quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Uma madrugada doentia e um (breve) relato meramente desnecessário

De saco cheio. Expressão que designa um estado psicológico de falta de ânimo frente à necessidade de insistência em determinada ação.

- ópera -

São quase duas da manhã e todos dormem. Estou estudando para uma prova de Psicologia Jurídica. Fiquei impressionada com as últimas notas abaixo de nove e decidi me doar pra valer a esse negócio nomeado faculdade, o que inclui passar madrugadas "em claro". Até o fim do semestre quero retomar os dez'es com três ou quatro estrelas a que estou habituada, por meritocracia (como andam dizendo os políticos) e, enfim, a dedicação faz parte desse show. Mas, meu caro, antes este fosse o motivo do post. Só que: O problema é bem outro. Estudando para a minha prova de logo mais à noite, descobri que estou doente. Muito doente. Chama-se transtorno de personalidade limítrofe, ou Borderline. Preencho muitos critérios do texto imenso que consta na Wikipedia. Diria boa parte das frases citadas lá como "Pensamento Borderline", se você quer mesmo saber. Isso é sério. Oscilação intensa de humor. Má conduta. E, alguns parágrafos abaixo (nem cheguei à guia "Tratamento") descubro um agravante: Transtorno de personalidade histriônica. Lá vem a Wikipedia relatar, com precisão, muitos dos meus sintomas. Agora já são duas doenças. Começo a tossir sentindo a imunidade debilitada. E digo mais! O hyperlink "Narcisista" constou do estudo. E eu via a minha cabeça no corpo do Hermafrodita de Mazarini, logo depois de ler que isto também é um estado patológico, e não mera condição. Volto à pagina inicial. Google e a imagem em comemoração ao cinquentenário dos Flintstones. Digito "Freud pai da"... E agora? Psicologia ou Psicanálise? Vacilante, deleto tudo e escrevo outra vez: Só "Freud", nesta última. Inovações-divã-cocaína. Até aí, ainda que ok. Ok o que? Libido não tem acento? Nunca precisei escrever libido em editores de texto com correção ortográfica. E os humanos nascem polimorficamente o que? Perversos!? Chega de Freud. Já estou doente mesmo... Não quero saber que nasci poliformicamente... Droga. É polimorficamente. Você entendeu. Google. Gestalt. As figuras dos slides da professora convidando a clicar em imagens. Resisto. Wikipedia. Psicologia da forma. Wundt. "Uma cadeira é mais do que quatro pernas, um assento e um encosto." What? Não me venha com imagens subliminares. Quero estudar para a minha prova. Lembrei da caixa dos ratinhos. Skinner. Behaviorista. Eita palavra difícil de encontrar pronúncia pacífica! Não sei a origem dela. Anotação mental: Procurar origem geográfica do Behaviorismo. Enter. O que? Esse cara se chama Buhrrus? Assim, tão parecido com burros? A fonte etimológica é mesmo fundamental. Anotação ao lado de "Procurar origem geográfica de Behaviorismo" = Importante. Muito bem. Podemos prosseguir. A vida de Skinner. O cara se confessou rebelde declarado no último ano de faculdade? Não acredito. Prossegue. Elementar, meu caro Watson. Behaviorismo tem tudo a ver com o tal do Watson. Vou precisar lembrar disso na prova. Seguida. Experimento com pombos. Esses caras realmente acham que vão entender sobre mim por um experimento com um pombo!? E, mais do que isso, a professora disse que a caixa era com ratos, não mencionou penas e asas. Descoberta importante. A caixa de Skinner tinha luzes e comida, e pombos. Críticas. Referências. Ver também. Hm, ver também com link para Behaviorismo parece adequado. Clica. Termo americano, termo inglês. Comportamentalismo. Parece mais fácil de lembrar, apesar das dezoito letras, se é que a minha matemática está funcionando. E introspecção é um bom termo. Para relacionar a psicologia, por exemplo. Ok. "Abandonar, ao menos provisoriamente, o estudo dos processos mentais para o comportamento observável". Vamos encarar a casquinha como objeto de estudo em detrimento do recheio. Arriscado. Neobehaviorismo mediacional. Nome complicado. Coisa pra psicólogo. Pula o item. Um rato sabe o caminho para o alimento em uma caixa de Skinner. Ratos ou Pombos? Questão controversa. Maldita fonte de pesquisa. Amaldiçoada seja a democracia wikipediana. Vou pela professora, que falou em ratos. Mas acho que ela disse acho. Acho que eram ratos. Parece tão confiável quanto a Wikipedia. Que seja. Google. Olhadela na tela de contatos do msn. Interessantes offline, interessantes com status "dormir", interessantes... Prova de Psicologia. Bipolar. Sempre quis saber mais sobre isso que eu digo que sou toda hora, sem diagnósticos. Digito. Dessa vez, o primeiro resultado é um site novo. Psicosite. Parece ruim. Imagem mal editada. Anúncio de um livro sobre Transtorno Borderline. Lembro da minha doença e as pálpebras pesam, talvez por isso. Leitura. "Provavelmente nos próximos anos surgirão novos subtipos de transtornos afetivos". Raios. Já não me basta ter de estudar tão adoentada, e nos próximos anos o meu conhecimento estará obsoleto? Ninguém merece. Bipolar não é o que eu pensei que fosse. Insistirei em usar o termo a meu modo subjetivo, em todo caso. Espiada na caixa de entrada do Gmail. Nada. E quem seria louco psicologicamente transtornado de me enviar um e-mail às quase três da manhã de uma quinta-feira como essa? Por quê? Nem Freud explica. Maldita libido sem acento. Ctrl+Schift+N. Janela anônima do Chrome. Qualquer novidade a respeito... Nada. Tentativa frustrada. Eu te odeio, não me abandone. Pensamento Borderline. Alt+F4. Google. Psicologia Moderna. Termos gregos. Muitos. Personalidade. Depressão. Comportamento. Mais do mesmo. Resumão da madrugada. Estruturalismo. Funcionalismo. Perspectiva. Perspectivas. Alcanço o caderno do criado-mudo. Acho o termo criado-mudo estranho. Abro. "A psicologia surge com as ciências humanas para examinar, medir, analisar e classificar os diferentes dispositivos organizativo-administrativos que individualizam os homens - seres sensitivos, perceptivos, emocionais e volitivos." Não entendi nada. E acho que vou vomitar. Deve ser a doença. Revisando Galton, Lombroso e Pinel. Google. Pinel. Bingo! Há relação entre o termo vulgar, no Brasil, e o sobrenome do cara. Como era de se esperar. Google. Patologias psicológicas. Brasil Escola ponto com. Susto. Já tive oito das catorze patologias citadas. Ou pelo menos achei que tive: Ansiedade, Bulimia, Claustrofobia, Depressão, Doenças psicossomáticas, Hipocondria, Histerias, Neuroses, Síndromes maníacas, Transtorno bipolar. Pera aí, são dez. São dez, algumas no plural, acrescidas das já detectadas ao longo deste aprofundado, meticuloso e imparcial estudo.

