que não fosse, o raciocínio era perfeito. Dizia muito sobre nós, sobre o tempo que gastávamos tentando reprimir todas as nossas inseguranças sem encará-las, sobre a intensidade que sempre emprestamos e às vezes não nos devolveram. Dizia tudo sobre os esforços que fazíamos, às vezes juntos, para conter as duas bandas altas e velhas de madeira escura desse castelo antigo onde é aprisionada toda sorte de monstros com a qual preferíamos não ter que lidar. Daquele jeito em que logo se vê que o pedaço de madeira atravessado não vai suportar a pressão de dentro. O dilema - e se digo dilema é porque não encontro palavra melhor - é que viver é se relacionar. E cada pessoa que passa pode ter a chave de uma cela, o alicate de uma corrente, a flauta de um animal peçonhento que foi abafado ou pretensamente domesticado dentro da gente. Cada pessoa que nos acontece pode ser o início do furo que vai fazer estourar uma represa inteira que gostaríamos de esquecer que existe, feita dos nossos sentimentos mais feios, bem líquidos. E não nos é dado saber que custo vai se compensar em cada benefício. A cada trauma nasce em nós uma promessa de não deixá-lo se repetir, uma certeza de merecer mais, uma ansiedade de não errar de novo. Só que não existe a menor possibilidade de conseguirmos passar totalmente em branco pela vida daqui pra frente. Ou de nos fecharmos, feito prisões perpétuas, para que os demônios deixem de transitar livremente. Ou de enclausurarmos nossa disponibilidade toda nas masmorras dos nossos medos de falharem conosco. Não existe a menor possibilidade. E, se existir, espero que um lembre ao outro de que para nós o atrito entre as forças de dentro e de fora sempre ensinou muito mais do que um portão hermeticamente trancado. Porque é só pelos portões bem abertos que todo amor, euforia e reciprocidade podem entrar.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Por conta própria

De passagem de volta quase comprada para o próximo desatino
Aérea
Como a minha cabeça
Eu me pergunto como estabeleci o teto dos voos que alcei.
Por que sempre teimo ir ver se estou na esquina
Se meu destino final está aqui, na esquina.
E se digo esquina quero dizer:
Esta espécie de encruzilhada.
Por que flutuo no conhecido, orbitando as falhas, no que já provei.
Por que evito deixar espaço para momentos como aquele em que não estava dizendo que não, e também não estava dizendo que sim, e de repente as pernas podiam estar cruzadas mais para dentro da mesa e eu me esticava para trás fazendo um quiz sobre tudo-menos-a-profissão. É muito mais íntimo do que beijar na boca. Também mais incauto. Mais frugaz: uma mistura de sagaz, frugal e fugaz. Talvez até mais eu.

Porque quero saber. Ter controle.
Estar bem informada sobre o que me acontece.
Como se pudesse engarrafar este líquido que me escorre entre os dedos, para conseguir contê-lo.
Mas sei que esta condição não se impõe para mim senão com o peso de uma escolha.
Se tento me equilibrar, digamos, sobre esta tábua de madeira em cima de uma bola, é como se a certeza de que vou pender para um lado ou para o outro qualquer hora, em franco desequilíbrio, esmagasse a mim e ao outro ao mesmo tempo e rápido.
Como abandonar esta neurose dualista?
Esta espera eterna por cair.
Talvez para isso precise fugir um pouco de mim.

De passagem de ida quase comprada para o próximo desatino
Aérea
Como a minha cabeça
Eu me convenço de que só assim saberei desobrigá-lo de ser completo
Só assim posso aprender a deixá-lo ir, quando for a hora:
Se antes houver aprendido a ir e a voltar
Por conta própria.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Eco [21]

Larguei as chaves em cima de uma peça de cerâmica em formato de folha cuidadosamente pensada para ficar ao lado esquerdo do aparador da entrada, ao alcance da mão, e o gesto produziu um barulho curto, mas estridente como um alarme. No centro da mesa, flores artificiais nos mesmos tons do quadro escolhido por algum decorador famoso que eu nunca vou conseguir pronunciar o sobrenome, embora a recepcionista tenha tentado me impressionar mais cedo abusando de todos os tês mudos e efes dobrados que compunham sua assinatura.
Precisei tirar os sapatos e arrancar as meias para sentir três passos de um tapete fofo até me debruçar no sofá com o corpo inteiro jazendo pesado, a cara e tudo, num material moderníssimo impermeável, como descobri chorando sobre ele uns minutos depois. Para tentar me por absorto daquele teatro de cafonices pretensamente cosmopolitas e lembrar quem eu era, fechei os olhos e respirei fundo, obrigando a cabeça a cavoucar algum pensamento distinto no meio de tantos comportamentos automatizados.
Veio logo um episódio de mais cedo, quando eu vi uma mulher dentro da piscina maior, tia ou instrutora, mãe não parecia, tentando ensinar a uma criança a ter coragem de mergulhar. Mas o menino não era capaz, por nada no mundo, de tirar as boias apertadas contra os dois bracinhos magros, repetindo toda vez o gesto de levar a mão ao rosto, o que impedia que se entregasse à experiência completa. A mulher dava em outro idioma as instruções doces e calmas de que ele podia confiar nela, de que ela ia segurá-lo, de que naquele lado ele ainda dava pé, e a criatura como que por instinto parecia não dar mesmo conta de se soltar todo contra a água. Quando finalmente achou que tinha conseguido, as boias ainda o continham na superfície segura dos que não se afogam nem molham bem a cabeça. Pensar nisso deitado no sofá àquela hora do dia teve pra mim o mesmo efeito que beber líquida como água e cloro uma dose cavalar de realidade pelo nariz.
Quando tornei a abrir os olhos, acomodei a cabeça e reparei num canto que estava escurecendo. Digo, não do sol se por. A parede estava escurecendo. Já era estranho estar num hotel como aquele, do outro lado do mundo, mas mais ainda ser surpreendido com uma trivialidade dessa depois de despertar da lembrança anterior. Eu tinha a nuca apoiada numa almofada enorme de qualquer cor em tons pastéis quando percebi que a tinta branca da parede começava a ter ranhuras naquela pequena parte do quarto, atrás da cortina, bem próxima ao teto. Talvez, pelas ínfimas dimensões da mancha, ela houvesse passado despercebida. Eu acho pouco provável que a administração do lugar fosse deixar um detalhe desse passar, se se ativesse a ele, o que me dá a impressão de que eu era o primeiro hóspede e, mais do que isso, o primeiro ser humano a notar que aquele fenômeno estava acontecendo ali.
É quando se percebe o mofo pela primeira vez que ele começa a existir. Canos se rompem, é claro, mas só depois do primeiro furo minúsculo que dá vazão ao que estava contido é que o estrago começa a ser feito. Do mesmo modo que a primeira partícula esverdeada que se aninha a uma segunda, quando notada, inaugura um mofo inteiro. Pode-se, antes, abrir bem as janelas, arejar o ambiente, dar a ele a luz do sol. Fazer um trabalho preventivo. Porque depois não há o que se possa fazer. Eu sempre quis ter essa sensibilidade de não deixar nada mofar, desgastar ou corroer. Lamentavelmente, faço parte daquele grupo que só se dá conta do caos quando ele já está instalado. A possibilidade daquela sensibilidade é toda perdida quando o primeiro ponto de fungo de mofo aparece, porque depois daí tudo é um receio imenso do lugar ser corroído de escuro antes mesmo que a gente possa dar o primeiro espirro.
Se penso naquele menino e na coragem que lhe faltou e me enxergo o mesmo covarde de quando tinha menos anos de idade e começava a descobrir o mundo fazendo cena e resistindo ao fundo, e acreditando que tudo devia ser perfeito e liso e limpo como a parede mais bonita do hotel mais caro que o dinheiro pudesse pagar, eu lembro que o medo de afundar e se afogar é um pouco como o medo de que seja tarde demais para conter os danos e manter as aparências. Idealizando a perfeição, eu também sei vestir as boias para nunca mais querer tirá-las. Mas eu estou exausto de tentar me convencer que qualquer amor é melhor do que amor nenhum, Laura. E uma verdade úmida como essa, quando é notada, já se infiltrou pelo quarto inteiro.

domingo, 20 de setembro de 2020

Resetar

E se as noites pudessem resetar os dias? E a gente acordasse podendo gozar sem remorso, levantar cedo, começar um exercício físico. Dizer não. Elogiar o pai. Assistir ao Pós-F da Fernanda Young num monólogo da Maria Ribeiro. Revigorar. De repente até tomar mais chá do que álcool. Ter uma parte muito importante do que a gente precisa ser sempre bem guardada. Acessá-la. Voltar a alcançar essa parte, nem que seja com a ponta dos dedos, no meio das costas. Tirar das coisas o peso que elas costumam ter. Depois tirar das costas essas mesmas coisas. Encará-las com respeito, sem essa do crânio de Shakespeare, pra não repetir os maus hábitos. Escolher largar um pouco as obsessões. Abraçar o caos sem alimentá-lo. Regando as plantas. Lavando a louça. Respeitando as fraquezas. Entender que a modernidade é relativa e talvez ela não precise ser perseguida. Respirar bem fundo e não sentir mais cheiro de naftalina. Olhar para o pé de hortelã e vir leve uma ideia de que a gente só vinga sem a parte morta. Para rir de novo. Para enxergar mais de perto as oportunidades descartadas por medo. Para permitir que muitos momentos leves como esse aconteçam sem anúncio. Olhar no espelho e perceber como é surpreendentemente lindo ter vindo ao mundo bem sozinha. E que a solidão é um caminho de ida e volta. E o quanto os caminhos de volta podem ser libertadores. E o quanto se reinventar não cansa. Recomeçar não gasta. E se a gente percebesse que é meio que isso que as noites fazem?

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Bem-entendido

Mencionei o episódio na terapia uma hora antes, depois de anos, e quase não acreditei quando aquela presença indigesta se materializou em linha reta entre a minha mesa e o balcão. Quase como se ele tivesse sido convocado mentalmente pela chefe do setor de arquivos das coisas mal resolvidas da minha cabeça para um acerto de contas que possibilitasse descartar os papéis mofados pelo tempo.
Se eu não tivesse ficado tão espantada, teria rido. Eu sou perdida nessas coincidências. Fico sinceramente interessada, mais até do que deveria, no que coisas como essa têm pra me ensinar. Quero saber que ponta ficou solta como um fio desencapado dentro do meu cérebro e o que eu ainda tenho pra aprender com isso. Eu me sinto obrigada a revisar a narrativa que emprestei aos fatos de época com os olhos de agora, para tentar converter aqueles incidentes num bem-entendido dentro de mim. É como uma espécie de compromisso na resolução dos meus dramas mais antigos.
Faz parte da vida interiorana, eu sei, a gente cruza o tempo todo com gente que deixou de fazer sentido e com quem teve que deixar de fazer, por aqui. Só que coincidências acontecem por instinto, sobrepondo-se à força do hábito. Comovem pelo espanto que causam intimamente no confronto com a lógica racional. São feitas de energias que não dominamos, embora tentemos.
E é porque essa mágica acontece dentro da nossa própria cabeça que coincidências assim podem se dar no fim do mundo, em Bangkok ou em Madrid. Numa estrada de chão a caminho do sítio, levantando poeira, cantando pneu, estourando garrafa, caminhando pelo rio. Naquele filme antigo do Tom Cruise. Ou na mesa desse bar, logo depois da sessão de análise. Pra quem se dispõe a reparar na justaposição entre dois eventos aparentemente aleatórios, o mundo é sempre um ovo.
Vendo-o daqui assim sentado, meio feio, meio cheio de graça, eu revivo as nuances daquela rejeição que me pareceu enorme  porque a primeira é sempre gigante  e sem querer eu me pergunto se não teria feito o mesmo estando no lugar dele. Passado tanto tempo e tantas histórias, ao custo de todas as vezes em que eu rejeitei os que vieram antes e depois, consigo perceber que não teve a ver só comigo. Há um motivo justo para que a lógica do não-é-você-sou-eu seja universal: é verdadeira.
Será possível que a memória da gente fabrique detalhes inteiros de uma situação e os repita incansavelmente, até o convencimento? Acontece para que de alguma forma nos lembremos de nós mesmos como vítimas, e isso facilite as coisas? Ou, nesse caso, será possível que eu tenha apagado uma conversa do HD e reescrito de próprio punho como todas as coisas se passaram, por conta dos eventos de depois? Será que agora o peso dessa honestidade ou de uma cantada barata têm a graça de uma coisa totalmente nova, diante da mulher que eu me tornei? Eu não duvido. Mas não deixo de ter medo de que essa minha disposição para pensar nas coisas dessa forma volte a fazer de mim ingênua. Medo de quebrar o espelho, de usar a palavra "livramento" e de tomar outro pé na bunda igual àquele primeiro. Como é que se exige um pedido de desculpas sete anos e dois drinks depois?

