quinta-feira, 25 de junho de 2020

Eco [18]

Enquanto a Laura abotoava um jeans muito justo que contornou com alguma dificuldade seus quadris até chegar à cintura e parecia olhar com satisfação as próprias curvas refletidas no espelho, sem que eu pudesse esperar, me disse que sentia medo. De quê, perguntei, parvo como sempre, sem entender os gatilhos de suas confusões mentais como nunca, óbvio e literal como só eu, imaginando ou querendo que ela fosse responder algo como um medo de altura, de envelhecer ou de insetos voadores.
Ela respirou fundo e arqueou as sobrancelhas, organizando a frase seguinte e reunindo a paciência necessária pra lidar com aquilo. Amarrou os cabelos ainda um pouco suados bem no alto da cabeça e então disse que era medo de trair a própria liberdade comigo. Ao dizê-lo, não mudou o tom de voz, pra que talvez a mensagem passasse despercebida. Feito uma confissão que ignora por completo a figura do padre, mas precisa ser posta pra fora pra afastar de vez a ideia da própria divindade.
Depois ela emendou me dizendo que talvez se sentisse assim porque passou a vida negando o estereótipo da mulher que quer casar e ter filhos ou mesmo "só" achar um amor que durasse, porque se sentia um pouco anulada ao querer essas coisas. Que era como se essa vontade de ter um homem ao lado, que sim, existia, diminuísse em grande medida a sua força ou a sua independência.
Dava pra ver o quanto lhe custava dizer aquilo. O quanto deve ter reunido forças por dias ou meses até conseguir verbalizar a hipótese que agora me anunciava. E então eu não ouvi mais nada com nitidez, ou ela ficou em silêncio, eu não sei bem. Me botei a pensar que ela talvez fosse tão ferida quanto eu. Tão desgraçada quanto eu. Que ela também pudesse sentir a insegurança e o medo de se envolver mais profundamente com alguém de novo. Talvez sentisse até ciúme. A Laura se dispôs a sair de seu platô emocional pra compartilhar aquele medo comigo e o simples fato de dizer que tinha medo a humanizou diante de mim de um jeito bonito e forte, mas irreparável. Porque me dei conta de que ela tinha mesmo um medo muito grande, mas nem assim deixava de querer, muito, de todas as maneiras, o envolvimento romântico mais profundo possível, ainda que adivinhasse que enjoaria de mim ou de qualquer um que ocupasse o meu lugar assim que desvendasse a dinâmica da coisa.
Preciso contextualizar. A mulher dentro daquele jeans era até então, pra mim em especial, uma contadora de histórias. Que transava bem, é claro, mas sem deixar de ser uma contadora de histórias. E a história que a Laura mais gostava de contar era sobre si mesma. Falava de viagens, do trabalho, da infância, de sentimentos, e até sobre suas proezas sexuais. Mas percebo agora que cada uma de suas histórias contava com um véu de inverdade. Uma névoa. A Laura dava à própria vida a sua versão, num enredo peculiar, pelo menos antes de me confessar aquele medo, pra poder mudar de assunto quando eu chegasse perto de alguma profundidade. Ela era uma contadora de histórias e também uma perita em manobrar os fatos pra que tudo ficasse num terreno que lhe era confortável. Sabia adiar com beijos intermináveis o momento de que eu formulasse uma opinião a seu respeito ou mesmo conhecesse melhor os seus defeitos.
A Laura sabia preencher silêncios com diálogos, monólogos ou informações esparsas. Ela só não sabia lidar com o problema de querer. Este problema de não nos ter sido ensinado nunca como fugir do que se quer. Esta questão que implicava criar uma persona baseada em uma mentira ou duas sobre o amor e os relacionamentos e depois confrontar, muito de perto, um medo imenso da verdade reprimida. Da verdade de se envolver mais que o outro, de estar mais disposta, do desconhecido, da traição, do tédio, do desgosto e de tudo aquilo que, em mim e na minha complexidade de homem, podia feri-la tão mais fundo quanto mais fundo ela me permitisse chegar de seu íntimo.
Arrisquei perguntar à Laura se ela era capaz, apesar de tanto medo, de se enxergar de novo como o botão que atravessa um buraco feito cuidadosamente no jeans e sente que uma casa de botão é um espaço feito pra caber. Eu sei que a resposta era sim. Eu sei que a ansiedade da Laura é toda voltada ao instante em que se sentirá assim novamente. Mas ela tangenciou: "Se ninguém souber nem suspeitar que é isso que o botão quer ele não vai ter problema, certo?" E depois riu, nervosa. Ela sabia que agora estava nua diante de mim, apesar de ter acabado de se vestir. Ela queria um grande amor. E por maior que fosse a dedicação na costura de seu disfarce, agora havia uma ponta solta. Que consistia em sabermos que ninguém se movimenta livremente sem algemas entre o que quer e o que não quer. 

