terça-feira, 30 de novembro de 2021

Eco [22]

Queria dizer algo como: o tio Otávio perguntou e então eu lembrei de ti. Mas seria mentira. Então vou encurtar a conversa e escrever logo que outro dia me referi a ti como o amor da minha vida. E as pessoas paralisaram ao redor. Foi uma informação que desceu dois tons o volume do ambiente. Porque ninguém sabe lidar direito com tanta certeza.
Se te lembro menos agora é porque a vida tem menos poesia. Mas mais empréstimo quitado. Mais acordar exausto ou no meio da noite e, por impulso, ao invés de escrever, eu me limito a reclamar de ter perdido o sono porque o dia seguinte será de novo caótico.
Não sei em que momento perdi a mão para escrever e te escrever. Quer dizer, sei. E gastar tempo para retomar esta ideia me lembra que agora se penso em escrever imagino que seja gastar um tempo em que ninguém mais me lerá com tanta voracidade quanto tu, Laura. Ninguém mais retroalimentará as minhas angústias mais inspiradoras e talvez eu devesse pensar sempre, sem falha: que bom. Que bom que é assim. Que bom que eu não vou pagar com agonias o preço de um pouco de devaneio poético.
Ainda sobre o tio Otávio. Quando rompi com a primeira namoradinha expliquei a ele que fazia aquilo porque queria viver. E ele respondeu, de uma compaixão tremenda e transbordando de sua simplicidade, perguntando o que era mesmo que eu queria viver. O que era mesmo, Laura? Acho que descobri depois. Depois de ti, principalmente. Depois e no meio de todos os ecos da tua presença. Depois dos lugares onde eu fui e tu não estavas, apesar de eu procurar bastante. Do que vivi para responder aos teus estímulos. Do que vivi pra te provar que eu sabia. Que podia. Que conseguiria. Que não choraria mais. E que às vezes a bola do campinho era chutada pra cima do alambrado e o vizinho não devolvia. E tudo bem. E que o importante era chutar, e me fazer mais forte. Para da outra vez chutar mais alto. E mais longe. E depois correr buscar. E por de novo a bola no meio de campo e começar a partida outra vez, e ser meu árbitro e desenhar minhas quatro linhas e driblar uma ou duas intempéries. E achar que aquilo é que era amor. E te assistir, de longe, por cima de um muro, distante como um perfil trancado, enquanto penso que ainda estou - e talvez estejamos ambos - o tempo inteiro só tentando viver.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Um pé no atraso

Eu tenho um pé no atraso. Descobri depois de muito refletir tentando entender de onde vem essa minha sensação de inveja e ódio com a modernidade que eu vejo nos outros. Não significa dizer que eu não seja também muito moderna, por outro lado, até porque me sobra um outro pé. Nem é que eu não saiba idealizar um futuro onde seremos todos livres para usar franjas curtíssimas e cabelos coloridos, ou piercings, ou drogas, ou camisetas largas como roupas de domingo. Talvez viremos veganos todos de uma vez. Quem sabe publiquemos fotos de biquíni o inverno todo. Tudo muito sem tabu. Ou até adiramos à abertura dos nossos relacionamentos num grande evento universal para louvar a liberdade - sempre ela, o signo mor da modernidade. Mas o problema é que eu ainda tenho um pé no atraso. Sempre que lembro disso me dói um pouco a panturrilha, de tanto esforço para tocar menos no chão.

Não é que eu me envergonhe. Não é só sobre de onde eu vim, também. É que eu sou um pouco má. Um pouco retrógrada por natureza. Eu diria "retrô", mas isso é coisa de gente full moderna. Do tipo das que misturam português e inglês na mesma frase. 

Às vezes me vejo assim mesquinha e careta e aí vou logo sabendo que estou atrasada. Que falta sempre dar um passo seguinte no caminho da modernidade. E que ele talvez nunca chegue. Outras vezes eu me sinto muito moderna mas me sinto tomada de uma necessidade de me atrasar para entrar no compasso ao redor. E aí volto a ponta do pé para a zona confortável do atraso. Porque às vezes ter um pé no atraso não é sobre a gente escolher pisar com ele em algum lugar, mas ter que pisar em algum lugar. Eu tenho um pé no atraso e talvez isso explique o meu fascínio com quem aprendeu a desafiar a gravidade. As coisas que são assim desde que o mundo é mundo impõem uma certa resistência gravitacional para contê-las.