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Lacônico

Queria acender um cigarro no teu peito. Sei que nada disso faz sentido. Foram também as melhores palavras que encontrei. Queria experimentar a vida pelo filtro dessa pequena subversão que beira o impossível. Provar um pouco de rebeldia, mas sem o ônus que ela implica. Transmudar contigo os meus desejos. Alguns obscenos, outros nem tanto. Me avisa se for pedir demais. Porque, eu juro, hoje queria acender um cigarro no teu peito. Encostando-o no meio do tórax depois de fazer duas ou três perguntas, num exercício de imaginação. Sentir a ponta queimar. Sentir o gosto amargo impregnando a língua. Depois a tontura da primeira tragada. A calmaria de estar ocupando de alguma forma o espaço do que fica preso entre o cérebro e a boca pelo trato respiratório. Afastar, para longe, a lucidez de estar acordada, de barriga pra cima, olhando esse teto branco, em silêncio. Esse instante quase protocolar em que não há muito o que dizer, no qual a gente se dá conta de ser absurdamente solitário. Queria baixar a pressão. Saber que não é viagem minha. Que não parece loucura. Que tá tudo bem. Queria nos descomprimir dessa obrigação de saber o que estamos fazendo. Queria nos descomparar. E só intoxicar o corpo, num movimento repetitivo e lacônico: levar a mão à boca, inspirar com os olhos semicerrados. Aproveitar a quietude. Afastar devagar. Expelir o que sobrou, eventualmente em voz alta. Tudo durando uns quatro segundos ou menos. Eu comigo. Esse pequeno prazer impensado. Se penso bem a respeito, acho que começo a entender. Queimo cada vez mais pra dentro. Queria enxergar que você queima também, pra parecer contigo. Me desculpe ser tão má. Ser tão invasiva. Chegar assim, pedindo uma coisa dessa. Desculpe se eu ainda não desaprendi a cair matando em terra devastada. Queria saber dizer, enquanto me visto, que se eu confesso que queria é porque se eu não acender um cigarro no teu peito agora mesmo vai chegar pra mim um momento terrível. Vou me perder de novo pra esse oco, essa bad, esse pensamento distante que, quem sabe, um cigarro aceso no teu peito pudesse aplacar. Ou pelo menos acompanhar. Pra me esquecer que eu ainda faço as mesmas piadas que terminam em beijos e os mesmos dramas pelos quais me envergonho logo depois. Que eu ainda choro sem conseguir explicar o motivo e ainda gosto de dirigir sozinha com a janela toda aberta como quando tinha à disposição a tua companhia. Que eu ainda tenho a mesma cabeça confusa, um pouco histérica, sempre potencialmente entediada. Um pouco sumiço sem aviso. Mas hoje eu só queria poder acender um cigarro no caos do teu peito pra distrair o meu.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Finitude

Minha confusão me pega pela mão e me leva pra passear. Na placa de "pare" no trânsito ela lê, em disparada, que tudo acaba. Na boca da minha confusão a palavra "acabar" tem o peso de uma sentença irrecorrível. E ela vai me repetindo, depois, várias vezes, pelo caminho, pra que com sorte eu me acostume, que tudo acaba tudo acaba tudo acaba tudo acaba. Repete ora com indiferença, ora com um profundo pesar. Ela me explica que o que começa é feito pra acabar. Eu sinto no aviso alarmado de finitude da minha confusão um tom embargado de dor. Porque minha confusão é filha da mãe tentativa de permanecer inteira e do pai desejo de fazer durar. Mas os fins sempre chegam. Talvez por isso ela me avise. Minha confusão tem de novo lágrima na cara no domingo e melancolia no peito e coisas no fundo não ditas e um prenúncio de alívio, também, tentando me convencer de que acabar antes evita o sofrimento de depois. Minha confusão tem uma dor de envelhecer todo dia um pouco mais e nunca saber de nada com tamanha certeza quanto tem quando precisa me avisar que tudo vai acabar. Minha confusão passeia comigo por aí e se esgueira nos labirintos estreitos e cheios de perigos das minhas vontades não atendidas. Outro dia ela me perguntou de quantas fraquezas e tristezas profundas, insuspeitas dos outros, é feita essa minha plenitude. Quis saber de onde vem agora essa minha cara seca, impávida, maquiada, inflexível. Eu não soube responder e ela não me deixou em paz. Minha confusão é certeira e insistente. Mas minhas paixões, sempre insubordinadas, são ainda mais. Imperativas, não me deixam vivê-las de qualquer modo que não seja infinito no intervalo entre o começo e o fim.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Notícia boa

Hoje, por mil razões, lembrei do dia em que fui perguntar do gás e a síndica aproveitou para me dizer que eu devia evitar andar de salto alto ao chegar e antes de sair de casa. Pensei na hora: que raio, eu moro no primeiro andar! Mas devo ter feito cara de paisagem muito bem (logo eu, que sou a pessoa que pior faz cara de paisagem que eu conheço) porque ela emendou um papo sobre deixar um chinelinho na porta. Um. Chinelinho. Na. Minha. Porta. Deu o conselho com um tom amistoso, bacaninha, cuca-fresca, mas obviamente entre o professoral e uma ordem.
Eu quis muito dizer: olha, minha senhora, se a reclamação fosse de um vizinho atormentado que deu pra dormir toda noite no hall ou na garagem, bem debaixo do meu apartamento, vá lá, aí é mesmo do caso de ser vergonhoso pra mim. De toda sorte, era provável que não fosse. Por isso e para não precisar ir ao extremo do deboche, fiquei quieta. Eu não me meto em confusões dessa ordem, exceto quando me meto. Trato muito bem os meus vizinhos. Diria: como gosto de ser tratada. Menos quando capoto vendo live do Bruno&Marrone no talo, mas isso é outra história. O negócio é que eu sempre me surpreendo com circunstâncias assim. Sempre me pegam desprevenida essas críticas bobas, veladas. E, se o ego me permitir ser franca, também as críticas escancaradas.
Naquele dia, durante o banho, como hoje eu dei mil respostas ferinas ao chuveiro para deixar as coisas às claras sem apelar para a falta de bom senso. Para clarear a minha própria cabeça sem me indispor com ninguém. Para me por no lugar dela sem precisar tocar sua campainha e dizer umas boas. É preciso ter muito autocontrole até conseguir parar e pensar num episódio desse concluindo que é de uma tristeza rançosa ter que ser a porta-voz desses avisos ingratos. Tem o peso de um julgamento. De uma descoincidência. E, ademais disso, na vida eu sei que já fui a síndica.
Hoje em dia o que eu menos suporto é me sentir inconveniente. O que não significa, é claro, que eu não me sinta assim muitas vezes. Consegue ser um pouco pior quando eu me dedico muito para não errar. E quando eu definitivamente não erro, mas o outro pensa que sim. Quando entrego o que julgo ter de melhor para ser algo como, sei lá, a vizinha do mês. E depois tomo uma dessa, totalmente gratuita, na cabeça.
A coitada da síndica que me perdoe, mas de minha parte, eu quero é dar notícia boa. Quero correr de salto alto onde quiser correr, pelo apartamento afora, se convir. Depois desfilar pelos corredores. Eu quero andar na ponta do pé também, é claro, pra ela nunca mais ter razão. Mas o chinelinho na porta eu não deixo. Da cabeça ao pé, por mais medo que eu tenha de ser indigesta, acabo nunca admitindo o desaforo de tomar por hábito minguar por ninharia.

domingo, 23 de agosto de 2020

Eco [20]

A presença da Laura na minha vida desde o início fez com que eu confrontasse as minhas obsessões. A incerteza me corroeu por dentro desde o primeiro instante, como talvez corroa a todos os amantes, mas a mim um pouco mais. A Laura me punha inseguro. Ou talvez a minha insegurança viesse de antes. E sempre que nascia a vontade de ser eu mesmo, nascia uma vontade gêmea de não sufocá-la. Não mostrar demais. Não ficar exposto. Também, é claro, de não dar a ela motivos para correr, como se eles não fossem chegar de qualquer maneira. Com a Laura eu quis ser bom e equilibrado como nunca. Quis esquecer todo meu cansaço de acreditar de novo. Quis inventar uma versão de mim mais descoladinha, que não vivesse a vida como se tudo que não tivesse a presença dela fosse apenas um intervalo entre um sorriso e outro e uma necessidade prática, feito amarrar os cadarços. Com a Laura eu quis saber ser um pouco mais lúcido. Quis ter chegado um pouco mais pronto. De um jeito que me permitisse, por exemplo, ouvir os conselhos dos meus amigos e discernir entre eles, de acordo com a minha própria cabeça e consciência, em vez de ficar como uma barata tonta esticada para os lados até um dia quem sabe se partir ao meio entre forças opostas que me mandavam, de um lado, ser eu, e de outro ser leve. Conselhos mesmo paradoxais para um sujeito como eu, que sempre adorou explodir de afeto, de vontade, de intensidade ou de loucura. Crendo que não perde quem dá amor, mas quem não sabe receber. De um modo que me fazia ir embora ao menor sinal de falta de reciprocidade. Mas com a Laura, não. Quando a Laura chegou eu já sabia que não era infalível. Já sabia que cada um dá o que pode. E a Laura sequer me permitia compreender qual das minhas faltas podia preencher. Acho que assim morremos antes de nascer. Ficamos mornos antes de nos queimar. O fogo abrandou antes da combustão. E tudo que a Laura foi capaz de conhecer foi o caos ruidoso da minha busca entre o que eu era e o que eu queria aprender a ser pra caber na vida dela.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Virtuosos e plásticos