domingo, 21 de junho de 2020

Paladar não retrocede

Faça um combinado comigo. Quando um homem se julgar insuficiente pra você e denunciar isto naquela conversa à toa, você não vai mais revirar o baú profundo e escuro das virtudes dele pra encontrar razões que ajudem a convencê-lo do contrário. Prometa-me que você fará algum esforço pra acreditar que, provavelmente, ele está certo, se é que lhe deixa na dúvida. Prometa-me gastar sua energia lembrando que de fora se enxerga melhor. Que até ele vê. Não, não tem nada a ver com egoísmo ou soberba. Ou talvez até tenha mas, de todo modo, esse pensamento vai lhe economizar um tempo precioso. Então só tente fugir desta inexplicável vontade de se colocar em posição de salvadora da pátria. Fuja de gostar de estar em alguma vantagem nessas dinâmicas. Fuja dessa armadilha batida que armou pra si mesma. Apenas não seja mais esta desculpadora profissional de culpas que não são suas e nem foram provocadas por você. Com isso, respeite o tempo que você gastou lidando com as suas próprias culpas. Respeite a força que exigiu se tornar quem você é. Oh, não, não me entenda mal, este não é um grito de ódio ao que é masculino. Antes um incentivo. Estou me dispondo a rachar com você esta conta que, sabemos, sempre foi cara demais pra dividir com alguns deles. Prometa-me, por mim e por você, que aos homens que nos merecem não chamaremos mais presunçosos. Prometa-me que não nos acovardaremos diante deles. Prometa-me se lembrar (e me lembrar, quando eu precisar) que paladar não retrocede. Que não vai dar pra comer ovo frito fingindo que nunca provou caviar. Que o que é ordinário não supre o que é extraordinário. Que deitar no peito de alguém que não diminui esse barulho que não cessa na sua cabeça não lhe adianta pra muita coisa. E que tudo fica ainda mais deprimente se ele sabe que você poderia estar deitada em qualquer peito e escolhe se encolher pra caber no dele. Então não se deixe esquecer disso - e, se não for pedir demais, não me deixe esquecer também. Não se agigante menos pra fazer par com qualquer homem que saiba que é insuficiente pra você. Insuficiente esta noite. Ou neste momento da vida. Ou pela vida inteira. Prometa-me não ser como a onda que se dobra resignada pra morrer na areia, e sim como a força que recolhe a água de volta ao que é profundo pra produzir inexplicavelmente uma infinidade de novas ondas. Sucessivas. Fortes. Bonitas. Avassaladoras. Do jeitinho que a gente gosta. Porque o mar só é o que é por causa dessa força. E nós agora já sabemos que nada gira em torno de um homem ser ou não ser suficiente. Pra encurtar a conversa, que nada gira em torno de um homem. Pense um pouco e você vai ter certeza que nunca mais será uma musa da Bossa Nova. Quiçá nunca tenha sido. Já não nos cabe este estigma de ser só perdão ou compreensão. Já nem deve mais nos servir aquela fantasia de enfermeira (sentimental). Então talvez tenha chegado a hora de abrir a última porta. Que só abre pelo lado de dentro. Esta que varre pra longe o auto-boicote. Esta que, entreaberta, nos lembra de protagonizar nossas próprias águas de março e veranicos de junho. Tem algo incrível pra saber sobre si mesma nos próprios furacões. Nas próprias calmarias. Então, por você e por mim, lute ao lado do exército de mulheres potentes ao seu redor contra esta legião de homens meia-boca que tem nos aparecido. Porque não é. Não é. Não é. Mas se fosse eventualmente uma guerra, eles estão dizendo que sabem que não nos venceriam nunca. E agora, com esta promessa que fazemos uma à outra, nós também sabemos. Somos nossa vanguarda, escudo, arma e cavalaria. Proteja como tesouro esta certeza de só precisar ter ao lado alguém que faça páreo pra você.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Fatalista

