segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Finitude

Minha confusão me pega pela mão e me leva pra passear. Na placa de "pare" no trânsito ela lê, em disparada, que tudo acaba. Na boca da minha confusão a palavra "acabar" tem o peso de uma sentença irrecorrível. E ela vai me repetindo, depois, várias vezes, pelo caminho, pra que com sorte eu me acostume, que tudo acaba tudo acaba tudo acaba tudo acaba. Repete ora com indiferença, ora com um profundo pesar. Ela me explica que o que começa é feito pra acabar. Eu sinto no aviso alarmado de finitude da minha confusão um tom embargado de dor. Porque minha confusão é filha da mãe tentativa de permanecer inteira e do pai desejo de fazer durar. Mas os fins sempre chegam. Talvez por isso ela me avise. Minha confusão tem de novo lágrima na cara no domingo e melancolia no peito e coisas no fundo não ditas e um prenúncio de alívio, também, tentando me convencer de que acabar antes evita o sofrimento de depois. Minha confusão tem uma dor de envelhecer todo dia um pouco mais e nunca saber de nada com tamanha certeza quanto tem quando precisa me avisar que tudo vai acabar. Minha confusão passeia comigo por aí e se esgueira nos labirintos estreitos e cheios de perigos das minhas vontades não atendidas. Outro dia ela me perguntou de quantas fraquezas e tristezas profundas, insuspeitas dos outros, é feita essa minha plenitude. Quis saber de onde vem agora essa minha cara seca, impávida, maquiada, inflexível. Eu não soube responder e ela não me deixou em paz. Minha confusão é certeira e insistente. Mas minhas paixões, sempre insubordinadas, são ainda mais. Imperativas, não me deixam vivê-las de qualquer modo que não seja infinito no intervalo entre o começo e o fim.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Notícia boa

Hoje, por mil razões, lembrei do dia em que fui perguntar do gás e a síndica aproveitou para me dizer que eu devia evitar andar de salto alto ao chegar e antes de sair de casa. Pensei na hora: que raio, eu moro no primeiro andar! Mas devo ter feito cara de paisagem muito bem (logo eu, que sou a pessoa que pior faz cara de paisagem que eu conheço) porque ela emendou um papo sobre deixar um chinelinho na porta. Um. Chinelinho. Na. Minha. Porta. Deu o conselho com um tom amistoso, bacaninha, cuca-fresca, mas obviamente entre o professoral e uma ordem.
Eu quis muito dizer: olha, minha senhora, se a reclamação fosse de um vizinho atormentado que deu pra dormir toda noite no hall ou na garagem, bem debaixo do meu apartamento, vá lá, aí é mesmo do caso de ser vergonhoso pra mim. De toda sorte, era provável que não fosse. Por isso e para não precisar ir ao extremo do deboche, fiquei quieta. Eu não me meto em confusões dessa ordem, exceto quando me meto. Trato muito bem os meus vizinhos. Diria: como gosto de ser tratada. Menos quando capoto vendo live do Bruno&Marrone no talo, mas isso é outra história. O negócio é que eu sempre me surpreendo com circunstâncias assim. Sempre me pegam desprevenida essas críticas bobas, veladas. E, se o ego me permitir ser franca, também as críticas escancaradas.
Naquele dia, durante o banho, como hoje eu dei mil respostas ferinas ao chuveiro para deixar as coisas às claras sem apelar para a falta de bom senso. Para clarear a minha própria cabeça sem me indispor com ninguém. Para me por no lugar dela sem precisar tocar sua campainha e dizer umas boas. É preciso ter muito autocontrole até conseguir parar e pensar num episódio desse concluindo que é de uma tristeza rançosa ter que ser a porta-voz desses avisos ingratos. Tem o peso de um julgamento. De uma descoincidência. E, ademais disso, na vida eu sei que já fui a síndica.
Hoje em dia o que eu menos suporto é me sentir inconveniente. O que não significa, é claro, que eu não me sinta assim muitas vezes. Consegue ser um pouco pior quando eu me dedico muito para não errar. E quando eu definitivamente não erro, mas o outro pensa que sim. Quando entrego o que julgo ter de melhor para ser algo como, sei lá, a vizinha do mês. E depois tomo uma dessa, totalmente gratuita, na cabeça.
A coitada da síndica que me perdoe, mas de minha parte, eu quero é dar notícia boa. Quero correr de salto alto onde quiser correr, pelo apartamento afora, se convir. Depois desfilar pelos corredores. Eu quero andar na ponta do pé também, é claro, pra ela nunca mais ter razão. Mas o chinelinho na porta eu não deixo. Da cabeça ao pé, por mais medo que eu tenha de ser indigesta, acabo nunca admitindo o desaforo de tomar por hábito minguar por ninharia.

