quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O que eu sou pra quem já fui


Você já se perguntou o que ainda representa pra quem já foi bem mais um dia? Afinal, o que eu sou pra quem já fui? Um ácido. Um antiácido. Um borrão. Uma nuvenzinha disforme cinza claro passando vagarosamente no céu azul sem que ninguém perceba, a menos que repare bem.
Que sensações ainda sou capaz de produzir em quem já cruzou o meu caminho tão intimamente, depois sumiu numa cortina de fumaça? Ainda dou vertigem? Vontade de esganar? Pavor? Ojeriza? O quanto de indiferença as memórias não permitem que se sinta por mim? O quanto ainda é hábito me detestar ou enternecer comigo? Quantos diálogos hipotéticos cabem na cabeça de quem só conta agora com os meus silêncios?
O afastamento não permite saber.
Eu, além disso, sei que a mera suposição de que existam é vaidade pura.
Mas e se não fosse?
Quando, no caminho de volta pra casa, a música para e é necessário pensar em algo que passou nesta vida e nos tirou do eixo... Ou no meio de qualquer coisa, como não raro ocorre... O que será que de mim vem à mente, se é que algo vem? Eu sou aquela abordagem inesperada no meio da festa, que dá um pouco de taquicardia? O beijo úmido e demorado com hálito de vodka. O colo no momento de desespero. A eletricidade. O jeito que eu prendo os cabelos num nó quando sinto calor. O jeito que eu falo como se fosse dona da razão. O jeito que eu grito. O primeiro choro. A ponta do indicador percorrendo leve as espáduas.
Sabemos sempre o que mais nos marcou dos outros, mas jamais suspeitaremos com exatidão dos clímax que provocamos. Da relevância que temos no emaranhado de todas as outras histórias que as pessoas foram capazes de viver antes e depois de nós.
Presunçosa, eu nunca me importei com as vezes em que foi necessário se tornar persona non grata. Quem sabe isso tenha me feito permanecer sendo o ponto em vermelho de alguns preto-e-brancos das vidas alheias, quando olham pra trás. Não sei se eu ecoo à francesa, docemente, ou sempre um furacão. Deixando o rastro do desastre. Inesquecível. Gosto de fantasiar, porque eu honestamente não sei.  Porém - e talvez este seja o mistério que enlaça todas as coisas - eu tenho algumas intuições fortíssimas a respeito.

Sorrio. Neste exato momento estou convencida. Entre outras coisas, de que a vida é uma orquestra de cordas tocando, num arranjo inusitado, uma porção de hits que já conhecemos.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Destino

No outro dia, minha garganta doeu. Eu não sabia se era o choque térmico entre o calor escaldante do carro e o ar condicionado gelado contra o rosto ou uma doença mortal. Eu nunca sei. E me dou o malefício da dúvida. Acho que eu tenho medo da morte. Só não mais do que tenho da vida.
Que gosto estranho tem essa felicidade nervosa. Essa ressaca moral que só sente quem tem alguma moral. Que talvez nem quisesse ter. Que seria mais fácil não ter. Que gosto estranho tem mais uma história para não contar aos netos. Para não contar a ninguém. Para arquivar e esquecer, se deus quiser. Para aprender algo com isso, sabe-se lá o quê.
Como seria bom ter a chance de fazer virarem mentira todos os detalhes que precisei trocar rápido de resposta quando me perguntaram. Trocar de cor. Trocar de órbita. Trocar de vida. De personagem. Mas o vidro verde ainda estilhaça com segundos de atraso na memória.
Gozei de uma insônia insistente por dias a fio. De uma vontade de ocupar todo o tempo livre com um sono sem sonhos. Que não vinha. De beber até que fizesse sentido. Até que não sentisse mais dó de mim. Até que exterminasse os detalhes. Eu me espantei toda vez que lembrei com indiferença daquilo tudo. De quando me feri para deixar de não sentir. Para jogar com os perigos, como se não fosse contra a minha natureza.

Toda dor é absolutamente igual.
Se você dói, e todos doemos, eu te entendo um pouco melhor.
Se você dói e ninguém vê, te entendo mais.
Se você dói no escuro do quarto quando se pergunta em que ponto as coisas partiram para a fase atual, nós estamos doendo juntos. Mesmo que você não saiba. Tome aqui a minha solidariedade. Tome aqui a minha certeza de que todo mundo é um pouco tóxico - pelo menos para si mesmo.
Estive por aí, invisível. Naquele dia que poderia ou não ter mudado minha vida inteira, voltei de manhã. Enquanto essas palavras iam se desenhando apressadas na minha vida. Na minha pele. Na minha solidão. Com a certeza triste que só esbarrou em mim no dia seguinte, nas palavras de outra pessoa que já tinha sentido o mesmo antes de mim: A felicidade nunca escreveu um verso que preste.