A árvore com a qual cruzo todas as manhãs deu a entender hoje cedo, com menos de meia dúzia de folhas secas, que já não é mais a mesma de antes, como se pressentisse seu destino: nascer, crescer, florir de um dia para o outro, aos montes, de um jeito lindo, e depois ganhar a cor esmaecida do outono, caindo e fenecendo nas calçadas numa sujeira ainda viva que o morador caprichoso tratará de varrer sabe-se lá para onde.
Ficam só os galhos finos apontados para o céu, confirmando o rito de passagem. Todo outono faz desta árvore um pouco mais fatalista, mas a verdade é que ela não perde nunca a gana de florescer de novo. E se tem medo de parecer morta ou perder a cor, custa-lhe um pouco mais aceitar o que sabe bem a respeito de si mesma. Tenta se preparar para o óbvio - considerando óbvio, por alguma razão, só o que sempre lhe aconteceu de fatal.
Ansiosa pelo momento da florada e, pouco depois, pelo momento de sentir novamente sobre o tronco e seus ramos a luz e o calor do sol. O outono apenas acontece quando acontece. De tempos em tempos, sem anúncio. O outono personifica uma indiferença que a árvore inveja. O outono não só prepara para o frio do inverno como aceita lhe abrir caminho. A árvore, não. Quer confiar no destino como quem confia que haverá, depois do outono e até do inverno de Camus, alguma primavera invencível.