A uma garrafa e meia de altura, tens um riso slow motion ao ser flagrado elogiando a roupa que eu não tô vestindo. Queria te fazer prometer que a tua memória de mim vai morar ao lado do lugar da tua cabeça de onde sai uma informação desconexa, verdadeira, totalmente inapropriada e doce, como essa. Queria ser gravada na tua memória com o tom que usas pra chamar músicos de virtuosos e plásticos. Porque eu me perco e me encontro é nesses detalhes. Eu me perco em ti é quando me detenho nesses teus detalhes. Eu me perco é me perguntando como podes ser tão preciso em determinadas coisas, com as palavras mais adequadas de todas, e tão absolutamente vago e raso em outras. Pelo menos nessa noite eu te tenho de novo ao alcance da mão. E dos braços. E do resto. A despeito dos surtos e da má vontade. Quase esquecendo que eu quero estar perto em desatino e tu de outra forma, bastante mais amena, bastante menos pensada, bastante mais let it happen do que fazer acontecer, bastante mais uma garrafa e meia depois. E enquanto pedes uma desculpa ou duas eu te faço garantir que ainda dura madrugada adentro. E dura. A gente sempre dura pelo menos madrugada adentro. É neste tempo e neste espaço, aliás, onde a gente mais cabe e dura: na cama, madrugada adentro. Então te tinto, e dizes: cor-de-brasa, e depois ris, e depois fazes parecer que foi necessário implorar, e eu acho graça desse teatro todo que se organiza em volta da cena, como que invertendo os papéis. Aqui dentro não tenho medo. Nem juízo. E nem preciso ter. Aqui dentro também não precisas insistir mas, se preferires, a gente pode encenar que sim. Teus títulos de nobreza não passam pela minha porta. Vens sempre cru e disposto e sussurrando qualquer coisa numa frase que tem um depois: semana que vem. Finjo que não ouço mas é também por isso que, aqui dentro, eu não duvido de mim. E nem de nada. E quando me perguntas o que eu quero que faças comigo e eu sei exatamente o que quero responder, ainda assim posso ficar em silêncio. Vais saber. Meu corpo vai responder. Vou querer tudo, muitas vezes, incluso o que acabas de sugerir me provocando sem dizer uma palavra. Qualquer coisa contigo, aqui dentro, eu quero. De repente me derreter em movimentos circulares. Aqui dentro quero te entregar logo até o último canto. Como quem não sabe que vai precisar isolar mais esse momento numa cápsula mental logo depois. Sim, eu sei, sabemos, amanhã de manhã vou precisar saber de novo separar quem nós somos aqui do que não faremos à luz do dia. Separar este momento de todos os outros, fora deste quarto, com os quais o primeiro não se confunde, e nos quais é mesmo melhor ser um pouco menos intensa. Amanhã de manhã reúno de novo as forças necessárias pra dissociar os virtuosos que nós somos nesse showzinho particular dos que somos lá fora - onde, provavelmente, o mais apropriado é performar o não-querer-tanto-assim e ser tão prática e plástica quanto puder.

domingo, 2 de agosto de 2020

Um copo d'água ou dois

Uma parte importante do que eu sei sobre mim saiu da boca dos meus amigos. Dou a cada um o direito de tentarem me explicar pra mim mesma por me observarem de perto e, com que sorte, na maioria das vezes com muito mais delicadeza do que me observo. Às vezes discordo deles, o que acho até bastante natural, mas ainda assim guardo o que ouvi ou li para pensar depois, como que com um respeito pelo fato de terem observado algo atentamente e se disposto a me dizer, para o bem ou como crítica, já que o que me soa como crítica também pode significar para o bem, no acerto final das contas e balanços mentais que serão realizados depois.
Tempo atrás ouvi um deles dizer que eu sou "essa pessoa que adora museus e galerias de arte em viagens". Desde então, e isso já tem alguns anos, não pude mais me esquecer que sou mesmo uma pessoa que adora museus. Na verdade, desde ouvir a constatação não pude mais me esquecer que adoro o que eu não entendo, que adoro o que veio antes de mim, que adoro a beleza trancada a sete chaves e de portas abertas e entrada franca desses lugares, que adoro coisas aparentemente negligenciadas como Getúlio Vargas escolhendo justo aquele pijama, que devia ser o seu preferido, para ficar manchado de sangue dentro de uma redoma de vidro. É nisso que me detenho quando entro num museu ou numa galeria de arte. E acho que meus amigos sabem: adoro os pequenos mistérios do mundo. Adoro o tempo em que as pessoas se dedicavam a pintar e esculpir e escrever coisas que expressassem o que sentiam ou o que queriam dizer, embora talvez isso nem seja propriamente um tempo, e sim um estado de espírito. Adoro este estado de espírito que a rotina consegue esmagar se não estou em uma viagem, mas uma viagem sabe reacender. E adoro, mais do que todas as outras coisas que já disse até aqui, que este seja um traço distinto da minha personalidade, custe o que me custe.
Por isso quando entro num museu, numa igreja antiga ou numa galeria de arte faço-o sempre de maneira respeitosa, com o coração aberto, sempre com o pé direito, sempre ansiosa pra que aquilo converse comigo em tom de confidência. Pra que eu saiba ouvir o que aquilo tem pra me dizer como eu ouço os meus amigos. Embora saiba que ao fazê-lo - digo, ao entrar num museu ou numa galeria de arte ou ouvindo a um amigo falar qualquer coisa assim sobre mim - eu corra sempre o risco de ouvir algo como um disparo que me faz correr, em círculos, ao mesmo tempo fugindo e perseguindo a mim mesma enquanto me relaciono com o que está fora, que é o mundo, que veio antes, que me percebe, que eventualmente se transformará novamente no que o outro enxerga sobre mim e me diz. Também não entendo nada disso muito bem ou com nitidez o bastante, mas é a melhor metáfora que me ocorre sobre me deter tanto em mim, nos pensamentos e quando escrevo. Por isso escrevo.
Estou mais perdida do que nunca. Os meus amigos estão vendo, mas ainda me enxergam com gentileza, o que é um privilégio. Acho que eles também estão perdidos. E acho que a gentileza com que os enxergo retroalimenta nossa amizade. Queria saber dizer sobre eles coisas tão bonitas como: vocês são do tipo que curte museus e galerias de arte em viagens, ou coisas do gênero. Queria ter a capacidade de formular observações que acendessem neles uma certeza boa sobre o que são e o que representam, ou pelo menos como eu os enxergo. Mas só o que tenho conseguido fazer é espremer um pouco as situações para fazer sair delas uma gota de otimismo. Ou qualquer sinal de que, daqui por diante, tende a melhorar. Acho que a maior sorte que já tive são as pessoas que atraí para perto sem perceber que o fazia. As que ficaram. Eu gosto muito de quem ficou. Os olhos e as virtudes dos meus amigos validam o que existe de bom em mim, e isso é raro. É possível que tê-los e mantê-los perto constitua a parte mais certa e mais doce da minha capacidade de ser amada. De poder às vezes me cansar de correr. Ter amigos como os meus é ter certeza de que, no meio das minhas maratonas, eu vou receber um copo d'água ou dois.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Minimalista

Guarda um tanto de ti na gaveta.
É a certeza que mata o mistério.
Se fica tudo pelo não dito
Sobra ainda uma chance
De fazer diferente
De reinventar
teu rito
De ir mudando lentamente
Enquanto o resto acontece

Guarda um tanto de ti na gaveta
para só pensar mais tarde.
Prefere um pouco
Que às vezes nada te anime
Que não te inquietem
O não e o sim
O vir ou o desvir.
Prefere um pouco
Que às vezes a euforia
Não passe de uma velha conhecida
E que o ritmo se desenhe por si.

Guarda um tanto de ti na gaveta.
Não terceiriza o poder
Do clima na tua barriga
Há um bocado de coisas
Que só se resolvem sozinhas
Com serenidade
Sem delegar, transferir
ou emprestar
culpa
e responsabilidade

Guarda um tanto de ti na gaveta.
No mesmo lugar daquele do Cortázar.
Resolve o conflito no centro
Resolve, primeiro, no centro!
Descobre de novo
Que o para-brisa é maior
Que o retrovisor
E depois volta, sem medo:
a olhar no fundo
a perceber o quanto vale
O que ficou guardado dentro

domingo, 26 de julho de 2020

Atlântica

Passa de duas da manhã. Lá fora faz frio, aqui dentro eu faço questão. Hoje sei que não vou conseguir adormecer antes de escrever que me dói perceber ter apostado num pacífico sendo tão atlântica. Você é pacífico e eu sou atlântica. Atlântida. Uma cidade inteira submersa no peito, onde tudo acontece. E nela tantos tesouros escondidos que eu gostaria que fossem encontrados. Se ao menos você procurasse. Mas esta noite não. E acho que nas outras tampouco. Olhando pra tela em branco onde esse texto se desenha na madrugada do sofá da minha sala eu tento de novo entender, em vão, essa predileção estranha por quem me quebra sem notar que quem me quebrou fui eu. De novo. Você é tão pacífico. De um jeito que chega a me irritar. Você não nota o tamanho do que se esconde no meu degrau de baixo. Nem faz questão. Você não nota que vai mas fica um pouco, como óleo, formando pequenas manchas no meio de mim. Quem nota me manda fugir. Ou partir pra outra. Ou não me permitir de novo insistir até que seja tarde demais. Você vai e eu me dou conta de que isso não importa o quanto poderia importar, se você se importasse. Esse silêncio me ajuda a entender do que eu quero me distrair quando te busco pra perto. O frio também. Mas hoje você não me entretém. Pra ser honesta, hoje nada me entretém. Então, de repente, tudo cai sobre mim como uma pedra atirada no fundo de qualquer oceano. De uma vez. Lenta e só. Reescrevendo a lei de sua própria gravidade. Percebo tudo de uma vez e não consigo desver esse descompasso. Mas eu mal comecei e estou tão cansada. Dessa procura. Dessas apostas. Dessa necessidade de não pensar a respeito. De me dar o que comer. De me por pra dormir. Mas você não quer saber. Não, você não quer saber. E, se pergunta, é como que por educação. Você só quer deixar ser, estar, acontecer. No fundo, você não quer saber que eu perdi as contas de quantas noites como essa eu sou feita. Muitas, pelo que me lembro. E muitas ainda virão, pelo que suponho. São noites que cabem no bolso desse casaco. Por dentro da meia-fina preta. Na textura do batom vermelho. No cheiro doce impregnado no meu cabelo. São noites em que eu levo o que machuca pra passear, mas trago sempre de volta, pra casa, em guerra, exausta, sozinha, no fim.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Trincado

Tem alguma coisa que grita alto na minha cabeça. É ainda pior quando sou contrariada ou me sinto presa. E eu tenho me sentido bastante contrariada. Há todas estas restrições sanitárias e mortes e ressacas morais depois da amnésia e meias-verdades e há todos esses conflitos e essas dúvidas e as minhas enormes obsessões investigativas. Estou cercada. Quase sem ar. E depois há todas as vezes em que perco o controle, de novo. Há também o que eu quero e ainda não consigo dizer em voz alta. Talvez essa seja a raiz da coisa que grita alto na minha cabeça: o que eu quero e ainda não admito. A coisa que grita alto na minha cabeça cresce - e quase me ensurdece - quando qualquer palavra escorre dos meus ouvidos no tom de uma rejeição. Tenho medo de ser um pouco rejeitada. E sei que isso significa que alguma parte de mim acredita que merece exatamente o que teme. Algo bate forte e afiado na parte mais sensível do meu ego quando meu tanto é pago com faz. Ou quando suspeito que é assim que ele tenha sido pago, no devaneio das minhas suposições. Aí há alguma coisa que grita na minha cabeça sem parar, sem parar, irritante como um filho único. Um grito que tem a face da mocinha de Psicose e uma estridência que eu sei que poderia estilhaçar todos os vidros desse apartamento se fosse finalmente posto pra fora. E quando sou descoberta nessa fragilidade, isso me arde mais. Há dias, de modo geral, que me ardem mais. Há manhãs nas quais eu olho pro recado colado na moldura do espelho do quarto e me pergunto como. Como é que eu vou conseguir. Como é que eu vou quebrar a minha prosa e dialogar com o mundo, se a minha mente anda tão a milhão por hora, tão comigo mesma, tão analisando tudo e julgando cada coisa. Como é que eu vou me esquecer que a paixão é um dos únicos sentimentos capazes de fazer frente ou apostar corrida com esse desespero enorme e sem nome que às vezes fala tão alto que não me deixa ouvir outra coisa. Eu sei que preciso parar de rodar, trôpega, entre os cantos mofados desse quarto e esses outros cantos que suponho, formados entre a dobra do que nem foi dito e aquilo tudo que eu teorizo. Eu sei que preciso parar de roteirizar uma decepção que me seja confortável porque já estava prevista. Que se me condiciono para o pior e ele chega e eu ainda estou tão despreparada sofro o dobro. Chego em casa e tiro as botas de salto alto e fino no fim do dia e encaro as meias curtas, brancas, de estrelas, um pouco infantis. Não consigo sossegar essa vontade de ser embalada como criança pequena afastando o medo de me perder para os outros. Quero ser gente grande logo. Quero me bastar logo. Tomara que ninguém suspeite quão alto grita a coisa dentro da minha cabeça. Tomara que amanhã ninguém suspeite que o que eu vejo no fundo das almas quebradas ao meu redor é um espelho trincado de gritos não dados.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Ainda sobre querer

