quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Au revoir

Quando me cai um cílio e eu me dou conta, estendo logo o indicador pra quem estiver ao alcance. Gosto da brincadeira. Funciona assim: segura o cílio caído, pressiona contra o indicador do outro, fecha os olhos, faz um pedido e acredita que ele vai se realizar. É preciso pensar no pedido que a gente quer que se realize com concentração detida. Fechar os olhos é a prova de nossa confiança no pedido eleito - cílio que fica com quem não fecha os olhos e deseja fundo não é cílio que se preze. 
Funciona. Ou não funciona, mas eu gosto de pensar que sim, pelas vezes que venço a brincadeira. Meus cílios, caídos, têm uma certa predisposição a ficar comigo. Mas eu não tenho truques e, como boa parte de nós sabe, para algumas coisas nessa vida não há escapatória. Por isso, perdendo o cílio para o outro, resta se resignar por ter emprestado de si, contribuindo com o destino do outro, caso o outro também tenha acreditado na brincadeira pelo tempo suficiente de emprestar o indicador e se concentrado o bastante para ganhar.
Se acontece de o outro ganhar, e consequentemente a gente perder, acontece também do outro sair com o cílio da gente por aí e fazer dele o que bem quiser. É raro que o outro o trate como deve. Logo aquele cílio! Tão nosso! Que por uma desventura caiu... Mas não importa muito, já que o cílio não é mais nosso no instante em que escolhe deixar de ser ou no instante em que, por um gesto desajeitado, coçamos o olho e já foi, tchau cílio! au revoir! ...para nunca mais. Indiretamente, escolhemos perdê-lo para o mundo. O cílio ganhou vida própria. Dai pra frente, poeira no cílio perdido, que agora faz parte da vida, do mundo e também do outros, é refresco...
O cílio é o instrumento, a técnica. Não basta o pedido para que a brincadeira se realize e não basta também o outro. É necessário um conjunto harmônico e desajeitado, os indicadores colados. É necessário que alguém ganhe o cílio, a esperança renovada de seus velhos pedidos, e é necessário que o outro fique com seu pedido, imaginando se ele vale a tentativa, até a hora de brincar outra vez.
Essa história não é bem sobre um cílio que cai, embora diga verdade sobre coisas que se perdem. Essa história é sobre cílios que se perdem para renovar esperanças, no instante exato de perdê-las. Sobre cílios que alternam sua razão de ser e sabem se adaptar às novas circunstâncias sem pensar que a vida lhes foi má pelo fato de terem caído. Afinal o que importa não é o cílio, é o pedido da gente. E é a sorte. Sorte que ora a gente tem, ora não tem. E é essa brincadeira que, com sorte, nos ensina a dar sentido sempre novo aos cílios, às perdas e aos dias.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

"Factum sur la contingeance"

Foram raras as vezes em que me privei de algo em nome da moral, dos bons costumes ou da conveniência de modo geral, nos últimos tempos. Sempre deixei de lado as coisas que eu não queria o suficiente, ou que, a olhos vistos, não faziam bem na mesma proporção da angústia que me causavam. Nesse aspecto, alguns sofrimentos nunca pude prever e outros femininamente intuí. Investi muitos esforços em coisas vagas, mas tenho ciência de que foram as coisas que realizei e também as que preferi deixar de lado que me trouxeram até aqui. Digo isso com a convicção de uma confissão póstuma. Por toda a minha vida, eu fui convicta e mudei de ideia. Estranhamente, uma coisa não impedia a outra.