domingo, 14 de junho de 2020

Depois do caos a lucidez

De repente, sempre me invade a lucidez que é precedida de um grande desatino. Chega sem aviso esse momento de por tudo de volta no lugar. Prendo os cabelos num coque e estalo o pescoço, disposta. Começo sempre pela louça. Com os guardanapos de dentro dos pratos, tiro cuidadosamente os restos de comida direto na lixeira da pia, descartando as sujeiras maiores. Aproveito as mãos ainda secas e dou play num álbum deprê para dar trilha sonora à trama. Mas não consigo chorar, apesar da insistência dramática e conhecida nessa necessidade. É assim que descubro que chegou de novo a inadiável ocasião de me reorganizar: me vem sem aviso uma praticidade serena que ocupa o corpo e desocupa a cabeça. Que me faz limpar cada canto da casa para que o lado de fora reflita o de dentro de um jeito limpo e claro, e vice-versa.
Domingo é o dia ideal para uma faxina porque é o primeiro dia da semana, embora nos esqueçamos sempre disso, envoltos numa nuvem de ressaca ou de melancolia porque trabalhamos no dia seguinte. Por sorte, hoje é um domingo completamente sóbrio. Portanto um recomeço. Aproveito para agrupar todos os pratos por tamanho, no meu método. E os talheres já estão mesmo juntos e na água. Adio sempre o momento, mas conservo alguns hábitos mecânicos que facilitam o início da limpeza, quando a vontade chega. Porque sei que, na maioria das vezes, a única parte difícil de uma faxina é começá-la.
Ensaboo primeiro as taças. Fatalmente me lembro de cada gole de vinho. E me perguntando se desejo mais consumir as coisas ou ser consumida por elas, lembro também da mancha no banquinho vintage, da qual não vou me livrar tão cedo. Mas sei que não se limpa nada, dentro ou fora, sem essa disposição de tocar no que está sujo. E há também o que é novo: tiro as etiquetas das duas taças de cima da bancada porque quero poder começar a usá-las logo. Lembro que fazem par com a maior e sorrio, me dando conta de que talvez o que é antigo se quebre para dar lugar a coisa melhor.
Então fervo uma água. E vou ensaboando e enxaguando cada copo, depois cada talher, depois cada prato, depois a panela de cima do fogão e o escorredor. Conheço os procedimentos de uma assepsia completa, até secar a última gota de água de cima da pia, que agora reluz. E aí é a vez da roupa. É mesmo curioso que eu faça sempre acontecer, sem pensar muito, para sujar tudo isso dia após dia, e na sequência me venha um momento como este domingo, instintivo e fatal, no qual eu tenha de lidar com a minha própria bagunça.
Lá fora, já há dias, está fazendo um tempo feio e muito úmido pra quem quer lavar a roupa. Por isso, eu sei que vai ser difícil que essas peças sequem direito. Mas sei que hoje não vou conseguir sossegar no sofá enquanto não me livrar desse amontoado de camisas e jeans dentro de um saco plástico no chão da lavação. Além disso, daqui a pouco não teremos mais panos de louça ou toalhas de banho para usar. Então insisto, apesar de toda adversidade. Sei que é preciso um pouco de coragem e muito de disposição se a gente quer ter tudo limpo de novo.
Enquanto as peças, submersas, giram pra lá e pra cá mecanicamente, eu tiro o lixo do banheiro. Depois começo a encontrar o que passou da validade dentro da geladeira. Que coisa genial é identificar prazos de validade. Girar bem o produto, depois abrir a tampa, aspirar fundo e saber que é justamente o cheiro que denuncia que a intuição estampada no rótulo estava certa. Vou para a sacada tomar um ar depois do desespero que me dá essa epifania, em paralelo. E qual não é a minha surpresa: depois de dias sem a minha presença, a pequena horta do apartamento agora tem ervas daninhas. Arranco logo os trevos de três folhas, que são abundantes, e outras centenas de outra espécie de plantinha que eu não plantei ali. Em outros dias, eu me demoraria na ideia poética de que os passarinhos podem ter trazido estas sementes para germinarem perto de mim e que por isso é lindo deixá-las viver. Mas não hoje. Hoje é dia de faxina.
E então é hora de abrir as portas do armário, porque a roupa molhada só vai poder ir pro varal se a roupa antiga vier para o guarda-roupa. Dobro e separo todas as peças, e algumas delas terei que passar novamente pelo amaciante, por causa do mau tempo. Detida neste pensamento, me encaminho para guardar as calcinhas e meias. E vejo correr sobre as que já estão guardadas uma barata. O horror. O horror. Não há nada mais significativo acerca da necessidade de uma faxina completa do que se deparar com uma barata num lugar em que ela não deveria estar. Se é que as baratas deveriam estar em algum lugar.
Com esforço e muita batalha envolvida, mato a infeliz com duas chineladas. O nojo ainda é imenso, de qualquer modo, enquanto removo o corpo caído ao lado do tapete com um papel higiênico e atiro privada abaixo. Descarga demorada. Ainda estou incrédula. Corro para a cozinha. Vou tirar cada calcinha e sutiã da gaveta com o pegador de salada de cabo mais comprido que tiver, para o caso de haver irmãs. Peça por peça, tudo para a máquina de lavar. Era filha única. Encontro no fundo da gaveta um sabonete de kiwi muito antigo, que estava ali justamente pra perfumar o lugar, mas me ocorre que pode ter sido ele quem atraiu o monstrinho de muitas patas. Direto para a lixeira. E depois um pano com álcool, muitos panos e muito álcool, dedetizando tudo, em cada prateleira e em cada vão pelo qual outro inseto semelhantemente hostil possa transitar. É engraçado que às vezes a gente tenha que se deparar com um extremo tão grande quanto uma barata para se por atrás da causa de sua chegada. Como é que a gente faz tanta sujeira no piloto automático? Como é que a gente desorganiza a louça, a roupa, o armário e a vida, tudo sem notar? É normal, mas ainda é estranho.
Depois de tudo um banho quente e demorado, que é para ter certeza que também eu estou limpa depois da empreitada e da ojeriza. Hoje foi dia de faxina. Hoje é domingo e eu não vi - e nem quero ver - o vermelho ao redor de Marte no céu. Tudo está em paz. Hoje não há força alguma no que podia ter sido, só no que eu gostaria que fosse e no que foi. Hoje descobri o que eu vinha encobrindo. Hoje não há interpretações desmedidas no aperto da mão causado por um espasmo do sono. Hoje estou aceitando meu caos sem glamourizá-lo. Pelo contrário, hoje eu quis por fim a ele de um jeito decisivo. Hoje estamos limpas, a casa e eu. Estamos nítidas. Estamos lúcidas. Diria livres. De repente, sempre me invade a lucidez que é precedida de um grande desatino.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