domingo, 23 de agosto de 2020

Eco [20]

A presença da Laura na minha vida desde o início fez com que eu confrontasse as minhas obsessões. A incerteza me corroeu por dentro desde o primeiro instante, como talvez corroa a todos os amantes, mas a mim um pouco mais. A Laura me punha inseguro. Ou talvez a minha insegurança viesse de antes. E sempre que nascia a vontade de ser eu mesmo, nascia uma vontade gêmea de não sufocá-la. Não mostrar demais. Não ficar exposto. Também, é claro, de não dar a ela motivos para correr, como se eles não fossem chegar de qualquer maneira. Com a Laura eu quis ser bom e equilibrado como nunca. Quis esquecer todo meu cansaço de acreditar de novo. Quis inventar uma versão de mim mais descoladinha, que não vivesse a vida como se tudo que não tivesse a presença dela fosse apenas um intervalo entre um sorriso e outro e uma necessidade prática, feito amarrar os cadarços. Com a Laura eu quis saber ser um pouco mais lúcido. Quis ter chegado um pouco mais pronto. De um jeito que me permitisse, por exemplo, ouvir os conselhos dos meus amigos e discernir entre eles, de acordo com a minha própria cabeça e consciência, em vez de ficar como uma barata tonta esticada para os lados até um dia quem sabe se partir ao meio entre forças opostas que me mandavam, de um lado, ser eu, e de outro ser leve. Conselhos mesmo paradoxais para um sujeito como eu, que sempre adorou explodir de afeto, de vontade, de intensidade ou de loucura. Crendo que não perde quem dá amor, mas quem não sabe receber. De um modo que me fazia ir embora ao menor sinal de falta de reciprocidade. Mas com a Laura, não. Quando a Laura chegou eu já sabia que não era infalível. Já sabia que cada um dá o que pode. E a Laura sequer me permitia compreender qual das minhas faltas podia preencher. Acho que assim morremos antes de nascer. Ficamos mornos antes de nos queimar. O fogo abrandou antes da combustão. E tudo que a Laura foi capaz de conhecer foi o caos ruidoso da minha busca entre o que eu era e o que eu queria aprender a ser pra caber na vida dela.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Virtuosos e plásticos

A uma garrafa e meia de altura, tens um riso slow motion ao ser flagrado elogiando a roupa que eu não tô vestindo. Queria te fazer prometer que a tua memória de mim vai morar ao lado do lugar da tua cabeça de onde sai uma informação desconexa, verdadeira, totalmente inapropriada e doce, como essa. Queria ser gravada na tua memória com o tom que usas pra chamar músicos de virtuosos e plásticos. Porque eu me perco e me encontro é nesses detalhes. Eu me perco em ti é quando me detenho nesses teus detalhes. Eu me perco é me perguntando como podes ser tão preciso em determinadas coisas, com as palavras mais adequadas de todas, e tão absolutamente vago e raso em outras. Pelo menos nessa noite eu te tenho de novo ao alcance da mão. E dos braços. E do resto. A despeito dos surtos e da má vontade. Quase esquecendo que eu quero estar perto em desatino e tu de outra forma, bastante mais amena, bastante menos pensada, bastante mais let it happen do que fazer acontecer, bastante mais uma garrafa e meia depois. E enquanto pedes uma desculpa ou duas eu te faço garantir que ainda dura madrugada adentro. E dura. A gente sempre dura pelo menos madrugada adentro. É neste tempo e neste espaço, aliás, onde a gente mais cabe e dura: na cama, madrugada adentro. Então te tinto, e dizes: cor-de-brasa, e depois ris, e depois fazes parecer que foi necessário implorar, e eu acho graça desse teatro todo que se organiza em volta da cena, como que invertendo os papéis. Aqui dentro não tenho medo. Nem juízo. E nem preciso ter. Aqui dentro também não precisas insistir mas, se preferires, a gente pode encenar que sim. Teus títulos de nobreza não passam pela minha porta. Vens sempre cru e disposto e sussurrando qualquer coisa numa frase que tem um depois: semana que vem. Finjo que não ouço mas é também por isso que, aqui dentro, eu não duvido de mim. E nem de nada. E quando me perguntas o que eu quero que faças comigo e eu sei exatamente o que quero responder, ainda assim posso ficar em silêncio. Vais saber. Meu corpo vai responder. Vou querer tudo, muitas vezes, incluso o que acabas de sugerir me provocando sem dizer uma palavra. Qualquer coisa contigo, aqui dentro, eu quero. De repente me derreter em movimentos circulares. Aqui dentro quero te entregar logo até o último canto. Como quem não sabe que vai precisar isolar mais esse momento numa cápsula mental logo depois. Sim, eu sei, sabemos, amanhã de manhã vou precisar saber de novo separar quem nós somos aqui do que não faremos à luz do dia. Separar este momento de todos os outros, fora deste quarto, com os quais o primeiro não se confunde, e nos quais é mesmo melhor ser um pouco menos intensa. Amanhã de manhã reúno de novo as forças necessárias pra dissociar os virtuosos que nós somos nesse showzinho particular dos que somos lá fora - onde, provavelmente, o mais apropriado é performar o não-querer-tanto-assim e ser tão prática e plástica quanto puder.