- resumo da ópera -

São quase quatro da manhã, agora. Talvez eu sobreviva até a próxima noite para responder questões discursivas
, talvez não. Talvez surte de vez, tão enquadrada em tantos posicionamentos teóricos contrários que eu estou. Wundt, Watson, Galton, Skinner, Lombroso, Freud-pai-de-todos, o mindinho e até o fura-bolo. Estes e todos os outros. São muitos os transtornos que eles criaram para mim, e inclua-se na lista a bendita prova que - no auge das minhas enfermidades - parece agora insignificante. Ironias à parte eu descubro, para me repetir nas metáforas, que estou para a Psicologia Jurídica (e para todas as infinitas outras áreas de atuação de um psicólogo) como um cavalo marinho está para o deserto.
Destarte, me fecho para toda teoria. E abraço. Minha idiossincrasia.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Matando coelhos com paragrafadas

Ei de lhes contar, pois, a minha proeza da noite passada. Preste atenção. Eu estava deitada de bruços com os olhos semiabertos. Desvio, mínima, os pensamentos para o resto do quarto e a espinha gela. Afasto largamente as pálpebras e, em grau assombroso de dilatação de pupila, avisto – iluminado por um feixe difuso de luz – o algoz daquela experiência. Meu coração começa a bater mais forte e eu giro a barriga para o alto, confusa, a fim de refletir a respeito da olhadela dada. Paro para pensar no ser cruel e estranho que me tornei, achando normal toda aquela composição da cena nitidamente assustadora.