O solilóquio da coruja

Se eu me concentrar, todo poste pode virar um pedestal. Digo, eu sei me aquietar, fechar os olhos, fazer de cada canto alto o meu altar, o meu templo, o meu ambiente de meditação, e ninguém sequer suspeita que eu estou à espreita. Eu tenho também essa coisa de conseguir torcer o pescoço e enxergar muito mais do que precisaria, ampliando de um jeito meio esquisito o meu campo de visão. Não é exatamente bonito me ver fazer isso, mas acho que é curioso, porque animal praticamente nenhum faz, então talvez se possa chamar essa minha aptidão de fábrica de um "talento diferencial" entre os outros animais. De cima de qualquer árvore eu posso contemplar inteiramente a vida noturna - eu, que tudo vejo, incluso na noite e no oculto, e só Deus sabe a benção e a maldição que isso é, porque já vi muita coisa boa e ruim.
Tenho fama de arquétipo da sabedoria e do conhecimento, mas a verdade é que isso só acontece porque quando se está de boca fechada, calada num canto, como eu fico quase sempre, é mais difícil que se perceba a ausência de inteligência, se for o caso. Então eu saio ganhando pontos nessa questão porque não costumo ser muito eloquente, mas não é exatamente um mérito. É por isso que não me envaideço com os rótulos que me dão no reino animal. Acho que bem no fundo eu sou só uma coruja. Sem muitos predicados. Com a minha carinha redonda, o meu nariz curvado, essa falta de lábios, a penugem meio fosca. É assim que me enxergo nos vidros espelhados dos prédios do centro da cidade, quando saio pra dar uma volta de madrugada. Normalzinha. Coruja-padrão. Garota exemplar.
Às vezes, porém (ou por isso mesmo), eu intuo a presença de alguém que pretende se aproximar. E imediatamente eu sinto uma necessidade profunda de fazer barulho e não sei bem por quê. Talvez queira ser notada. Temida. Respeitada. Talvez queira me provar que eu posso, faço e aconteço. Talvez queira delimitar um perímetro só meu pelas ondas do som, onde seja capaz de imperar soberana. E o pior é que às vezes funciona. Às vezes, basta eu fazer aquela barulheira que eu nem sei o nome, que a bicharada ao redor se contém, se acanha. E não há bicho que não cochiche pelos cantos da relva: "não chega perto, não chega perto que hoje a coruja tá terrível". Só que depois de uma meia hora fazendo barulho eu fico quieta de novo, reflito um pouco e acho tudo uma bobagem imensa. É, bom, pensando melhor, talvez o meu problema seja esse excesso de narcisismo, essa abundância de autoanálise, esse monte de pensamentos sobre mim mesma, essa intenção de fazer com que me vejam assim ou assado, essa coisa "autovenerativa" mas, ao mesmo tempo, bastante autocrítica.
Refletindo agora, é curioso que naquela noite eu tenha saído pra caçar. Faço isso relativamente pouco. Lembro de ter pensado comigo: vou dar uma de louca, depois eu ponho mais essa aventura na conta da cadeia alimentar, do instinto de sobrevivência, da necessidade de dar o que comer às crianças, essa lenga-lenga toda que os humanos fazem, sabe? Eu posso reproduzir esse discurso. O humano, aliás, que inventou essa coisa de mãe-coruja pra falar da superproteção, mas não se dá conta do peso que tem ser uma filha-coruja. E, se me detenho no tema, preciso assumir que somos todas. Somos filhas-corujas, lidando diuturnamente com a necessidade de se impor diante do mundo, de criar uma personalidade, de imprimir nossa marca na nossa própria história e, por que não confessar, de exercer em alguma área da vida a nossa vontade intensa de rebeldia.
Naquela noite eu fui rebelde. Quando me lembro, eu dou uma risadinha. É legal pra caralho de lembrar dessas coisas que eu já fiz. Faço uma cara sacana toda vez. É como se eu tivesse um segredinho comigo mesma e com aquele gato. Bom, por um lado, coitado. Talvez pra ele não tenha sido uma experiência tão divertida assim. Aquele dia me deu uns três minutos de coragem insana e eu avancei contra o chão, pra não deixar pedra sobre pedra. Não tinha ideia do que realmente ia fazer. Pra ser bem honesta, eu teria avançado no que estivesse pela frente. Precisava gastar a minha voracidade, o meu apetite de aventura. Meu lado menina-má. E, bom, era aquele gato que tava na frente. De modo que eu me lancei contra ele com força, com pena, com barulho, de bico e tudo e, lá pela metade da minha empreitada, ele se soltou. Rodopiou no ar, rolou umas dezoito vezes no chão e saiu corrido, ligeiro, ofegante. Com o coração na boca.
No fundo, não sei agora se fui eu quem fui mole na intenção ou se ele foi hábil de se livrar a tempo. Porque, assim, falando bem friamente a respeito, eu sei que o teria devorado logo e voltado pro meu "tédio contemplativo" imediatamente após a refeição. Mas digo mais e vou além: teria outro jeito? Como é que eu ia chegar naquele bichinho bonito, meio filhotão, miado manso, passinho lento, e dizer com voz macia: "com licença, senhor gatinho, você poderia por um acaso assim, quem sabe, por obséquio, me acompanhar até a minha casa pra eu comê-lo vivo?". Não dá, né. Não dá pra fazer esse tipo de coisa se a vontade é de exercer a minha própria rebeldia.
E pra ser franca eu tenho um pressentimento de que gatinhos não funcionam bem o tempo todo assim, na maciota. Eu acho que eles andam com aquela cara de sonsos e despreocupados por aí, catwalk, não sei que lá, como se nada importasse tanto assim, mas precisam também de vez em quando de uma coruja doida pra animar a vida. Ou não se enredariam manhosos nas pernas dos outros fazendo ron-ron e demonstrando gentileza. Acho que eles precisam viver coisas assim pra depois contar aos amigos "Noooossa, cara, e aquela vez que uma coruja quase me pegou e eu consegui escapar!? Foda, man...". Ou talvez essas sejam só as coisas que eu imagino ou gostaria de ouvir um gato dizendo, e a verdade é ligeiramente diferente. Nunca se sabe.
O fato é que cometo tantos gestos contidos durante o dia e durante a noite e durante a vida, enquanto vou voando silenciosamente por aí com essa minha aerodinâmica tão bem adaptada ao ambiente, que esse tipo de evento ganha um lugar especial na minha memória. Sei que enlouqueceria se não fosse um pouco louca às vezes. Tenho certeza de que eu vou fazer de novo sempre, sempre. E não é porque eu não saiba o que é agir com equilíbrio. É que eu não quero. Não quero estar no alto de um poste acima de qualquer instinto ou emoção o tempo todo. Não quero estar sempre imaculada no meu pedestal. Não quero atravessar a vida despercebida, bela e recatada. Não quero pensar no que vai ser do gatinho, no que vão falar ou na descompostura evidente pra quem me assiste realizar estes ataques famintos. Pelo menos em algumas ocasiões posso sentir, perto do chão, que há vida no alto e no chão. Que há corujas e gatos. E que qualquer existência, na natureza inteira, é sempre curta demais pra se negar o direito de arder.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Utilidade