Seja como for, eu tenho um pé no atraso. É bom que esteja dito. Só quando os modernos de hoje estiverem fazendo o caminho de volta é que a moderna serei eu.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Variantes

O que mais me encanta em viajar é aumentar a chance de descobrir um canto bonito do mundo que a minha imaginação não tenha conseguido prever antes. Beleza natural, obra de museu, uma gente estranhamente familiar fazendo as suas coisas comuns de um jeito diferente e novo no meio da cena: nunca consegui traçar um padrão na composição. Eu sou capaz de me lembrar, porém, de momentos muito específicos em lugares em que me senti extremamente feliz, em paz e conectada com um todo. Em alguns eu tenho fotos. Em outros eu meio que intuo que ainda possa ficar tão contente e viraram destinos numa lista imaginária. Em outros a câmera não capturaria o que eu sinto. Os melhores momentos me pegaram de assalto. São aqueles em que fechei os olhos e enchi os pulmões de uma vida inteira de repente. Uma vida num segundo, geralmente de silêncio. Uma vida tão vasta e cheia de possibilidades que eu só soube sentir nessa espécie de êxtase efêmero a certeza. Mas tenho viajado menos. E me conformado mais com isso. Tenho conhecido menos os encantos do mundo e os peixes do mar. Tenho tido menos estímulo novo, de fora, para renovar meus grandes momentos mentais. Tenho visto menos variedade de gente. E a variedade que tenho visto é enjoativa como eu mesma, porque já conheço. De modo que para voltar à sensação de extremo prazer de uma redescoberta quase infantil das possibilidades novas e pulsantes deste planeta eu tenho tido que fazer alguma força com a memória. Para fazer surgir uma coisa que de tanto ser evocada vai ficando muito antiga e meio gasta e rota. Estou parada. E estar parada acaba com a minha fé cênica. De repente já não sei mais contar a história que gostaria de ter. Como se o aqui e o agora só fizessem dobrar as minhas abas crescidas de viver coisas novas para dentro, para caber aqui. Agora. E não sou capaz de achar que isso tenha necessariamente a ver com envelhecer, porque eu já envelheci antes e as coisas tinham ficado melhores. Penso nesse congelamento momentâneo das minhas coisas boas imprevistas e insonhadas mais como um recorte de tempo e espaço, porque estou no sul do mundo. E assim me sinto rodeada de feiúra e de sobras, do que é antigo, de mais do mesmo, de algo como um desmovimento para a frente. Efeito-caranguejo. Eu me sinto meio terceiro-mundana e presa numa cela de terceiro-mundanos da pior espécie. Como se à nossa geração fosse conferido um azar tremendo, que já se repetiu antes. Ou que quem sabe seja cíclico na História do Mundo e das pessoas, mas nem por isso menos desastroso. O mundo às vezes costumava se mostrar tão bonito, para agora estarmos vivendo e engolindo coisas nojentas como alguém que bota o que sobrou de viável numa gaveta e só abre de vez em quando, para não gastar. Como um perfume caro. É isto. Tenho passado menos perfumes caros. Julgado menos especiais as minhas ocasiões. Tenho planejado menos as próximas viagens. O que talvez signifique confiar menos no futuro. Em contrapartida, tenho aprimorado minha capacidade de desassociar da realidade. O que muito provavelmente tem a ver com a prática, para não enlouquecer.

Deve ser quando a gente se cansa de estar hoje e neste onde repetidos que descobre aonde mais quer ir.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Alegoria