Nos países de língua espanhola amantes dizem te quiero. Acho isso lindo. Dizer te quiero é como declarar que o outro atende, no todo ou em parte, a algum desejo. Ainda assim, sabem bem os herdeiros de Cervantes que entre querer e amar alguém há uma porção imensa de paralelas finas. Vez ou outra talvez até queiram que estas linhas se toquem, mas se dizem te quiero sabem que, pelo menos por enquanto, elas ainda formam um abismo através do qual podem saltar ou não  e ainda não sabem se vão.
Se eu tivesse nascido do lado de lá do Tratado de Tordesilhas, te quereria sem medo na cama espaçosa de um domingo que não fizesse barulho. Te quereria começando a sangrar. Te quereria chapado, falante ou chorando, enlouquecido. Te quereria às claras. Te quereria em posição fetal. Te quereria logo depois de ver um ovni. Te quereria com teu botão de pause adquirido de escambo. Te quereria me olhando de canto. Te quereria preterindo meu travesseiro por ti, calmo e terno, oferecendo um abraço. Te quereria de instantes em instantes, mais do que de projeções em projeções. Te quereria podendo perder meu controle e pondo pra correr todos os pensamentos, até me contorcer inteira nos teus braços e ao redor de ti. Te quereria suspirando satisfeita. Te quereria ingênuo como antes dela. Te quereria, ingênua, como antes deles. Te quereria em bando e sem comparativos. Te quereria imenso: para cima, para os lados e pra frente. Te quereria gigante, de pé, na minha frente e ao meu lado. Debaixo de mim. Te quereria sem medo de vacilar na frequência certa de vez em quando. Te quereria com um cachorro carcomido debaixo do braço, saindo do veterinário, com a língua pra fora, preocupado. Te quereria chamando bebês no diminutivo. Te quereria de novo sem evitar dizer que há entrega ou mais de uma saudade por semana. Te quereria sem fronteiras ou formalidades diplomáticas. Te quereria invasiva, de luz acesa e cortina aberta. Te quereria pacote completo, inclusas as flores e os documentários. Com a boca roxa e os lábios projetados para a frente, parecendo desdém. Te quereria entregue a querer.
Se eu me comunicasse em espanhol, tu entenderias?
Na língua materna me falta vocabulário.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Avarento

Baby
Eu queria
Que seu desejo fosse
Um cheque em branco
Assinado
(é claro)
Que eu preenchesse
E descontasse
Quando me conviesse

Que seu desejo fosse
Daqueles
Que batem o pé
Na fila do banco
Para apressar o gerente
Para tomar um empréstimo
para poder pagar o preço
para poder desejar mais

Baby
Se você não passasse tudo no débito
Não fizesse planilhas
Não tivesse o orçamento
do seu desejo
tão apertado
Eu também manteria a minha conta
No vermelho

Mas você é avarento

terça-feira, 7 de julho de 2020

Louca de homem

Do interior da cidade de onde eu venho vem também a história de uma jovem que enloucou de homem. Tinha uma família boa, foi bem criada, estudou e usava umas saias até o joelho, como mandava o figurino da época. A menina era um primor. Mas quando as pessoas se deram por si, ela enloucou de homem! Não é que tenha virado quenga, não - embora isto sempre dependa muito da perspectiva moral com que se olhe para as situações. O que conta o senso comum é só que seus pensamentos se descaminhavam muito nitidamente quando chegava perto de um homem. A ponto de não dizer coisa com coisa e sair estrada afora com o dedo anelar sem adorno para o alto dizendo: aqui não aqui não aqui não! E às vezes era só o padeiro passando, o filho da vizinha em uma bicicleta, qualquer homem praticamente incapaz de lhe fazer mal algum.
Para que se curasse dos maus hábitos, às vezes passava meses enclausurada sozinha no sanatório da Vila Inês. Todo mundo sabia, mas fazia de conta que não, para manter as aparências. Diz-se que voltava sempre como quem volta de uma viagem, revigorada. Noutras ocasiões a família, farta de suas sandices, rendia-se a deixá-la fazer das suas em público. Assim, diz-se, foi se construindo sua fama e, sobretudo, foram-se todos acostumando com a acidez de seu comportamento, que nem por isso deixava de ser bastante patológico.
Houve vez de um grupo inteiro de oito estudantes de Medicina descer da capital só para se debruçar sobre seu caso. Quiseram testar se a literatura técnica e seus microscópios e tubos de ensaio davam conta de explicar a causa, uma predisposição, os sintomas e o potencial contagioso da doença. Mas não teve jeito. Só o que conseguiram descobrir era que as enloucadas dela começaram no dia em que viu um moço muito bonito cruzar a rua e sem querer ele desplugou o fone de ouvido da caixa de som que carregava no bolso e, no ato, a praça da cidade foi tomada de um barulho muito alto, meio triste, dançante e melancólico.
Pensava-se inicialmente que ela houvesse ficado fascinada com aquilo, tanto, que seguiu o moço até encontrá-lo. Sabe-se que o encontrou sentado num banco da estação, os fones de volta nas orelhas, sem prestar-lhe a mínima atenção. E ela gritava e era como se surdo da música alta ele também ficasse cego para sua mímica agitada que não tinha fim e também ficasse não-tátil pra os chacoalhões que ela lhe dava nos ombros para chamar-lhe a atenção plena.
Conta-se a boca pequena que foi a maior vergonha que já se viu uma mulher passar quando ele seguiu, impassível, com a mala e o chapéu na mão, e tomou o primeiro trem para longe. E ela ali, naquela afobação teatral. Naquele mesmo dia, mais tarde, diz-se no interior da minha cidade que a jovem contou a uma amiga que queria só devolver a ele um lenço branco de anil que deixou cair na frente da farmácia e, com tanto barulho e espantamento, ninguém reparou. Mas já nem a amiga lhe acreditava.
Dali pra frente, ela enloucou de homem. Não havia mais qualquer deles sobre a Terra que pudesse chegar perto sem acordar nela um grave tique nervoso. Às vezes, ouvi dizer, ela vociferava outros berros além daquele típico do anelar em riste. Coisas como: quero água, quero água, pão e vinho e atenção, água/pão/vinho/atenção, água/pão/vinho/atenção. Repetidas vezes, até cair de sono exausta ou dopada e acordar mais uma vez dentro da ambulância ou já nos leitos brancos e assépticos da ala psiquiátrica. A fim de conseguirem contê-la um pouco para regressar à vida em sociedade, mantida a saúde pública e a dela própria.
Porque é sabido até hoje no interior de onde eu vim que se um homem lhe tocasse quando estava naquele estado de nervos típico de quando um homem lhe havia acabado de tocar, brevemente também recaía sobre ele uma enxaqueca terrível, e a sequela que ficava quando a dor de cabeça passava era não entender mais uma palavra que não fosse literal. Música então, nem pensar. Parecia mandinga. Ou uma coisa de energia mitológica medusiana, seja lá como funcione evocar estas coisas.
Antes que eu nascesse, deram-se os fatos de seu óbito. Conto de ouvir falar, porque acho a história curiosa e toda muito pitoresca. Daquelas que só se ouve com tanta riqueza mentida de detalhes no interior do interior, depois de muito telefone sem-fio. Pois diz a anedota de seu passamento que a jovem, já não tão jovem, acostumada a enloucar muito de homem desde muito nova, um dia ouviu no corredor do mercado começar a tocar baixinho e ir-se avolumando aquela mesma música que se ouviu na praça da cidade inteira no fatídico primeiro dia de seu enloucamento.
Diz-se que todos presentes no estabelecimento que conheciam a história e também os seus floreios posteriores ficaram apreensivos. Esperaram, esperaram, atentos e temerosos. E nada do espetáculo inconveniente de sempre. Quem esteve lá jura que era como se ela não estivesse sentindo nada. E diz-se que parecia estar se esforçando muito para ocorrer o contrário.
Da última vez que suspirou, não houve griteiro nem chilique. Ela não espumou de ódio de homem nenhum, como se esperava. E então caiu devagar, escorando-se no carrinho cheio de compras. Tinha perdido o viço. O brilho nos olhos inteiro de uma vez. Por um momento ligeiro a vida parecia passar-lhe como flash, disseram os presentes. Tudo enquanto ela caía lenta entre a prateleira do trigo e a do arroz. Básica e calada como poucas vezes na vida, foi-se encontrar com o que quer que esteja do lado de lá. E embora se possa cogitar que foi para o céu, no auge de sua insana santidade, como se espera que possam ir os inimputáveis, também não há quem possa garantir que uma hora dessas não esteja queimando tranquila no inferno. Não há quem possa garantir que não fosse má e cáustica. Nem que ainda não esteja esperando o derradeiro instante em que a alma do último indie de meia tigela queime inteira na ponta do último cigarro do último moderninho subversivo que brotar desavisado na nossa cidadezinha lá do interior.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

De liquidação

Estamos fazendo a mesma manobra, com a diferença de que eu estou querendo te dizer há dias que aquele jeito de bater na porta antes de entrar é o mesmo que o meu, uma coincidência enorme. E tu eu não sei. Estamos esfriando antes de ter aquecido bem? Eu me sinto alguém que assopra as brasas a plenos pulmões quando não estás olhando e esfregas as mãos e as enfia nos bolsos achando um isqueiro perdido na tua jaqueta preta. Não sei o que te lembras quando isso acontece. Não tive tempo ou entrega para descobrir. E começo a sentir um desconforto em te escavar e receber sempre mais risadas do que respostas. Estamos salteando encontros no calendário com moderação mas eu gostaria muito de aparecer de surpresa. Tu não. E assim vais me ensinando a me recondicionar para o mundo com esta espécie de covardia que só retribui a indiferença que não doa. Ou que doa, mas saibamos fazer de conta que não. E vamos nos mantendo muito leves e livres e alheios ao que virá, mas eu estou só fingindo o tempo inteiro que sei boiar em água mansa enquanto não sentimos prazer ou remorso em mergulhar um pouco, nem que seja com a ponta do pé. Quero sentir tudo muito, mas desconfio que tu nem saibas. Acho que não apertas os olhos para fazer foco além dessa versão grosseira de mim que se parece contigo. Como se vivêssemos um romance de liquidação. Somos as peças que sobraram no final da estação. Eu me vendo barato pra que tu que não deixes de me comprar uma vez por semana, como um velho hábito sobre o qual não seja preciso reservar energia para pensar a respeito. Cerveja, pães, cigarro ou alface. Já não tenho certeza de que te prefira acreditando que eu também não sei o que quero e o que não quero da vida. O que me alivia ou o que me assusta. Porque acho que sei. Estou o tempo todo querendo dizer um sim enorme para qualquer coisa. Mas tu não me perguntas nada.