domingo, 2 de agosto de 2020

Um copo d'água ou dois

Uma parte importante do que eu sei sobre mim saiu da boca dos meus amigos. Dou a cada um o direito de tentarem me explicar pra mim mesma por me observarem de perto e, com que sorte, na maioria das vezes com muito mais delicadeza do que me observo. Às vezes discordo deles, o que acho até bastante natural, mas ainda assim guardo o que ouvi ou li para pensar depois, como que com um respeito pelo fato de terem observado algo atentamente e se disposto a me dizer, para o bem ou como crítica, já que o que me soa como crítica também pode significar para o bem, no acerto final das contas e balanços mentais que serão realizados depois.
Tempo atrás ouvi um deles dizer que eu sou "essa pessoa que adora museus e galerias de arte em viagens". Desde então, e isso já tem alguns anos, não pude mais me esquecer que sou mesmo uma pessoa que adora museus. Na verdade, desde ouvir a constatação não pude mais me esquecer que adoro o que eu não entendo, que adoro o que veio antes de mim, que adoro a beleza trancada a sete chaves e de portas abertas e entrada franca desses lugares, que adoro coisas aparentemente negligenciadas como Getúlio Vargas escolhendo justo aquele pijama, que devia ser o seu preferido, para ficar manchado de sangue dentro de uma redoma de vidro. É nisso que me detenho quando entro num museu ou numa galeria de arte. E acho que meus amigos sabem: adoro os pequenos mistérios do mundo. Adoro o tempo em que as pessoas se dedicavam a pintar e esculpir e escrever coisas que expressassem o que sentiam ou o que queriam dizer, embora talvez isso nem seja propriamente um tempo, e sim um estado de espírito. Adoro este estado de espírito que a rotina consegue esmagar se não estou em uma viagem, mas uma viagem sabe reacender. E adoro, mais do que todas as outras coisas que já disse até aqui, que este seja um traço distinto da minha personalidade, custe o que me custe.
Por isso quando entro num museu, numa igreja antiga ou numa galeria de arte faço-o sempre de maneira respeitosa, com o coração aberto, sempre com o pé direito, sempre ansiosa pra que aquilo converse comigo em tom de confidência. Pra que eu saiba ouvir o que aquilo tem pra me dizer como eu ouço os meus amigos. Embora saiba que ao fazê-lo - digo, ao entrar num museu ou numa galeria de arte ou ouvindo a um amigo falar qualquer coisa assim sobre mim - eu corra sempre o risco de ouvir algo como um disparo que me faz correr, em círculos, ao mesmo tempo fugindo e perseguindo a mim mesma enquanto me relaciono com o que está fora, que é o mundo, que veio antes, que me percebe, que eventualmente se transformará novamente no que o outro enxerga sobre mim e me diz. Também não entendo nada disso muito bem ou com nitidez o bastante, mas é a melhor metáfora que me ocorre sobre me deter tanto em mim, nos pensamentos e quando escrevo. Por isso escrevo.
Estou mais perdida do que nunca. Os meus amigos estão vendo, mas ainda me enxergam com gentileza, o que é um privilégio. Acho que eles também estão perdidos. E acho que a gentileza com que os enxergo retroalimenta nossa amizade. Queria saber dizer sobre eles coisas tão bonitas como: vocês são do tipo que curte museus e galerias de arte em viagens, ou coisas do gênero. Queria ter a capacidade de formular observações que acendessem neles uma certeza boa sobre o que são e o que representam, ou pelo menos como eu os enxergo. Mas só o que tenho conseguido fazer é espremer um pouco as situações para fazer sair delas uma gota de otimismo. Ou qualquer sinal de que, daqui por diante, tende a melhorar. Acho que a maior sorte que já tive são as pessoas que atraí para perto sem perceber que o fazia. As que ficaram. Eu gosto muito de quem ficou. Os olhos e as virtudes dos meus amigos validam o que existe de bom em mim, e isso é raro. É possível que tê-los e mantê-los perto constitua a parte mais certa e mais doce da minha capacidade de ser amada. De poder às vezes me cansar de correr. Ter amigos como os meus é ter certeza de que, no meio das minhas maratonas, eu vou receber um copo d'água ou dois.