Foi a centésima vez que notei sua presença noturna e, pasme, não me importo mais com isso. Já não o vejo mais como da primeira vez, respeitosa de sua imponência, temerosa de sua compreensão propositadamente dificultada, curiosa de sua história. Eu o vejo como um monstro a ser devorado, ou um dragão a ser vencido, um jeito de se dar bem na vida: Com duplo sentido. Dito de outro modo – vi agora, já, nessa noite, em várias outras, o que programadores veem ao ligar suas máquinas, o que costureiras veem ao sentar em suas cadeiras, o que cabeleireiras veem ao tatear suas gavetas, o que mecânicos veem ao abrir suas maletas: Um meio de chegar ao sucesso. Uma forma de prosperar. Uma ferramenta. Que será trocada quando for conveniente, mas que antes desgastará, puirá, anacronizará, envelhecerá. Hoje olho nos olhos do vigor – físico – que ele não ostenta e só pondero sua eficácia, sua legitimidade. Eu sou como “os meus”, afinal.

Ah! E também enxergo nele o veneno com o qual meus oponentes tentarão me fazer convalescer. E o carrasco está tão descaradamente presente, dessa vez! Ele me ocupa pelo menos um dia da semana. Poderia estar entre os outros, é bem verdade, disfarçado de comum, jogado às traças. Poderia estar dentro do armário, ou junto com os mais importantes. Mas nessa noite, nem uma coisa nem outra. Estava lá, sorrateiro, iluminado por precário resquício de iluminação pública vinda da rua, encarando minha vã filosofia pré-sono na madrugada, velando os meus pensamentos em todo o muito que eu era há uns sete meses atrás. E no pouco que sou agora, em sua presença.

Olha lá, mire bem, mas veja com frieza!!! Você precisa concordar. Com efeito, é óbvio que tão somente eu o fito nessas circunstâncias atuais, à noite, a sós, indefesa. Mas desejaria que você pudesse enxergá-lo sob a luz de tudo que vivi nos últimos tempos. Aposto que também perceberia, arrisco dizer com muita clareza, que ele é uma das causas e efeitos de todos os testes vocacionais que nem fiz. Um produto. Da minha vontade de reviver a semana de boas-vindas no ingresso à faculdade, minha expectativa para ir à primeira festa acadêmica, minha euforia ao subir as escadas da Unidavi como quem sobe um palácio, minha ideia de que poderia ter sido diferente, minha saudade de ser a novata estupidamente preocupada com absolutamente tudo que eu fui, com orgulho (até para o que eu não precisava) nas primeiras semanas. Vendo-o com os óculos de agora ele significa só um símbolo distorcido da inocência com que eu o respeitava até certo tempo. Ele ali, estático, cheio de palavras repetidas e a mercê das minhas interpretações, só denota que tenho saudades, de ser caloura, por exemplo, nos cem mil sentidos genuínos que a palavra pode possuir.

Estou falando que o que eu senti ontem à noite foi dúvida misturada com nostalgia. Talvez você tenha se enganado logo de início, esperando emoções lascivas ou aventuras amorosas. Nada mais e nada menos a relatar sobre, contudo. Está concluído o raciocínio: Ele não é, nem de longe, um Johnny Depp com síndrome de maníaco do parque, me olhando dormir, nas trevas, esperando para atacar. Quando muito, ele é um Código Civil na mesa de cabeceira. Desafiador. Isso mesmo. Está dito. Só um Código Civil. Mas me fazendo pensar... O que muda a coisa de figura.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

"E que a minha loucura seja perdoada..."