As câmeras do celular novo são ótimas, mas o disparo já com zoom acaba com tudo. Os pixels ficam enormes e tudo na imagem ganha uma espécie de contorno branco. Meio Romero Britto ao contrário. Meio não-cor. Meio radiografia. Uma captura em contraste diretamente do mundo invertido. É como se a fotografia fosse banhada de um excesso de luz que, justo pelo excesso, compromete a essência da coisa. Já não permite contexto. Tudo contaminado.
Desde que comprei o celular novo virou uma falta de respeito fotografar as coisas com zoom. Melhor mesmo o panorama geral, para depois aproximar de novo com tempo e se quiser. Melhor a tomada ampla, a perspectiva superficial, uma noção do todo envolvido - didaticamente falando.
Acho que é assim ser enxergada de perto demais, por um excesso de intimidade, por alguém que me conhecia bem antes. A gente de repente fica à mostra e se reconhece nova de uma forma que não esperava. Pior: a gente agora se vê ali, na tela, de um jeito que talvez não quisesse. Formatada pelas circunstâncias. Na contramão do high definition. Ou quem sabe como uma consequência dele, visto que o instante capturado em milissegundos pelo zoom é muito feio, mas (também) é exatamente quem a gente é. Hoje. Quem a gente está sendo enquanto tem esta discussão.
Ocorre-me agora que eu talvez não saiba ainda ajustar a câmera ideal para cada ocasião. Mas não estou a fim de me sentir burra ou inadequada por isso, porque a verdade é que tenho tentado muito. Estou exausta de tentar. Então quero mesmo é falar do espanto que me causa notar que mesmo o celular novo sendo excelente, tem este defeitinho de fábrica. Possivelmente sem conserto: não existe botão desver ou desfotografar com zoom. Ora fica nítido que ganhei esta ruga no meio da testa de repente, ora num clique errado sou capaz de circular a ruga com tinta branca, o que é ainda pior. Talvez já a tivesse antes, mas não notasse, pela forma como capturava a realidade. Como se aquela mínima reprovação pela resolução, antes manifestada em silêncio, ganhasse agora a forma de um insulto no meio de uma briga. Mas vamos voltar à alegoria: é meio que como uma imagem VGA ampliada num outdoor. Não é que tudo tenha subitamente se transformado. Ainda é quase a mesma fotografia, mas parece pior só porque não cabe ali. Esticou.
Deve ser por causa de celulares com câmeras como o meu que inventaram os filtros do Instagram (e o ventilador, para espalhar a merda até que tudo seja tão merda que haja de novo beleza num pouco de ar fresco, mas isso é outra história). Deve ser por situações assim que inventaram a capacidade de reinventar a consideração e o respeito por alguém, dando um passo atrás, mesmo com o coração estraçalhado de quem já não pode evitar nem sabe mais negar ter dado um passo à frente.

Perdão. Eu já não consigo ser muito bonita no macro, tão de perto a ponto de não haver espaço para mostrar o que me tornei de longe.

Deve ser culpa do meu celular.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Posta-restante

Ainda há o que faça aquela coisa oca se esfarelar em mil. Uma sensação antiga: poodle raivoso atrás da porta. Ossos contra ossos. O beijo do Klimt. Chão de taco. Grandes rodoviárias. Pequenos silêncios que devolvem o controle. Mentiras deslavadas. São imprevistos proibidos feito zonas radioativas. Porque evocam uma melancolia subterrânea como se o passado ficasse umas quatro camadas debaixo dos pés. Volto para juntar os farelos como quem desce um túnel com uma escada em espiral até o que é profundo. Quero estar de volta nesse ar escasso e úmido. O mesmo das covas, das cavidades e das alcovas. Quero me lembrar do que fazia ficar depois de tanto insistir para não esquecer do que fez partir. No dia a dia aquela coisa quase me escapa. Quando volto para ela, oca como agora, amaldiçoo ter gasto as minhas energias mais frescas e vivas naquele período. Depois amaldiçoo a coisa ter ficado oca. Sem recheio ou substância. Sem um vestígio sequer que não o vazio protegido por uma redoma, e que se esfarela de vez em quando. Ainda me espanta que haja o que faça aquela coisa oca se esfarelar em mil, como um gatilho. E as partículas voando soltas. Minúsculas. Quânticas. Vivas. Tendo que ser recolhidas de novo. Ainda me espanta que tanta coisa aqui passou e aquela coisa oca fica.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Eu queria ler a minha biografia