domingo, 5 de julho de 2020

Eco [19]

Não tenho coragem o suficiente de te querer menos que o suficiente. Ou de te beijar pouco. Não posso me dar o luxo de te ver chegar, insistir e depois perder o controle, Laura. E também não comportas nem mereces meu desejo médio, equilibrado e recomendado pelo Ministério da Saúde. Sentado nesta cadeira e te olhando de longe nesta sexta-feira fria imagino, desavisado, escorregar a mão por dentro da tua roupa sem saber que vais querer logo tudo. Deve ser por isso que teus lábios sem voz encontram os meus olhos e se desenham numa pergunta, me dizendo: eu duvido. O prazer de uma transa não vai nos bastar, mas reconheço o quanto é incoerente te negar essa possibilidade. É tão complexo que não sei explicar. Então tu diz eu duvido e depois me arrasta, rendido, para o escuro do banheiro de uma casa vazia. Todo mundo vê, mas ainda assim subir a escada contigo tem o gosto de um segredo. Teus dentes batem contra os meus lábios com força e me puxando e eu tenho cada vez mais certeza de que do teu beijo, Laura, eu nunca vou poder dizer que seja como um pedido de licença. Tu és o avesso de morno. Tens tudo que é confortável de cabeça para baixo. Eu fico frouxo diante de ti e do teu tamanho. Por isso desejo que me perdoe por não saber direito te dizer por que não. Por investir sem pensar a minha mão e a minha coxa contra o vão quente das tuas pernas. Nunca sei, depois, onde quis chegar e por que não tive coragem. Mas gosto tanto da cor da tua intensidade. De pintar os lábios nos teus, juntos, no escuro, e ter uma taça manchada da tua boca na pia do dia seguinte. Tenho agora a memória da tua textura úmida contra os meus dedos, abraçados e tu de costas. Ainda bem que sobrou um pouco de juízo. És tão completa, oscilante, cruel, humana, gostosa, intensa, livre e poética. Deve ser por isso que me dá medo te apertar contra mim, carne magra contra a minha, até os ossos se apertarem uns contra os outros. Tenho tanto medo de te quebrar que quase esqueço que tens a força de três ciclones e seguramente dentro de ti arde mais de um vulcão ativo.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Não se deixa prender

Quando estou em paz, corto os temperos em pedaços muito pequenos pra cozinhar e acerto as medidas de tudo. Levanto do sofá disposta a encarar o dia e encontro o que estava perdido nas gavetas com facilidade. Não esqueço das chaves, do lugar onde guardei os brincos ou de retornar as ligações. No trânsito, de carro ou a pé, encontro bem verdes todos os semáforos. Meus caminhos parecem todos abertos e, quando estou em paz, isso não me assusta. Um mistério que não decifro e não passa despercebido. Quando estou em paz tenho reflexos, intuição e serenidade. Quando estou em paz tenho sorte e não quero viajar no tempo. Não desejo corrigir meus desassossegos, como a série da moda, porque acho mesmo que não seria capaz de evitar pequenas tragédias. Quando estou em paz, não desejo saltar as angústias me equilibrando de momento de paz em momento de paz. Reconheço nessa tranquilidade uma delicadeza que não sufoca e não se deixa prender.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Eco [18]

Enquanto a Laura abotoava um jeans muito justo que contornou com alguma dificuldade seus quadris até chegar à cintura e parecia olhar com satisfação as próprias curvas refletidas no espelho, sem que eu pudesse esperar, me disse que sentia medo. De quê, perguntei, parvo como sempre, sem entender os gatilhos de suas confusões mentais como nunca, óbvio e literal como só eu, imaginando ou querendo que ela fosse responder algo como um medo de altura, de envelhecer ou de insetos voadores.
Ela respirou fundo e arqueou as sobrancelhas, organizando a frase seguinte e reunindo a paciência necessária pra lidar com aquilo. Amarrou os cabelos ainda um pouco suados bem no alto da cabeça e então disse que era medo de trair a própria liberdade comigo. Ao dizê-lo, não mudou o tom de voz, pra que talvez a mensagem passasse despercebida. Feito uma confissão que ignora por completo a figura do padre, mas precisa ser posta pra fora pra afastar de vez a ideia da própria divindade.
Depois ela emendou me dizendo que talvez se sentisse assim porque passou a vida negando o estereótipo da mulher que quer casar e ter filhos ou mesmo "só" achar um amor que durasse, porque se sentia um pouco anulada ao querer essas coisas. Que era como se essa vontade de ter um homem ao lado, que sim, existia, diminuísse em grande medida a sua força ou a sua independência.
Dava pra ver o quanto lhe custava dizer aquilo. O quanto deve ter reunido forças por dias ou meses até conseguir verbalizar a hipótese que agora me anunciava. E então eu não ouvi mais nada com nitidez, ou ela ficou em silêncio, eu não sei bem. Me botei a pensar que ela talvez fosse tão ferida quanto eu. Tão desgraçada quanto eu. Que ela também pudesse sentir a insegurança e o medo de se envolver mais profundamente com alguém de novo. Talvez sentisse até ciúme. A Laura se dispôs a sair de seu platô emocional pra compartilhar aquele medo comigo e o simples fato de dizer que tinha medo a humanizou diante de mim de um jeito bonito e forte, mas irreparável. Porque me dei conta de que ela tinha mesmo um medo muito grande, mas nem assim deixava de querer, muito, de todas as maneiras, o envolvimento romântico mais profundo possível, ainda que adivinhasse que enjoaria de mim ou de qualquer um que ocupasse o meu lugar assim que desvendasse a dinâmica da coisa.
Preciso contextualizar. A mulher dentro daquele jeans era até então, pra mim em especial, uma contadora de histórias. Que transava bem, é claro, mas sem deixar de ser uma contadora de histórias. E a história que a Laura mais gostava de contar era sobre si mesma. Falava de viagens, do trabalho, da infância, de sentimentos, e até sobre suas proezas sexuais. Mas percebo agora que cada uma de suas histórias contava com um véu de inverdade. Uma névoa. A Laura dava à própria vida a sua versão, num enredo peculiar, pelo menos antes de me confessar aquele medo, pra poder mudar de assunto quando eu chegasse perto de alguma profundidade. Ela era uma contadora de histórias e também uma perita em manobrar os fatos pra que tudo ficasse num terreno que lhe era confortável. Sabia adiar com beijos intermináveis o momento de que eu formulasse uma opinião a seu respeito ou mesmo conhecesse melhor os seus defeitos.
A Laura sabia preencher silêncios com diálogos, monólogos ou informações esparsas. Ela só não sabia lidar com o problema de querer. Este problema de não nos ter sido ensinado nunca como fugir do que se quer. Esta questão que implicava criar uma persona baseada em uma mentira ou duas sobre o amor e os relacionamentos e depois confrontar, muito de perto, um medo imenso da verdade reprimida. Da verdade de se envolver mais que o outro, de estar mais disposta, do desconhecido, da traição, do tédio, do desgosto e de tudo aquilo que, em mim e na minha complexidade de homem, podia feri-la tão mais fundo quanto mais fundo ela me permitisse chegar de seu íntimo.
Arrisquei perguntar à Laura se ela era capaz, apesar de tanto medo, de se enxergar de novo como o botão que atravessa um buraco feito cuidadosamente no jeans e sente que uma casa de botão é um espaço feito pra caber. Eu sei que a resposta era sim. Eu sei que a ansiedade da Laura é toda voltada ao instante em que se sentirá assim novamente. Mas ela tangenciou: "Se ninguém souber nem suspeitar que é isso que o botão quer ele não vai ter problema, certo?" E depois riu, nervosa. Ela sabia que agora estava nua diante de mim, apesar de ter acabado de se vestir. Ela queria um grande amor. E por maior que fosse a dedicação na costura de seu disfarce, agora havia uma ponta solta. Que consistia em sabermos que ninguém se movimenta livremente sem algemas entre o que quer e o que não quer. 

domingo, 21 de junho de 2020

Paladar não retrocede

Faça um combinado comigo. Quando um homem se julgar insuficiente pra você e denunciar isto naquela conversa à toa, você não vai mais revirar o baú profundo e escuro das virtudes dele pra encontrar razões que ajudem a convencê-lo do contrário. Prometa-me que você fará algum esforço pra acreditar que, provavelmente, ele está certo, se é que lhe deixa na dúvida. Prometa-me gastar sua energia lembrando que de fora se enxerga melhor. Que até ele vê. Não, não tem nada a ver com egoísmo ou soberba. Ou talvez até tenha mas, de todo modo, esse pensamento vai lhe economizar um tempo precioso. Então só tente fugir desta inexplicável vontade de se colocar em posição de salvadora da pátria. Fuja de gostar de estar em alguma vantagem nessas dinâmicas. Fuja dessa armadilha batida que armou pra si mesma. Apenas não seja mais esta desculpadora profissional de culpas que não são suas e nem foram provocadas por você. Com isso, respeite o tempo que você gastou lidando com as suas próprias culpas. Respeite a força que exigiu se tornar quem você é. Oh, não, não me entenda mal, este não é um grito de ódio ao que é masculino. Antes um incentivo. Estou me dispondo a rachar com você esta conta que, sabemos, sempre foi cara demais pra dividir com alguns deles. Prometa-me, por mim e por você, que aos homens que nos merecem não chamaremos mais presunçosos. Prometa-me que não nos acovardaremos diante deles. Prometa-me se lembrar (e me lembrar, quando eu precisar) que paladar não retrocede. Que não vai dar pra comer ovo frito fingindo que nunca provou caviar. Que o que é ordinário não supre o que é extraordinário. Que deitar no peito de alguém que não diminui esse barulho que não cessa na sua cabeça não lhe adianta pra muita coisa. E que tudo fica ainda mais deprimente se ele sabe que você poderia estar deitada em qualquer peito e escolhe se encolher pra caber no dele. Então não se deixe esquecer disso - e, se não for pedir demais, não me deixe esquecer também. Não se agigante menos pra fazer par com qualquer homem que saiba que é insuficiente pra você. Insuficiente esta noite. Ou neste momento da vida. Ou pela vida inteira. Prometa-me não ser como a onda que se dobra resignada pra morrer na areia, e sim como a força que recolhe a água de volta ao que é profundo pra produzir inexplicavelmente uma infinidade de novas ondas. Sucessivas. Fortes. Bonitas. Avassaladoras. Do jeitinho que a gente gosta. Porque o mar só é o que é por causa dessa força. E nós agora já sabemos que nada gira em torno de um homem ser ou não ser suficiente. Pra encurtar a conversa, que nada gira em torno de um homem. Pense um pouco e você vai ter certeza que nunca mais será uma musa da Bossa Nova. Quiçá nunca tenha sido. Já não nos cabe este estigma de ser só perdão ou compreensão. Já nem deve mais nos servir aquela fantasia de enfermeira (sentimental). Então talvez tenha chegado a hora de abrir a última porta. Que só abre pelo lado de dentro. Esta que varre pra longe o auto-boicote. Esta que, entreaberta, nos lembra de protagonizar nossas próprias águas de março e veranicos de junho. Tem algo incrível pra saber sobre si mesma nos próprios furacões. Nas próprias calmarias. Então, por você e por mim, lute ao lado do exército de mulheres potentes ao seu redor contra esta legião de homens meia-boca que tem nos aparecido. Porque não é. Não é. Não é. Mas se fosse eventualmente uma guerra, eles estão dizendo que sabem que não nos venceriam nunca. E agora, com esta promessa que fazemos uma à outra, nós também sabemos. Somos nossa vanguarda, escudo, arma e cavalaria. Proteja como tesouro esta certeza de só precisar ter ao lado alguém que faça páreo pra você.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Fatalista