Não, nós não namoramos. Porque não. E se essa não é a resposta esperada, é ao menos a situação consolidada. Não namoramos. Nem presos, nem amarrados, nem enlaçados, nem alinhavados. Nada. Não temos nada. E teríamos tudo que se pode querer, se fosse o caso, mas não nos preocupamos se haverá razão de ser para um "ainda" ou um "e nem o faremos" algum dia.
Nós não namoramos porque não. Ou porque poderíamos, se houvesse razão de ser, a qualquer hora. Porque sabemos a dedicação que um namoro requer e as nossas escolhas nos fazem, nesse momento, livres demais e portanto dispostos de menos para o esforço desgastante da tentativa precipitada. Porque ultimamente desejamos todos os dias uma situação que se prolongue no tempo com as mesmas características. Amizade quase irrestrita. Autenticidade. Porque deixando de ter o que todo mundo pensa que temos, estamos próximos do ideal.
Não, nós não namoramos. Porque não. Ou porque desejamos a confiança na imparcialidade dos conselhos amorosos, porque estamos sempre ansiosos pelas pessoas surpreendentes que os contos de fada modernos ainda podem trazer. Porque somos bons demais juntos para nos desperdiçarmos em qualquer designação que nos assuste.
Nós não namoramos porque não. Ou porque simplesmente existimos de uma maneira que não nos impõe a necessidade de ter algo mais em comum ou de tomar qualquer decisão. Porque ele é exato enquanto divago, e porque sou complexa ao tempo em que ele descomplica. Porque nos conhecemos muito, mas mais ainda porque já conhecemos os caminhos para chegar ao outro sem cerimônias. 
Não, nós não namoramos. Porque não. Ou porque sou Caio Fernando, Kafka, Dan Brown, Hemingway, Carpinejar e também sou Sartre com notas de Beauvoir e, como se vê, não me detenho o suficiente para, a fundo, ser algo disso. E porque ao ser, não sou. Ou porque ele compreende o quanto essa miscelânea contribui para que eu seja eu exatamente do jeito que estamos. Porque a paz que me oferece só a falta de comodismo me dá. Porque nos lemos melhor do que nos descrevemos (e esse é o mais perigoso dos nossos comportamentos!) e porque, não sendo nada, absolutamente nada, estamos condenados a uma liberdade absurdamente aproximadora.

domingo, 11 de agosto de 2013

Hipocritices

Hipocrisia. Insira aqui uma definição razoável ou que se tolere para a condição. Hipocrisia nossa de cada dia que talvez algumas condições nos deem hoje. Tenho prestado atenção em algumas coisas e, de tanto prezar pela autenticidade, é como se eu precisasse escrever pra digerir o impasse.
As duas pessoas que eu mais amo nesse mundo têm maneiras diametralmente opostas de lidar com os erros dos outros: Meu pai costuma cortar relações com quem vacila e minha mãe tem um estoque praticamente inesgotável de perdão. Ela desgosta da atitude, mas raramente das pessoas. Já ele repete, quase sempre rindo, que a mesma cobra não lhe pica duas vezes. Não sei muito bem como devo ser. Nem sei se é possível escolher qual o jeito adequado de encarar essas coisas. Mas preciso falar da minha fase, de qualquer jeito.
Explico: As pessoas erram comigo, algumas muito mais do que outras. E, por conta disso, eu já cortei relações pra nunca mais ver na frente, com uma conversa esclarecedora. Ou com um mal entendido - cada um pro seu lado sem saber direito porque a ruptura está ocorrendo.
Por outro lado (e principalmente por este é que escrevo estas palavras), ultimamente mantenho algumas amizades meio aos trapos por achar que o erro - grave, ruim, cumulado com outros pequenos defeitos, insira defeitos horríveis aqui - mesmo assim não vale uma briga homérica. Não vale o latim ou o empenho de cruzar a rua quando encontra, já que somos todos tão falhos. Já que não se pode definir quais defeitos são mais horríveis que outros.
O problema é que a falta de cumplicidade dos outros me deixa furiosa. Eu reclamo, xingo, não convido. E então, num passe de mágica, num esgotamento de sentimentos ruins, meu impulso esganador passa e eu trato a pessoa quase normalmente quando temos contato. Provoco um certo distanciamento propositado, confiando menos, mas sem por as raivas na mesa. Achou hipocrisia? É, talvez seja exatamente por isso que estou escrevendo. Porque olho pra essas pessoas e vejo que, sim, já falei mal, sim, já paguei pau, e sim, daqui pra frente a atitude mais soberana é evitar as duas coisas.
Sinceridade é bom. Todo mundo (proclama que) gosta. Mas e se, como alguém já disse, for egoísmo no mais puro grau dizer tudo que acha da pessoa numa pseudo "conversa franca" apenas pra limpar a consciência, apenas pra poder dizer "sou sincera"!? Se de repente você se sente indisposto pra aturar os melindres, a ampla defesa, a réplica, o "mimimi", e só deseja dar um tempo pra ver se a decepção é mesmo definitiva!? E aí, meu caro? Manda jogar na fogueira destinada aos hipócritas do mesmo jeito, já que é tudo mais do mesmo!?
Eu não tenho a resposta pra essas perguntas. Esse texto é como um álibi, pra confirmar que não é pecado ser você: virando a cara ou querendo evitar o conflito. Talvez arcar com as consequências de todos os nossos atos, inclusive os mais desajeitados, nos torne imunes da designação de "hipócritas"... Essa palavra mequetrefe que, de tão repetida, de tão verdadeira, de tão universal (somos todos hipócritas em algum momento!) se torna desnecessária e esmaece.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Aos vinte