Das receitas que eu conheço melhor para abstrair angústias e surfar nos próprios pensamentos, a mais precisa e eficaz sempre foi afundar no trabalho. Perdi as contas de quantas vezes desconectei de questões sentimentais - sempre elas - e de inconformismos de toda ordem rendendo o dobro. Sendo a funcionária do mês. Quiçá do ano. Maquinando produtividade profissional para distrair ou, pode-se dizer, para voltar a focar em algo útil. Eu sempre tive muito do que tentar me distrair.
Utilidade. É curioso que tenha me ocorrido justo este termo para problematizar o meu comportamento. Às vezes tenho algumas dúvidas sobre o que é utilidade pra mim. Sobre qual é, ou pode ser, a minha real utilidade como pessoa. Sobre o que me faz querer ser vista como alguém mais útil e distinta, especialmente quando tudo vai mal em alguma área da vida.
Bem, a verdade é que usar o próprio conhecimento a serviço dos outros talvez seja a definição mais básica e abstrata de utilidade. Fazer a diferença na vida de alguém pelo próprio trabalho é útil. O sentimento de dar o meu melhor pode me ser útil. E fazer dinheiro, é claro, é uma consequência bastante útil. Resgatar a praticidade no cotidiano do meio da confusão mental sempre foi útil. Trabalhar é como ter os pés na terra, na realidade.
Eu poderia falar de qualquer coisa sobre missão aqui, mas hoje não quero pensar que haja nada de místico neste tipo de arranjo. O contexto não me permite. Não quero pensar em vocação, ou em privilégio, ou em talento. Ou nas coisas que desempenhamos sem esforço, como se fosse um dom, e pros outros pode valer muito mais. Hoje quero me deter na reflexão sobre estes instantes em que sinto a necessidade de fugir de mim. Na razão para criar este mecanismo de redirecionamento de energia que pode ou não funcionar, e por quê. E como.
No início da semana, voltou a me ocorrer que eu poderia ter e levar a sério uma causa ou duas. Fazer trabalho voluntário, por exemplo, abdicando daquele pensamento de que a filantropia é apenas uma face altamente vendável do mau caratismo humano, usado para equilibrar os freios da condescendência consigo mesmo. De todo modo, eu poderia invocar das profundezas do meu idealismo algumas paixões sociais. Pulverizar minha mão à obra para outras obras. Militar na internet, mas não só. Desempenhar também ações mais afirmativas para me sentir, de novo, útil. Seja lá o que pudessem ser essas ações afirmativas. Eu poderia me dedicar a descobrir algumas outras utilidades para não manter todos os meus ovos na mesma cesta, como dizem. Eu poderia empreender com mais objetividade o caminho das minhas outras inquietudes, para testar se diminuem.
Sei, porém, que só estou pensando nisso tão detidamente porque, cá entre nós, a minha principal fórmula não tem funcionado. Ou não tem bastado. Ou, pelo menos, não me tem sido tão eficaz quanto já foi um dia. Neste momento exato, é como se o trabalho não cumprisse sua função precípua de me reorganizar. De me justificar. De me tragar inteira e me soltar feito fumaça, filtrada pelos pulmões do aparelho de bater o cartão de ponto, melhor do que entrei.
Oxalá o trabalho volte a ser em breve tudo que já foi pra mim um dia. Fonte inesgotável de recompensa para a dedicação e do sentimento de utilidade. Até lá preciso, minha nossa como preciso, preciso muito, preciso avidamente encontrar outras fórmulas igualmente eficazes para despejar a minha intensidade em coisas menos potencialmente decepcionantes e lesivas do que... pessoas.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Da cintura para cima