A árvore com a qual cruzo todas as manhãs deu a entender hoje cedo, com menos de meia dúzia de folhas secas, que já não é mais a mesma de antes, como se pressentisse seu destino: nascer, crescer, florir de um dia para o outro, aos montes, de um jeito lindo, e depois ganhar a cor esmaecida do outono, caindo e fenecendo nas calçadas numa sujeira ainda viva que o morador caprichoso tratará de varrer sabe-se lá para onde.
Ficam só os galhos finos apontados para o céu, confirmando o rito de passagem. Todo outono faz desta árvore um pouco mais fatalista, mas a verdade é que ela não perde nunca a gana de florescer de novo. E se tem medo de parecer morta ou perder a cor, custa-lhe um pouco mais aceitar o que sabe bem a respeito de si mesma. Tenta se preparar para o óbvio - considerando óbvio, por alguma razão, só o que sempre lhe aconteceu de fatal.
Ansiosa pelo momento da florada e, pouco depois, pelo momento de sentir novamente sobre o tronco e seus ramos a luz e o calor do sol. O outono apenas acontece quando acontece. De tempos em tempos, sem anúncio. O outono personifica uma indiferença que a árvore inveja. O outono não só prepara para o frio do inverno como aceita lhe abrir caminho. A árvore, não. Quer confiar no destino como quem confia que haverá, depois do outono e até do inverno de Camus, alguma primavera invencível.

domingo, 14 de junho de 2020

Depois do caos a lucidez

De repente, sempre me invade a lucidez que é precedida de um grande desatino. Chega sem aviso esse momento de por tudo de volta no lugar. Prendo os cabelos num coque e estalo o pescoço, disposta. Começo sempre pela louça. Com os guardanapos de dentro dos pratos, tiro cuidadosamente os restos de comida direto na lixeira da pia, descartando as sujeiras maiores. Aproveito as mãos ainda secas e dou play num álbum deprê para dar trilha sonora à trama. Mas não consigo chorar, apesar da insistência dramática e conhecida nessa necessidade. É assim que descubro que chegou de novo a inadiável ocasião de me reorganizar: me vem sem aviso uma praticidade serena que ocupa o corpo e desocupa a cabeça. Que me faz limpar cada canto da casa para que o lado de fora reflita o de dentro de um jeito limpo e claro, e vice-versa.
Domingo é o dia ideal para uma faxina porque é o primeiro dia da semana, embora nos esqueçamos sempre disso, envoltos numa nuvem de ressaca ou de melancolia porque trabalhamos no dia seguinte. Por sorte, hoje é um domingo completamente sóbrio. Portanto um recomeço. Aproveito para agrupar todos os pratos por tamanho, no meu método. E os talheres já estão mesmo juntos e na água. Adio sempre o momento, mas conservo alguns hábitos mecânicos que facilitam o início da limpeza, quando a vontade chega. Porque sei que, na maioria das vezes, a única parte difícil de uma faxina é começá-la.
Ensaboo primeiro as taças. Fatalmente me lembro de cada gole de vinho. E me perguntando se desejo mais consumir as coisas ou ser consumida por elas, lembro também da mancha no banquinho vintage, da qual não vou me livrar tão cedo. Mas sei que não se limpa nada, dentro ou fora, sem essa disposição de tocar no que está sujo. E há também o que é novo: tiro as etiquetas das duas taças de cima da bancada porque quero poder começar a usá-las logo. Lembro que fazem par com a maior e sorrio, me dando conta de que talvez o que é antigo se quebre para dar lugar a coisa melhor.
Então fervo uma água. E vou ensaboando e enxaguando cada copo, depois cada talher, depois cada prato, depois a panela de cima do fogão e o escorredor. Conheço os procedimentos de uma assepsia completa, até secar a última gota de água de cima da pia, que agora reluz. E aí é a vez da roupa. É mesmo curioso que eu faça sempre acontecer, sem pensar muito, para sujar tudo isso dia após dia, e na sequência me venha um momento como este domingo, instintivo e fatal, no qual eu tenha de lidar com a minha própria bagunça.
Lá fora, já há dias, está fazendo um tempo feio e muito úmido pra quem quer lavar a roupa. Por isso, eu sei que vai ser difícil que essas peças sequem direito. Mas sei que hoje não vou conseguir sossegar no sofá enquanto não me livrar desse amontoado de camisas e jeans dentro de um saco plástico no chão da lavação. Além disso, daqui a pouco não teremos mais panos de louça ou toalhas de banho para usar. Então insisto, apesar de toda adversidade. Sei que é preciso um pouco de coragem e muito de disposição se a gente quer ter tudo limpo de novo.
Enquanto as peças, submersas, giram pra lá e pra cá mecanicamente, eu tiro o lixo do banheiro. Depois começo a encontrar o que passou da validade dentro da geladeira. Que coisa genial é identificar prazos de validade. Girar bem o produto, depois abrir a tampa, aspirar fundo e saber que é justamente o cheiro que denuncia que a intuição estampada no rótulo estava certa. Vou para a sacada tomar um ar depois do desespero que me dá essa epifania, em paralelo. E qual não é a minha surpresa: depois de dias sem a minha presença, a pequena horta do apartamento agora tem ervas daninhas. Arranco logo os trevos de três folhas, que são abundantes, e outras centenas de outra espécie de plantinha que eu não plantei ali. Em outros dias, eu me demoraria na ideia poética de que os passarinhos podem ter trazido estas sementes para germinarem perto de mim e que por isso é lindo deixá-las viver. Mas não hoje. Hoje é dia de faxina.
E então é hora de abrir as portas do armário, porque a roupa molhada só vai poder ir pro varal se a roupa antiga vier para o guarda-roupa. Dobro e separo todas as peças, e algumas delas terei que passar novamente pelo amaciante, por causa do mau tempo. Detida neste pensamento, me encaminho para guardar as calcinhas e meias. E vejo correr sobre as que já estão guardadas uma barata. O horror. O horror. Não há nada mais significativo acerca da necessidade de uma faxina completa do que se deparar com uma barata num lugar em que ela não deveria estar. Se é que as baratas deveriam estar em algum lugar.
Com esforço e muita batalha envolvida, mato a infeliz com duas chineladas. O nojo ainda é imenso, de qualquer modo, enquanto removo o corpo caído ao lado do tapete com um papel higiênico e atiro privada abaixo. Descarga demorada. Ainda estou incrédula. Corro para a cozinha. Vou tirar cada calcinha e sutiã da gaveta com o pegador de salada de cabo mais comprido que tiver, para o caso de haver irmãs. Peça por peça, tudo para a máquina de lavar. Era filha única. Encontro no fundo da gaveta um sabonete de kiwi muito antigo, que estava ali justamente pra perfumar o lugar, mas me ocorre que pode ter sido ele quem atraiu o monstrinho de muitas patas. Direto para a lixeira. E depois um pano com álcool, muitos panos e muito álcool, dedetizando tudo, em cada prateleira e em cada vão pelo qual outro inseto semelhantemente hostil possa transitar. É engraçado que às vezes a gente tenha que se deparar com um extremo tão grande quanto uma barata para se por atrás da causa de sua chegada. Como é que a gente faz tanta sujeira no piloto automático? Como é que a gente desorganiza a louça, a roupa, o armário e a vida, tudo sem notar? É normal, mas ainda é estranho.
Depois de tudo um banho quente e demorado, que é para ter certeza que também eu estou limpa depois da empreitada e da ojeriza. Hoje foi dia de faxina. Hoje é domingo e eu não vi - e nem quero ver - o vermelho ao redor de Marte no céu. Tudo está em paz. Hoje não há força alguma no que podia ter sido, só no que eu gostaria que fosse e no que foi. Hoje descobri o que eu vinha encobrindo. Hoje não há interpretações desmedidas no aperto da mão causado por um espasmo do sono. Hoje estou aceitando meu caos sem glamourizá-lo. Pelo contrário, hoje eu quis por fim a ele de um jeito decisivo. Hoje estamos limpas, a casa e eu. Estamos nítidas. Estamos lúcidas. Diria livres. De repente, sempre me invade a lucidez que é precedida de um grande desatino.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