Eu te acho absolutamente dissimulada. E, ao ver a sua desfaçatez agir diante dos meus olhos, me apavora pensar no quanto você é capaz de fazer comigo exatamente o mesmo que já vi você fazer com os outros. É que você é muito descarada, mas uma cínica extremamente polida e convincente quando quer. E quase sempre quer. De um mau-caratismo incontestável e, ainda assim, sabe sair de boa-moça. Ou tentar. É quase como se você pensasse que ninguém nota, se tudo for feito pelas beiradas. Mas eu notei. Eu noto. Eu não sou capaz de desnotar. Quem sabe uma aparência de decência e normalidade convença os outros da sua profunda humanidade. Deve ser por isso que me incomodam tanto os seus incômodos. Essa fuga de ser de carne e osso e dar uns berros. Me incomoda o jeito como você aborda as pessoas para falar dos seus incômodos. Me incomoda essa existência robótica que você inventou pra si mesma em público. Um tom que se impõe pela passivo-agressividade e aproveita de alguma posição de desconforto do interlocutor para impregnar o ambiente. De um jeito que às vezes desata a falar, ainda que ninguém queira ouvir. Um jeito de nunca ser objetiva para não arcar com a consequência de pensar como você pensa e fazer o que você faz. Mas eu sei que você faz. Estou te vendo muito, na versão mais crua possível, enquanto você se cozinha toda nesse fogo brando na minha frente, até ferver de raiva. Tudo atrás de um sorriso pseudocortês. É uma coisa que eu já vi antes, mas não lembro muito bem aonde. Talvez naquelas partidas de sinuca onde a bola tangencia uma aresta da mesa e, muito devagar, acerta um ângulo que a gente não percebia antes que existia, mas o jogador sim, porque remoeu tudo de uma maneira ardilosa no início da jogada (vingativa?). Parece te vir muito natural. Essa naturalidade da sua maquiavelice me assombra. Talvez porque seja familiar esse hábito humano de não ser ultra sincero para conseguir conviver com os outros em harmonia. Mas eu acho que você levou isso às últimas consequências. Outro dia li que a gente mente trocentas vezes por dia. Nunca contei quantas vezes eu minto por dia. Ainda assim acho que seria divertido contabilizar uma a uma das suas mentiras num caderninho (sádica?). Pensando bem, eu nem preciso. Sei de cabeça quantas vezes enxerguei o que te interessa. Enxergo o aquecer de seus panos desde o princípio de cada movimento. Enxergo as meias-palavras. Enxergo como você se dirige sempre omitindo o que realmente interessa, para primeiro saber o que lhe interessa, e arquitetar uma situação inteira de desconforto só pra mim. É uma coisa muito eu-e-você rolando na cena. Na terapia eu fui orientada a te envolver numa energia cor-de-rosa em pensamentos para me livrar disso, já que não podemos falar a respeito, mas a verdade é que eu não quero te curar. Não já. Pelo menos não sem antes entender tudo o que se passa e se você é mais boa ou mais má (ressentida?). Eu quero falar mal de você como uma cigarra que berra até perder a casca e depois estourar. Depois tomar um banho e, aí sim, me sentir limpa. Pronta pra outra. Porque no fundo eu sei que tudo isso tem qualquer coisa de espelhamento (e das cinco linhas que já li de psicanálise na vida posso dizer que sim, esta irritação tão profunda não pode vir de outro lugar que não do fato de que enxergo alguma parcela de você em mim, e é só isso que me apavora). Em voz alta eu pretendo negar o quanto puder. Já que pensar que nossos maiores contrastes são, na verdade, feitos de uma tinta que se esmaece em aquarela de mim pra você redobra o acumulado dessa ojeriza. Se penso que toda repulsa que você me provoca também é um pouco minha, de mim pra mim, lembro de uma anedota que ouvi de uma professora do colégio uma vez que dizia que a cada vez que apontamos o dedo, pelo menos outros três ficam virados pra nós. Ficou gravado em mim que tudo que enxergamos no outro pode ser uma parcela de algo nosso com a qual não sabemos lidar. Um conflito interno que, não dissolvido, é regurgitado para o mundo na forma desse rancor azedo. Que seja. Não vou terminar a frase porque ainda não estou pronta para dizer que sei que te abominar pode dizer mais sobre mim do que sobre você. Porque aí, egoísta, vou me obrigar a ser empática. Vou começar a ficar pensando na sua história, nos pequenos rachados da sua estrutura, naqueles traumas familiares cabeludíssimos que eu desconheço e em todos os daddy issues que você não conta a ninguém. Temo que os maus hábitos os denunciem. De qualquer modo, tem também a sua relação com dinheiro e poder. E, se penso nisso, o melhor que posso fazer é sentir pena. Porque este sentimento de um pouco de dó nos alija um pouco do sentimento de ranço, que é o mais danado de todos e se impregna por detrás das pálpebras. E eu não quero sentir ranço de mim através deste meu reflexo no fundo dos seus olhos. Vou olhar para aquela parede agora enquanto vou sendo selecionada para mais este ato do seu faz de conta. Sobretudo porque gosto de pensar que o que te trouxe até aqui também pode te levar para outro lugar. Oxalá eu me leve também.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