Com licença, preciso confessar que vou tentar despi-lo depois de despi-lo. Com uma incisão que rompa o couro e o resto, vou tentar encontrar um caminho por debaixo da pele, em busca da segunda camada detrás da que fica à mostra. Uma incursão nas entranhas que faça jorrar o sangue e ponha para fora o que é bonito e o que é feio - e sobretudo matéria viva e pulsante, que por isso não admite maquiagem. Tenho tentado explicar que só gosto do quente e do vermelho imperativo de dentro. É esta profundeza de todos os seres e, em especial, dos objetos de desejo, que alimenta a minha curiosidade. Que me põe alerta e desejosa. Que me veste com chapéu camuflado e cadeira de praia e desafia os meus anzóis para depois da pescaria. Inspirada por cada etapa desta expedição à natureza selvagem das coisas. Muito embora não saiba o que encontrarei ou o que farei com o que encontrar, eu só me sinto confortável se houver entre nós alguma identidade de âmago. Algum segredo insuspeito e confessado por querer. Alguma neurose reprimida e inédita, mas agora compartilhada. Se a nossa essência corresponder, afinal, no que for essencial. Se houver uma parte mole e praticamente inacessível guardada em algum lugar no ventre ou no peito, quase intocada, que ainda se possa manejar ou curar ou esculpir a dois. Da qual se possa falar a respeito depois de beber vinho tinto. In vino veritas. Eu poderia, eu bem que poderia sumir antes dessa vontade insana me aparecer. E admito mesmo que seria mais confortável não permitir que cresça outra vez em mim esta obsessão sentimental pelas vísceras. Se eu não fosse eu, anunciaria o sumiço de véspera e de fato teria forças para sumir, evitando a carnificina. Mas, a despeito das suposições, eu me conheço bem. E me conhecendo bem, qual não é a minha surpresa: talvez já seja tarde demais. Agora já tenho de novo uma faca afiada em punho e um certo talento de estripadora, bastando pedir licença para iniciar a minha obra. Agora já acredito que haja algo muito intenso e vermelho vivo para além das tuas escamas desbotadas e verdes. Com sorte, terei tempo para encontrar. Para confessar que te quero mais e também ou principalmente da cintura para cima. E que do depois espero que possamos fazer, juntos e rápido, a sutura desse corte que, com sorte, não vai deixar marcas. Com sorte, descobriremos a tempo se nossa matéria-prima coincide. Com sorte, também tens desejado tirar a camiseta para mim num reflexo de intimidade, sem pensar muito a respeito.