O solilóquio da coruja

Se eu me concentrar, todo poste pode virar um pedestal. Digo, eu sei me aquietar, fechar os olhos, fazer de cada canto alto o meu altar, o meu templo, o meu ambiente de meditação, e ninguém sequer suspeita que eu estou à espreita. Eu tenho também essa coisa de conseguir torcer o pescoço e enxergar muito mais do que precisaria, ampliando de um jeito meio esquisito o meu campo de visão. Não é exatamente bonito me ver fazer isso, mas acho que é curioso, porque animal praticamente nenhum faz, então talvez se possa chamar essa minha aptidão de fábrica de um "talento diferencial" entre os outros animais. De cima de qualquer árvore eu posso contemplar inteiramente a vida noturna - eu, que tudo vejo, incluso na noite e no oculto, e só Deus sabe a benção e a maldição que isso é, porque já vi muita coisa boa e ruim.
Tenho fama de arquétipo da sabedoria e do conhecimento, mas a verdade é que isso só acontece porque quando se está de boca fechada, calada num canto, como eu fico quase sempre, é mais difícil que se perceba a ausência de inteligência, se for o caso. Então eu saio ganhando pontos nessa questão porque não costumo ser muito eloquente, mas não é exatamente um mérito. É por isso que não me envaideço com os rótulos que me dão no reino animal. Acho que bem no fundo eu sou só uma coruja. Sem muitos predicados. Com a minha carinha redonda, o meu nariz curvado, essa falta de lábios, a penugem meio fosca. É assim que me enxergo nos vidros espelhados dos prédios do centro da cidade, quando saio pra dar uma volta de madrugada. Normalzinha. Coruja-padrão. Garota exemplar.
Às vezes, porém (ou por isso mesmo), eu intuo a presença de alguém que pretende se aproximar. E imediatamente eu sinto uma necessidade profunda de fazer barulho e não sei bem por quê. Talvez queira ser notada. Temida. Respeitada. Talvez queira me provar que eu posso, faço e aconteço. Talvez queira delimitar um perímetro só meu pelas ondas do som, onde seja capaz de imperar soberana. E o pior é que às vezes funciona. Às vezes, basta eu fazer aquela barulheira que eu nem sei o nome, que a bicharada ao redor se contém, se acanha. E não há bicho que não cochiche pelos cantos da relva: "não chega perto, não chega perto que hoje a coruja tá terrível". Só que depois de uma meia hora fazendo barulho eu fico quieta de novo, reflito um pouco e acho tudo uma bobagem imensa. É, bom, pensando melhor, talvez o meu problema seja esse excesso de narcisismo, essa abundância de autoanálise, esse monte de pensamentos sobre mim mesma, essa intenção de fazer com que me vejam assim ou assado, essa coisa "autovenerativa" mas, ao mesmo tempo, bastante autocrítica.
Refletindo agora, é curioso que naquela noite eu tenha saído pra caçar. Faço isso relativamente pouco. Lembro de ter pensado comigo: vou dar uma de louca, depois eu ponho mais essa aventura na conta da cadeia alimentar, do instinto de sobrevivência, da necessidade de dar o que comer às crianças, essa lenga-lenga toda que os humanos fazem, sabe? Eu posso reproduzir esse discurso. O humano, aliás, que inventou essa coisa de mãe-coruja pra falar da superproteção, mas não se dá conta do peso que tem ser uma filha-coruja. E, se me detenho no tema, preciso assumir que somos todas. Somos filhas-corujas, lidando diuturnamente com a necessidade de se impor diante do mundo, de criar uma personalidade, de imprimir nossa marca na nossa própria história e, por que não confessar, de exercer em alguma área da vida a nossa vontade intensa de rebeldia.
Naquela noite eu fui rebelde. Quando me lembro, eu dou uma risadinha. É legal pra caralho de lembrar dessas coisas que eu já fiz. Faço uma cara sacana toda vez. É como se eu tivesse um segredinho comigo mesma e com aquele gato. Bom, por um lado, coitado. Talvez pra ele não tenha sido uma experiência tão divertida assim. Aquele dia me deu uns três minutos de coragem insana e eu avancei contra o chão, pra não deixar pedra sobre pedra. Não tinha ideia do que realmente ia fazer. Pra ser bem honesta, eu teria avançado no que estivesse pela frente. Precisava gastar a minha voracidade, o meu apetite de aventura. Meu lado menina-má. E, bom, era aquele gato que tava na frente. De modo que eu me lancei contra ele com força, com pena, com barulho, de bico e tudo e, lá pela metade da minha empreitada, ele se soltou. Rodopiou no ar, rolou umas dezoito vezes no chão e saiu corrido, ligeiro, ofegante. Com o coração na boca.
No fundo, não sei agora se fui eu quem fui mole na intenção ou se ele foi hábil de se livrar a tempo. Porque, assim, falando bem friamente a respeito, eu sei que o teria devorado logo e voltado pro meu "tédio contemplativo" imediatamente após a refeição. Mas digo mais e vou além: teria outro jeito? Como é que eu ia chegar naquele bichinho bonito, meio filhotão, miado manso, passinho lento, e dizer com voz macia: "com licença, senhor gatinho, você poderia por um acaso assim, quem sabe, por obséquio, me acompanhar até a minha casa pra eu comê-lo vivo?". Não dá, né. Não dá pra fazer esse tipo de coisa se a vontade é de exercer a minha própria rebeldia.
E pra ser franca eu tenho um pressentimento de que gatinhos não funcionam bem o tempo todo assim, na maciota. Eu acho que eles andam com aquela cara de sonsos e despreocupados por aí, catwalk, não sei que lá, como se nada importasse tanto assim, mas precisam também de vez em quando de uma coruja doida pra animar a vida. Ou não se enredariam manhosos nas pernas dos outros fazendo ron-ron e demonstrando gentileza. Acho que eles precisam viver coisas assim pra depois contar aos amigos "Noooossa, cara, e aquela vez que uma coruja quase me pegou e eu consegui escapar!? Foda, man...". Ou talvez essas sejam só as coisas que eu imagino ou gostaria de ouvir um gato dizendo, e a verdade é ligeiramente diferente. Nunca se sabe.
O fato é que cometo tantos gestos contidos durante o dia e durante a noite e durante a vida, enquanto vou voando silenciosamente por aí com essa minha aerodinâmica tão bem adaptada ao ambiente, que esse tipo de evento ganha um lugar especial na minha memória. Sei que enlouqueceria se não fosse um pouco louca às vezes. Tenho certeza de que eu vou fazer de novo sempre, sempre. E não é porque eu não saiba o que é agir com equilíbrio. É que eu não quero. Não quero estar no alto de um poste acima de qualquer instinto ou emoção o tempo todo. Não quero estar sempre imaculada no meu pedestal. Não quero atravessar a vida despercebida, bela e recatada. Não quero pensar no que vai ser do gatinho, no que vão falar ou na descompostura evidente pra quem me assiste realizar estes ataques famintos. Pelo menos em algumas ocasiões posso sentir, perto do chão, que há vida no alto e no chão. Que há corujas e gatos. E que qualquer existência, na natureza inteira, é sempre curta demais pra se negar o direito de arder.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Utilidade

Das receitas que eu conheço melhor para abstrair angústias e surfar nos próprios pensamentos, a mais precisa e eficaz sempre foi afundar no trabalho. Perdi as contas de quantas vezes desconectei de questões sentimentais - sempre elas - e de inconformismos de toda ordem rendendo o dobro. Sendo a funcionária do mês. Quiçá do ano. Maquinando produtividade profissional para distrair ou, pode-se dizer, para voltar a focar em algo útil. Eu sempre tive muito do que tentar me distrair.
Utilidade. É curioso que tenha me ocorrido justo este termo para problematizar o meu comportamento. Às vezes tenho algumas dúvidas sobre o que é utilidade pra mim. Sobre qual é, ou pode ser, a minha real utilidade como pessoa. Sobre o que me faz querer ser vista como alguém mais útil e distinta, especialmente quando tudo vai mal em alguma área da vida.
Bem, a verdade é que usar o próprio conhecimento a serviço dos outros talvez seja a definição mais básica e abstrata de utilidade. Fazer a diferença na vida de alguém pelo próprio trabalho é útil. O sentimento de dar o meu melhor pode me ser útil. E fazer dinheiro, é claro, é uma consequência bastante útil. Resgatar a praticidade no cotidiano do meio da confusão mental sempre foi útil. Trabalhar é como ter os pés na terra, na realidade.
Eu poderia falar de qualquer coisa sobre missão aqui, mas hoje não quero pensar que haja nada de místico neste tipo de arranjo. O contexto não me permite. Não quero pensar em vocação, ou em privilégio, ou em talento. Ou nas coisas que desempenhamos sem esforço, como se fosse um dom, e pros outros pode valer muito mais. Hoje quero me deter na reflexão sobre estes instantes em que sinto a necessidade de fugir de mim. Na razão para criar este mecanismo de redirecionamento de energia que pode ou não funcionar, e por quê. E como.
No início da semana, voltou a me ocorrer que eu poderia ter e levar a sério uma causa ou duas. Fazer trabalho voluntário, por exemplo, abdicando daquele pensamento de que a filantropia é apenas uma face altamente vendável do mau caratismo humano, usado para equilibrar os freios da condescendência consigo mesmo. De todo modo, eu poderia invocar das profundezas do meu idealismo algumas paixões sociais. Pulverizar minha mão à obra para outras obras. Militar na internet, mas não só. Desempenhar também ações mais afirmativas para me sentir, de novo, útil. Seja lá o que pudessem ser essas ações afirmativas. Eu poderia me dedicar a descobrir algumas outras utilidades para não manter todos os meus ovos na mesma cesta, como dizem. Eu poderia empreender com mais objetividade o caminho das minhas outras inquietudes, para testar se diminuem.
Sei, porém, que só estou pensando nisso tão detidamente porque, cá entre nós, a minha principal fórmula não tem funcionado. Ou não tem bastado. Ou, pelo menos, não me tem sido tão eficaz quanto já foi um dia. Neste momento exato, é como se o trabalho não cumprisse sua função precípua de me reorganizar. De me justificar. De me tragar inteira e me soltar feito fumaça, filtrada pelos pulmões do aparelho de bater o cartão de ponto, melhor do que entrei.
Oxalá o trabalho volte a ser em breve tudo que já foi pra mim um dia. Fonte inesgotável de recompensa para a dedicação e do sentimento de utilidade. Até lá preciso, minha nossa como preciso, preciso muito, preciso avidamente encontrar outras fórmulas igualmente eficazes para despejar a minha intensidade em coisas menos potencialmente decepcionantes e lesivas do que... pessoas.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Da cintura para cima

Com licença, preciso confessar que vou tentar despi-lo depois de despi-lo. Com uma incisão que rompa o couro e o resto, vou tentar encontrar um caminho por debaixo da pele, em busca da segunda camada detrás da que fica à mostra. Uma incursão nas entranhas que faça jorrar o sangue e ponha para fora o que é bonito e o que é feio - e sobretudo matéria viva e pulsante, que por isso não admite maquiagem. Tenho tentado explicar que só gosto do quente e do vermelho imperativo de dentro. É esta profundeza de todos os seres e, em especial, dos objetos de desejo, que alimenta a minha curiosidade. Que me põe alerta e desejosa. Que me veste com chapéu camuflado e cadeira de praia e desafia os meus anzóis para depois da pescaria. Inspirada por cada etapa desta expedição à natureza selvagem das coisas. Muito embora não saiba o que encontrarei ou o que farei com o que encontrar, eu só me sinto confortável se houver entre nós alguma identidade de âmago. Algum segredo insuspeito e confessado por querer. Alguma neurose reprimida e inédita, mas agora compartilhada. Se a nossa essência corresponder, afinal, no que for essencial. Se houver uma parte mole e praticamente inacessível guardada em algum lugar no ventre ou no peito, quase intocada, que ainda se possa manejar ou curar ou esculpir a dois. Da qual se possa falar a respeito depois de beber vinho tinto. In vino veritas. Eu poderia, eu bem que poderia sumir antes dessa vontade insana me aparecer. E admito mesmo que seria mais confortável não permitir que cresça outra vez em mim esta obsessão sentimental pelas vísceras. Se eu não fosse eu, anunciaria o sumiço de véspera e de fato teria forças para sumir, evitando a carnificina. Mas, a despeito das suposições, eu me conheço bem. E me conhecendo bem, qual não é a minha surpresa: talvez já seja tarde demais. Agora já tenho de novo uma faca afiada em punho e um certo talento de estripadora, bastando pedir licença para iniciar a minha obra. Agora já acredito que haja algo muito intenso e vermelho vivo para além das tuas escamas desbotadas e verdes. Com sorte, terei tempo para encontrar. Para confessar que te quero mais e também ou principalmente da cintura para cima. E que do depois espero que possamos fazer, juntos e rápido, a sutura desse corte que, com sorte, não vai deixar marcas. Com sorte, descobriremos a tempo se nossa matéria-prima coincide. Com sorte, também tens desejado tirar a camiseta para mim num reflexo de intimidade, sem pensar muito a respeito.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Vermelho também

Que quer dizer este entrelaçar de dedos que começa lento, senão que por dentro estamos ligeiramente prontos para gritar com o corpo um desejo? O que poderia dizer este contemplar do teto da sala sem nenhuma palavra, senão que já não estamos habituados a ocupar os silêncios com confissões ou significados? O que tem de mortal e nocivo numa boca entreaberta à procura? Como compreender este abraço quente e terno, que gruda? Como definir essa força impelindo um corpo contra o outro, se paira no ar uma despretensão absoluta de diagnósticos? E por falar em diagnósticos, que parte do veneno deste processo te contaminou? Que parte te acalma e tranquiliza? Qual é o gosto que deveria ter a saliva, se acordo de madrugada e sinto sede demais e de mais? O que é toda essa vontade de gozo, tão dedicada e direcionada? Que é este capricho de querer deixar fluir de fora para fora e ainda assim se abrir um pouco? Quantas metáforas se inauguram quando bem no fundo de mim há algo desconfortável capaz de ferir, e ainda assim insistimos?
Eu não sei. E encaro com graça que, pelo menos isso, não possa descobrir sozinha. Tem mesmo um quê de vingança contra a morte esta vontade de se permitir levitar na tentativa enquanto vive e eventualmente dançar em êxtase, arrebatado por um acerto, menor que seja. Então está certo: é mútua a confiança no potencial desta chance, seja lá o que encerre a descomplicação desta possibilidade.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