No que pensa quem não fala

O apartamento ao lado foi ocupado por um casal que muito provavelmente tem um filho. Não vi a mudança acontecer, mas já ouvi uma vez ou duas as três vozes distintas, em alto e bom som, ecoarem pelas janelas deles em direção às minhas, depois de um ano inteiro de silêncio absoluto ali desde que mudei pra cá. O filho deles acho que usa muletas. Sei porque o segundo quarto tem muletas apoiadas na janela aberta de vez em quando agora. E provavelmente alguém do casal ou ambos têm uma família distante, porque outro dia ouvi uma chamada de vídeo na qual circulando pelos cômodos animada a mulher dizia a quem talvez fosse sua irmã ou mãe ou cunhada ou sogra que o lugar tem tantos quartos, e tantos banheiros, um sofá assim e assado e inclusive é cheio de CDs e livros incríveis da antiga proprietária "aqui, nesta estante" - e que seria incrível se um dia ela, interlocutora, pudesse encarar a viagem e visitá-los para conferir pessoalmente.
E aí teve o dia em que, finalmente, depois de assuntar um par de coisas com os ouvidos, tive alguma sorte de contato visual com eles. Como o apartamento é espelhado com o meu, a vista da janela da minha cozinha sem cortinas atravessa a lavação, a janela texturizada da lavação e o vão de ventilação do primeiro andar para dar em outra lavação com sua janela texturizada, que dá em outra janela da cozinha também sem cortinas. De modo que quando cheguei na minha própria cozinha, de pés descalços e uma roupa extremamente caseira, para lavar a louça, estando as janelas todas abertas eu os vi de luz acesa e em movimentos domésticos e foi como se eu intuísse todas as peças refletidas nas minhas. E foi também como se comungássemos imediatamente das duas intimidades familiares sem querer, com alguma curiosidade, mas com um espanto genuíno, arquitetônico, moderno e inconveniente. Sei que imediatamente desejamos todos morar em duas fazendas com pelo menos dois hectares de distância entre elas.
Foi quando descobri meio de relance que a geladeira deles é branca e grande e fica apoiada bem no canto esquerdo de lá e eles têm uma espécie de bancada. Vige a regra do quem-cozinha-não-lava. Eles também devem ter descoberto que tenho um vaso de tulipas falsas pregado na parede em tons de vermelho, laranja e amarelo, que ouço música sem fones, que minha pia é rente à janela e minha secadora de roupas encosta do outro lado da parede-meia, aproveitando uma tomada que podia ser dos eletrodomésticos.
Em uma fração de segundos estas coisas foram todas descobertas, mesmo que não tenhamos dito uma palavra, mesmo que não tenhamos desejado e mesmo que não tenhamos sido demasiado curiosos para que acontecesse. Viramos espectadores recíprocos da vida alheia. Achei que tudo teve um tom de invasão constrangedora para os dois lados, o que me levou a ter que fazer força para agir com naturalidade. Naquele momento, julguei que a melhor maneira era fazer de conta que aquilo não estava acontecendo. Não os cumprimentei (embora saiba que na quinta o mais novo precisou berrar por uma toalha de banho, do que pude presumir que o armário onde guardam toalhas não fica no banheiro). Não acenei (embora saiba que jantaram macarrão com brócolis e bacon). Nem me apresentei. Nem sorri. E eles na cozinha assistindo TV, conversando coisas aleatórias e resmungando outras que eu não conseguia discernir.
Instaurou-se uma reflexão séria na minha cabeça sobre má educação. Algo sobre o dilema ético entre não ser a vizinha do mês ou entrar na casa dos outros sem ser convidada. Por fim, preferi respeitar o manual da privacidade. E por falar em privacidade, em dois segundos fiz uma série de contas sobre aquela dinâmica, como a de que não poderia mais tomar água sem roupa de madrugada, por exemplo. E que tudo que ouvi também poderia ser ouvido por eles quando eu falar algo dentro do meu próprio apartamento.
Eu tive louça de três dias pra lavar naquele dia. Cozinhei picando as coisas com muito mais cuidado. Preparei um chá com alguma cerimônia. E fiz tudo enquanto pensava no que estavam pensando de mim, no que estavam vendo de mim, no que estavam assistindo do reality show particular do qual agora éramos todos, além de espectadores, participantes.
E foi assim que eu virei a vizinha que eu virei na cabeça deles.
Sabe-se lá se a tímida ou a rabugenta.
Se a prudente ou a mal educada.
Já criei 39 teorias a respeito. Inclusive aquela na qual me dei conta de que dou muito mais importância do que deveria ao olhar do outro sobre minha intimidade. Neste caso sei, entretanto, que mais dia menos dia cruzaremos nas escadas e nos cumprimentaremos cordialmente e verbalizaremos todo o ritual de boas-vindas e apresentações e a partir daí a nossa relação será construída, aos poucos. Mas ainda me deixa absurdamente inquieta pensar, de um modo meio exaustivo até, nessas coisas que são presumidas pelo espectador sem muito contato a partir das mínimas informações. No que pensa quem não fala. De quanto julgamento e preconceito é feito o olhar de quem olha e foi capaz de olhar apenas superficialmente.
Porque na vida, na internet, e agora infelizmente também na minha janela da cozinha, aquilo sobre o que incidirão as primeiras impressões do outro é sempre público, nunca privado. É como se no mundo, e especialmente no virtual, fôssemos todos vizinhos de janela. E o que os outros podem supor do que a gente é, a partir de pequeníssimos ou grandes sinais, chega quase sempre muito antes da gente.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Escrevo para não morrer