"Pretendeis misturar o fogo com a água, pois a Loucura e a Prudência não são menos opostas que esses dois elementos contrários. — Não obstante sentir-me-ei lisonjeada por vos convencer disso, desde que continueis a prestar-me vossa gentil atenção. Se a prudência consiste no uso comedido das coisas, eu desejaria saber qual dos dois merece mais ser honrado com o título de prudente: o sábio que, parte por modéstia, parte por medo, nada realiza, ou o louco, que nem o pudor (pois não o conhece) nem o perigo (porque não o vê) podem demover de qualquer empreendimento. O sábio absorve-se no estudo dos autores antigos; mas, que proveito tira ele dessa constante leitura? Raros conceitos espirituosos, alguns pensamentos requintados, algumas simples puerilidades — eis todo o fruto de sua fadiga. O louco, ao contrário, tomando a iniciativa de tudo, arrostando todos os perigos, parece-me alcançar a verdadeira prudência. "
Elogio da Loucura - Erasmo de Rotterdam

terça-feira, 21 de setembro de 2010

"Minha técnica negativista"

Acordei atrasada. Estudei coisas que, excepcionalmente, não entravam na minha cabeça. Não almocei, e choveu. Concomitantemente. Tive uma tarde longa, e entristeci. Quando tudo já parecia péssimo, mas eu mantinha o equilíbrio sobre as botas, veio a noite, derradeira, quando Matheus me disse: "Você já teve argumentos melhores" e eu desabei. Não no choro, embora desejasse, mas no desespero. Ele sabe pouco sobre mim, só que sabe o suficiente pra compreender que não se é rude por puro cansaço. E que não se ri abusadamente, solitária, sem motivo, a menos que se esteja em cacos. E Matheus sabe disso não porque é especial, embora seja, mas porque há coisas que todos nós sabemos sem esforço. "É que já estive apaixonada", respondi. Ambos sabíamos o que aquilo significava. Estar apaixonada é um estado de graça. E, repito, ambos sabemos. Que eu não estou. Mas só eu tenho convicção de que isso não pode ficar fora dos meus planos ou as coisas perdem o sentido. Só eu sei o quão catastrófico é não ser a companhia da festa, e só eu sei o quão entristecedor é não ter alguém pra ficar sonhando acordada enquanto se olha o quadrinho de beijo com bordas de ilusionismo. E me resta o sono, tão confortante, tão acolhedor. Passado um dia tão ruim, ficou um gosto amargo de estar praticando a "técnica negativista" de Gustavo ao contrário. Ficou uma expectativa além da medida. Ficou o desespero. Ficou também a nota 8 que não é do meu feitio, um oco no estômago, um amigo sincero me dizendo sinceridades e um nó na garganta. Sem esquecer da certeza de que eu já fui melhor, é claro! Faltou dizer que ficou, por último, o anseio de gritar que quero a minha vida feliz, de direito, de volta. Apesar de não acreditar muito em truques de mágica.

Mas deixa estar, que essa tal técnica negativista não há de me falhar - ainda que tome dos meus olhos largas parcelas dos sorrisos.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Cachorros e faltas.