O tempo antes da vindima

Outro dia uma amiga foi brutalmente ferida de amor e senti um impulso de entrar no carro e ir correndo socorrê-la. Imediatamente eu quis curá-la. Express. Arrancar tudo de uma vez. Livrá-la de antemão de toda culpa. E oferecer vodka ou cachaça. E cachorro-quente. E já ir avisando e antevendo o vômito. Quis oferecer um colo. Acelerar o processo. Dar a ela uma sacudida. Gasolina e fósforo para queimar todas as coisas que lhe dessem na telha na frente da porta de casa. E o que mais ela sentisse que precisasse, eu tinha para compartilhar. Mas não podia sem um pedido de socorro alto e claro.
Quis escrever a respeito. Depois achei invasivo. Depois me dei conta de que podia falar daquela dor  porque era também um pouco minha. Como a vontade de sair logo daquela condição, a qualquer custo. De dar as voltas por cima e por baixo todas de uma vez. Eu conheci a vontade de chorar. E depois a de parar de chorar. E a de querer lustrar o orgulho com um pano bem limpo, vestir uma roupa nova e sair por aí, a fim de restabelecer a ordem natural de todas as coisas, caótica como ela só.
Ouvi paciente a versão completa. Aproveitei para tentar assimilar a ternura e a sensatez que ela tinha com aquilo, e que eu nunca tive, porque ela é mais doce e mais nobre que eu. E me dei conta de que eu não devia tentar arrancar isso dela. Devia deixá-la criar sua própria receita para sair daquele lamaçal.
Ainda assim, ofereci um lenço. Banho quente. Roupa limpa. Chá bem doce. Pouso lá em casa. A manga da minha camiseta, na altura do ombro, pra que ela encostasse o rosto e ficasse ali o tempo que fosse necessário, embalada como criança pequena, soluçando eventualmente. Aceita em todas as suas fragilidades. Ela não sabe, mas também cogitei abrir bem as janelas, pra deixar o ar entrar. Lavando assim nossas almas. Em silêncio. Limpando o caminho das pedras. Remendei em pensamento os nossos rasgos, com todo cuidado. Tricotei ligeira as saídas de praia e os cachecóis de lã para que pudéssemos ir, mundo afora, protegidas do clima e de todo o mal.
Nessa época, outra amiga um dia acordou e me disse que ia começar a ler Voltaire e os clássicos e parar de pentear os cabelos. Era como se dissesse: vou aproveitar o tempo antes da vindima para criar musculatura. Embora elas não soubessem, havia um elo universal entre as duas e seus processos. Era igualmente potente assistir à que se quebrou toda de uma vez levantar e a que, depois de tanta construção, ainda queria reforçar os fundamentos das suas verdades.
Não se diz a uma mulher brutalmente ferida que vai passar. Isso ela sabe. Fará coisas impensáveis pra que aconteça. Sei porque já estive lá. Porque acontece todo dia. Nos é exigido este renascer, que só acontece de dentro pra fora e no tempo sagrado dos nossos próprios relógios.

sábado, 23 de maio de 2020

O manjericão agora tem quem lhe escreva

De onde estou te vejo de canto, por detrás da janela da sala. Ainda me surpreendo como uma planta como tu pode ser uma amiga tão honesta e íntegra. Confidente íntima, embora silenciosa. Uma certeza de vida. Pois saiba, manjericão, que o que sinto no cômodo ao lado é uma nostalgia felina, mas extremamente doméstica. Que faz com que eu me pergunte se as coisas mais importantes e intensas da minha vida já passaram e agora o que cultivo são apenas os ecos, as memórias a respeito, a tentativa de emular o que da primeira vez veio de golpe. Deve ser o que ocorre ao adicto quando se dispõe às segundas viagens. Aquela intenção - que já nasce falha - de tentar repetir exatamente a mesma alucinação e os momentos do jeito que eles aconteceram da primeira vez. Uma espécie de saudade perene de estar envolto naquela luz brilhante de plenitude. Daquele momento em que, passados dias ou anos, ainda nos lembramos, depois, de ter estado decisivamente vivos. Tenho uma certeza inconfundível de quando esta euforia me acontece. De quando houve uma conexão que deixou rastro com o que há de divino em mim. Passa o mesmo contigo, manjericão? Se tens na memória algum dia como aqueles meus, de uma alegria única e incontestável, concordas então que a manifestação deste brilho de juventude inconsequente já tenha pra nós se esgotado? Por acaso conservas uma esperança de que há felicidades maiores à nossa espreita? Não diz nada. Nem precisa sequer concordar comigo. Faz a tua fotossíntese calado para manter-se em pé, fincado na minha varanda. Sem embargo, hoje cedo acordei e tinhas flores. De mim também há duas. A que é só manjericão e a que tem flores. Vivo decidida a não deixar que uma mate a outra de fome.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Me salvar de mim

Levantei a cabeça com o espelho ainda fosco e adivinhei atenta os meus contornos no meio da nuvem de vapor quente. Meio disforme, mas era eu olhando pra mim. Sei porque havia quase uma dúzia de vincos paralelos manchados de batom e vinho tinto no lábio inferior projetado à minha imagem, à minha frente. Conheço bem os meus defeitos. Pequenos sinais do que fica marcado, apesar de toda distração e por causa dela. Símbolos das marcas do que se é, convivendo junto daquelas do que se foi. De repente, de tanto ter que me encarar, perguntei a razão de desejar sempre aquela mesma fuga eufórica. Que portas tenho mantido trancadas para não encontrar as verdades e os ossos das que vieram antes de mim? Questionei meu reflexo sobre que curas posso me proporcionar e tenho me recusado. Pensei nas privações que não faço. Nos sinais que negligencio. Então da próxima vez direi: de muita coisa. A gente foge de muita coisa. A realidade é muita coisa. E muita coisa do que a gente foge importa. No fim do dia, não quero fugir nem ser uma donzela indefesa. No fim do dia estarei a sós com as chaves. Só eu posso me salvar de mim.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Eco [17]

- É óbvio que a tua leveza não se sustenta num compromisso... 
Arqueei as sobrancelhas e arregalei os olhos esperando que ela concluísse o raciocínio antes de começar a me defender.
- ...porque a intimidade acelera muito essa tua vontade horrenda de controle. Como da vez que tentou me ensinar a plantar e regar o meu próprio manjericão, lembra? É um exemplo bobo, mas era um momento meu, eu já sabia fazer aquilo ou pelo menos queria descobrir como fazer por mim mesma. Só que você é in-ca-paz de deixar as pessoas serem como são. Praticamente um imperador romano da convivência romântica. Eu não sei... eu francamente não sei pra onde foi toda aquela doçura de antes. É como se o passar do tempo tenha acordado em ti uma vontade de me consertar e expandir o território das tuas verdades.

Ela sorriu cínica, fazendo aspas com as mãos na palavra consertar. De um jeito que não deixava dúvidas de que, segundo as convicções dela, não se deve tentar consertar ninguém. Decisivamente, confessar tudo aquilo de uma vez parecia blindá-la um pouco do poder que eu vinha exercendo sobre ela. A verdade estava dita. Agora vinha o desafio.
Eu só assenti, meio envergonhado. Porque talvez, nem tão no fundo assim, a Laura tivesse razão. E ela era terrivelmente precisa nas palavras quando tinha razão. E era mesmo terrível ouvir verdades da boca dela naquele contexto. E pensar que fui eu que puxei o assunto, crente de que ela não concordaria comigo! Não lembro do que respondi depois, nem se respondi, mas tenho recordação de ter pensado a respeito em todos os inícios que se seguiram. Talvez tenha sido ali, naquela conversa, que eu comecei a fugir desse processo de não sustentar minha "leveza" em qualquer relacionamento, buscando sempre identificar o momento exato em que a melhor versão de mim se perde para esta outra que parece um imperador romano. E cortar tudo ali.
Hoje me ocorreu o que, naquele dia, eu poderia ter esclarecido à Laura para desfazer um pouco a minha imagem ditatorial na cabeça dela. Devia tê-la lembrado que tudo em mim sempre foi domínio público. De modo que o cara leve e despreocupado do início já era um perturbado, e é injusto insinuar que eu não tenha transparecido a minha loucura. Ela apenas não feria a Laura antes, e até aí, ponto pra mim. Pra mim, a quem nunca faltaram habilidades sociais. Eu sempre me reparti com as pessoas e isso significa sempre dar a elas todos os detalhes da minha personalidade, ao menor sinal de convívio. E, sim, eu sempre tive um ego do tamanho do mundo. Talvez essa certeza de mim implique uma facilidade para forjar a intimidade com alguém desde os primeiros tijolos. E quem sabe esta intimidade pretenda mesmo contaminar as pessoas com as minhas verdades, mas nem por isso eu merecesse ser tão duramente responsabilizado pela minha tentativa de persuasão.
A informação de que a minha leveza se despedaça neste processo de conviver a longo prazo mudou um pouco as coisas de figura, Laura. Nada mais foi igual pra mim depois daquela nossa conversa. Em jogos de verdade ou desafio, eu sempre provoquei as verdades. Talvez tenha estado preparado de menos para responder aos desafios.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Cafuné de Morfeu

O que vale a luta de resistir a um cafuné? Eu investigo. Já varri todos os cantos atrás do que compense e ainda não encontrei. Essa procura é cansativa. É um descobrir, com algum espanto, que sei gostar do jogo mais do que do peão em si. Que espero as perguntas certas mais do que quero ouvir respostas. Pensando bem, não diz nada. E não pense que eu sou uma pessoa terrível. Ainda te deixo entrar, sirvo café, faço a janta. Mas há essa placa de aviso na porta, escrito: goste ou não, você virou personagem. Não, não se preocupe. Isso quase nunca significa algo. Por aqui recuso bem os nocautes. Sou só eu buscando do que me ocupar. Sou só eu fazendo o que eu faço sempre com as minhas histórias. Agarrando nas paredes lisas das minhas projeções. Resistindo contra o óbvio: em condições normais, não vai dar pra nós. Cansaço é uma desistência do corpo. Dormir é morrer um pouco. Eu nunca quero morrer. Quero estar desperta. Atenta. Quero resistir sempre e bravamente e encontrar justificativas e entrelinhas. Queria não exigir as entrelinhas. Sonho conseguir olhar a vida por essa perspectiva do que faz adormecer com tranquilidade, ao invés de me deter no que compensa lutar para me manter acordada.

sábado, 9 de maio de 2020

Banho quente

Não sei sair de um banho quente no inverno. Do mesmo jeito que não consigo concentrar no que as respostas de fato significam em vez daquilo que insinuam. Às vezes prefiro o terreno incerto de qualquer coisa. Reparto o frio na barriga em fatias, para gozar dele um pedaço por vez. A pele arde. Eu avermelho. Não sei olhar as coisas como elas são senão através da lente de como poderiam ser. Quando dou por mim, a água do banho já me esquentou os pés, correu as costas, me viu toda nua, entrou boca adentro. Um banho quente é bom porque é simples. Porque nos simplifica. Basta um corpo e uma vontade de banho. Um banho quente não exige longas digressões. Não se relê um banho quente várias vezes para tentar entendê-lo. Um banho quente não respeita caras enigmáticas e nele não cabe se demorar nos problemas. Com frequência, é num banho quente que fluem as soluções. Está para o inverno frio como o banho de chuva para o verão, renovando o ânimo. Com o cabelo molhado contra ombros e braços sem qualquer exigência, a gente se sente um pouco mais confortável e acolhido. Não sei sair de um banho quente no inverno, mas para conservar o quentinho de uma surpresa sempre nova, entre um banho e outro esqueço sempre da expectativa do próximo.