Escrevo para não morrer. Desde que tenho lembrança, escrevo para que as palavras não me afoguem ou sufoquem e eu seja capaz de respirar alguma normalidade depois de por o amargo pra fora através da escrita. Escrever virou uma parte importante da minha profissão e, talvez por coincidência, eu também escrevo as dores dos outros para sobreviver. Para que sobrevivam. Eu me concentro escrevendo porque é assim que comunico melhor ao mundo todas as coisas, inclusive as mais íntimas. Inclusive minha vontade de viver. Escrevo para me manter viva. E porque nunca me senti preparada para lidar com a morte. Tanto a ponto de evitar funerais para evitar a certeza de que a vida acaba, quer tenhamos feito nossa parte para melhorar o mundo ou não, e para evitar o sofrimento que a ideia da morte me causa. Mas mesmo assim tenho me sentido triste (eu diria deprimida até, não fosse a falta de diagnóstico) num nível muito mais profundo do que consigo dizer em voz alta. E me sinto triste, especialmente, porque tenho evitado dizer como me sinto. Com medo de quem pensa diferente de mim hostilizar o modo e as razões pelas quais eu me sinto como eu me sinto. Como inclusive já aconteceu, várias vezes. Eu fui me calando e agora é como se ouvisse muito altos os gritos do absurdo para que minha voz pudesse se opor a eles. Ao meu redor é como se a pluralidade parecesse ser cada vez menos tolerada. Gradualmente. Sem que ninguém que pense diferente de mim se dê conta. E aos poucos muita gente que pensa como eu também se cala: para não ser condutor de ódio e se confundir com o que gostaria de combater, imagino eu. Para evitar o conflito. Para - na pior das hipóteses - não ser perseguido agora ou mais tarde, quando as pessoas perderem de vez o pudor de institucionalizar a morte como a melhor saída para o que é diferente. Se é que já não perderam. Hoje é segunda-feira. Escrevo só porque ainda posso. Porque o medo e o pavor que eu sinto não parecem nada com liberdade. Para não morrer sufocada. E mesmo assim eu morro, todo dia um pouco, quando me calo. Todo dia eu morro, por sentença de morte assinada por mim mesma, ao fechar os olhos numa espécie de conivência que eu nunca quis ter. Todo dia eu morro caminhando para o que é extremo sem querer, acotovelada por quem se sente livre - sabe-se lá até quando.