Estou aqui pra me redimir da metáfora imprópria sobre os cachorros na noite de ontem. Na real, minha história com cachorros é diferente, não posso reduzi-los ao azar que, aliás, nunca me causaram.
O último do qual adquiri lembranças mais ternas foi o cachorro da vizinha, na última cidade em que moramos, há cerca de dois anos. Como a porta "deles" ficava mais perto das escadas do que a nossa, o carteiro, uma visita ou os meus pais não conseguiriam chegar ao 202 - que era nosso apartamento no fim do corredor - sem antes provocar a fúria do cão que, sem ver uma única vez, apelidei de Campainha. Campainha latia enfurecidamente, dioturnamente, e não me assustaria sabê-lo um Rottweiler. Até que um belo dia a vizinha se mudou e o cachorro foi com ela.
Saluque, com sílaba tônica no ú, um cachorro da raça(?) bassê (com aparência de linguiça mesmo), marrom (como era de se esperar), é memória da infância. Ficava no quintal da avó Cecília e do avô Nelson e era um membro efetivo nos almoços de domingo. Me lembro das tias todas em casa, solteiras e assíduas frequentadoras de Otacílio Costa. E digo isso pra frisar que lembrar do cãozinho me faz rememorar o clima que a família possuía naquela época e da casinha de Saluque em um local estratégico. Um belo dia, ele morreu de velhice. Anos depois, seria substituído por Escube (com grafia própria, assim consagrada no registro de tinta verde impresso em sua casinha há algumas semanas).
Amigo, um dos cães que a avó Landa e o avô Moacyr já tiveram, ganhou o nome pela companhia que prestava, conhecendo o ronco do carro do avô muito de longe e indo ao seu encontro. Creio que fosse vira-latas, mas não saberia precisar sua aparência muito mais do que dizer que ele era branco com algumas pintas marrons. Lembro que, quando do seu falecimento por atropelamento, todos se entristeceram com a ausência temporária de Amigo, apesar de a morte garantir que ele não mais engravidaria Lala, a pinscher (ou pincher?) que a Thayane tem há muitos anos e sempre foi com a minha cara (ou, ao menos, com as minhas canelas). Amigo provocou uma lacuna ocupada por Mancha, que levou esse nome por conta de uma mancha mesmo, perto do traseiro.
E no entre-meio houveram também os meus cachorros. A primeira, apesar do esforço, eu não lembro do nome. Talvez Lilica, de Lilica Ripillica, a famosa marca de roupas infantis femininas. Mas não há indícios muito concretos em minha memória de que seja esse, de fato, o nome dela. Sei bem certo que ela era vira-latas e que eu pedi aos meus pais se poderia ficar para fazer companhia à Dorotéia - a Dot (dos Animaniacs), que era minha tartaruga - no rol dos animais de estimação da nossa família. Eles consentiram mas não durou muito porque ela logo contraiu(?) pulgas e tornou-se muito desobediente aos meus comandos com voz imperativamente falha dos 5 ou 6 anos. Meu pai a doou para um amigo antes que ela engravidasse e nos desse Liliquinhas desobedientezinhas.
Mais tarde, Lilica seria sucedida por Tigor. O último da minha extensa lista de dois cães ao longo da vida. Escolhido entre três ou quatro cachorrinhos por ser o "mais calminho", custou uns 80 reais aos bolsos do meu pai, que tinha tanto gosto quanto eu naquela compra. Meu primeiro contato visual com Tigor foi por uma janela de fundo de casa, onde o antigo dono os mantinha. Ele era o que tinha a cor dos pêlos mais parecida com a Lassie, do filme. Tigor era um Collie ainda filhote, não devia passar de 30 centímetros de altura quando foi morar em nossa casa e recebeu o nome de uma marca de roupas para meninos (que, por sinal, fazia par com a Lilica Ripillica. Bem se vê, por conseguinte, que a hipótese de um dos meus futuros filhos se chamar Colcci, Dolce ou Triton não está plenamente descartada).
Tigor era distração. Uma distração que latia à noite de saudades da cadela-mãe, fugia pelo menos 5 vezes por semana e sabia muito bem os piores pontos da grama para fazer cocô. Que eu é quem limpava, é claro. Aprendeu que não podia entrar em casa, e paralelamente, descobriu a estante de calçados, o que provocou certo ânimo desmedido àquele cachorro que só fazia crescer. Destruiu infindáveis pares de chinelos, sandálias e sapatilhas. E o que não foi destruído, ficara com marca de dentes. Passados muitos meses, meu pai se deu conta de que ele havia ficado grande demais para sua casinha, para nosso pátio, para brincar comigo, para tudo. Aliada a vez que caí nas escadas e fiz uma ferida que tomava conta de uns 60 por cento do meu joelho e, na primeira semana, foi coberta de pêlos durante um banho-de-verão no Tigor. Um nojo. E ele crescia e crescia, e comia e comia. Decidimos que ele merecia partir. Lá pelas tantas, cheguei da aula e descobri que meu pai havia doado Tigor ao pai de Joana. Lembrei-me do seu pêlo macio, dos passeios nos quais ele me conduzia, das fugas históricas de encontrar um dia depois, e me dei por mim de que Tigor não voltaria nunca mais.
Hoje, ao visitar Joana e ouvir latidos do cão - que apoiado às patas de trás é notavelmente maior que eu - não deixo de sentir certo pesar por não ter podido acompanhar seu crescimento de perto. Mas não olho muito pra onde ele está, já que nunca tive a decência de dizer adeus. Que seja. Seja por motivo de mudança, substituição, por partidas "para sempre" ou perda de controle da situação, todos os cães da minha vida se foram, e eu sempre evitei despedidas muito demoradas porque nunca fui boa com elas. Desviar os olhos da presença, - do Tigor - por mais imaturo que pareça, há muito se tornou o meu jeito de lidar com a imensa falta que os cachorros trouxeram.
E com a de alguns humanos, também.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Entre aspas

"Tem me acontecido uma coisa estranha. Cada vez que penso na expressão jogar tudo pro alto, imagino a coisa jogada se espatifando no chão e sinto um pouco de dó. Mas não é uma dó que me motivaria a estender a mão para os fragmentos: Antes o contrário. Imagino que precisa haver motivos muito sensatos, coerentes e incontestáveis para a tal da jogada. E se há? Bem, se realmente há, em todos os sentidos, que pena que me dá."