Estou às vésperas de completar vinte anos. Embora eu saiba que a data comemorativa significa apenas um marco convencionado, embora eu saiba que estou longe do ápice da boa forma de um adulto (como diz um texto que eu gosto bastante), eu jamais estive tão perto de uma vida com responsabilidades de verdade, maturidade e aprendizado com os erros.
É bem verdade que eu desejaria ter aprendido muita coisa antes do que aprendi. Alguém poderia muito bem ensinar às crianças que as coisas ruins tem a importância que damos a elas, mas só as experiências e decepções da vida adulta fazem isso por nós. Gostaria de ter aprendido antes que um contato inesperado pode livrar o peito de uma amarra cruel, que uma frase de efeito impensada pode ser o que distancia uma ponte de um abismo. Eu desejaria ter sabido desde o início que o mundo anda cheio de gente magoada o bastante pra merecer todos os gestos gentis, o mais repetidamente possível.
Poderia ter ficado tranquila por mais tempo por saber que absolutamente ninguém é perfeito o tempo todo. Eu me cobraria menos. Chegamos na fase mais adulta de nossas vidas percebendo que alguém podia ter ensinado às crianças que o mundo lhes dá informações demais e compreensão de menos, e que somos solidários a isso. Que também dói em nós que toda decepção depois das insistências descabidas pareça, no final, ter estampada em si um sonoro "eu te avisei" - e com a nossa própria voz. 
Eu desejaria saber desde os primeiros anos da minha vida que somos todos muito parecidos, mas que algumas pessoas são mais calejadas do que outras, o suficiente pra ter algo por dizer pra que aprendamos com elas, a fim de não sofrer desnecessariamente. Mas a verdade é que, uma vez mais, em matéria de aprendizado na vida adulta, só as experiências valem ouro. Todo o mais é metal precioso de improviso.
Eu já sei agora que a prática é o melhor dos discursos, mas até isso acontecer falei muita coisa que deveria ter calado e calei muita coisa que poderia ter gritado. E continuo falando e calando, nem sempre nos momentos apropriados, porque a vida é uma repetição de erros que quase sempre pretendem ser acertos, num processo que nunca se completa.
Eu não compreendi todas as pessoas como elas gostariam, nem agi de acordo com o que seria melhor pra todos, porque pra crescer é necessário amor próprio e, às vezes, amor próprio implica em um pouco de egoísmo. Mas lembro de praticamente todos os nomes de quem me estendeu a mão, me fez sorrir, me ouviu com atenção. E exercito, da melhor forma que posso, a gratidão poderosa dos gestos da minha mãe e a generosidade despretensiosa dos gestos do meu pai.
Eu tô chegando aos vinte anos com um conjunto nem sempre harmonioso de partidas necessárias, conselhos não ouvidos e eventos repentinos de tristeza nostálgica e alegria esperançosa. Sem saber muito bem como desapegar das coisas e das pessoas, continuo caminhando, insistindo em fórmulas que funcionam, ainda que elas requeiram um tanto de sacrifício.
Eu tô chegando aos vinte me deixando mais em paz. Vai ter amor pra quem merecer, fé para o que precisar de fé. Eu tô chegando aos vinte acreditando - com todo o coração que ainda me sensibiliza, todos os ossos que me sustentam a contragosto das quedas, todos os músculos doloridos da academia e todas as esperanças renovadas - que sempre há espaço na vida pra se reinventar quando as coisas não derem certo.
Eu tô chegando aos vinte anos cheia de defeitos. E de disposição pra convertê-los em virtudes. Reclamando menos. Coerente com as minhas contradições e contrariedades. Motivada, leve. Com menos culpa e mais inspiração. Eu tô chegando aos vinte anos descobrindo como quero ser a cada dia, pra vida inteira. Com motivos de sobra pra desejar - com alegria, clichê, otimismo e peito aberto - quantos vinte anos mais a vida quiser me proporcionar.