Achei que esse devaneio ficaria bem entre aspas.

sábado, 4 de setembro de 2010

E antes de dormir... ou: Coerência nunca foi o meu forte

"A verdade é que eu gasto tempo e energia demais querendo mostrar pra você que eu não tô afim de porra nenhuma, quando na verdade eu sou um sim gigante. Um sim enlouquecido para correr e abraçar um gênero, uma nomenclatura. Eu teatrizo um não do tamanho do sistema solar, com todas as falas de menininha sem ciúmes e aquele ar de idiotamente indiferente, quando na verdade, gêneros me interessam. Festinhas do seu avô me interessam. Te apresentar para o meu pai, dormir de conchinha, fazer cosquinha, beijos de olhos fechados, coração de chocolate, mãos dadas no sofá, uma música pra chamar de nossa, me interessam.
Todo mundo fala, que eu preciso gostar de mim pra gostar de você. Mas eu não consigo deixar de olhar pra dentro e ver uma metade de nós. E quer saber? Que se danem os divãs e os livros de auto-ajuda. Eu sou mesmo uma metade da gente, mesmo sem o outro pra ocupar o lugar do nós, mesmo sem gêneros, mesmo sem complementos quando eu falo que você é meu e que se dane, coerência nunca foi meu forte." Mariana Vasconcellos

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Sobre choro, fugas e coxinhas

Devia passar das oito e quarenta daquela noite quando a angústia ultrapassou os limites do incontrolável e os olhos se encheram de lágrimas umas quatro ou cinco vezes enquanto tentava me concentrar na dialética, na dicotomia, nas maçãs e pizzas ou no raio que o parta. Fechei os olhos, abri e olhei pra dupla de lâmpadas fluorescentes tubulares porque tinha certeza que olhar para os taquinhos fétidos ou para os rodapés teria sido ainda mais prejudicial. "O seu cérebro reagirá de maneira a ficar mais triste se você inclinar a cabeça pra baixo", foi o que o meu professor de educação física disse quando eu ia na sexta série, depois de ralar os joelhos e desabar em um pranto compulsivo e solitário com os braços cruzados e a cara amarrada. Eu não sei em que filosofia/biologia/ciência ele se apoiava, mas creio haver alguma relação entre a cabeça baixa e um choro que teria sido capaz de destruir minha imagem em termos de maquiagem e minha imagem em termos de reputação de senhora de si, construída a base de muita tristeza engolida naqueles meses.
Eu precisava de um álibi e minha carteira vermelha fora escolhida para comparsa-facilitadora-da-fuga. Passos apressados até a terceira repartição do banheiro feminino do segundo andar, em frente à sala 200 e lá vai pedrinhas. Me encostei na porta garantindo o sinal de ocupado e disse em voz baixa: - Merda. Eu sabia o que aquele merda significava melhor do que o par de garotas do lado de fora que discutia sobre um louro de camiseta vermelha que haviam encontrado no corredor. Eu sabia que um merda pode ser sinônimo de a minha sexta-feira fracassou, e eu sabia que aquele - mais do que todos os outros merdas - apontava para minha franqueza sobre a minha fraqueza. Me escorreu uma lágrima de rímel, ligeira, que eu tratei de limpar assim que saí do meu esconderijo, seguidamente aos retoques de pó compacto. Pois bem, murmurei. Se ninguém compreende uma pseudo-diva, também não compreenderá um urso panda na forma humana e gênero feminino.
Titubeei em virar para a esquerda ou para a direita na saída. E essa dúvida carregava a decisão entre espairecer ou morrer chorando de cabeça baixa no meio do tédio. Cruzei o hall do bloco E até a área azul como quem cruza um campo de batalha. Breve, lacônica, certeira. Foi o tempo que bastou. - Frito ou assado? O senhor da cantina me perguntaria. "Frito", respondi, na precisão de que era a pior das escolhas - quanto mais, se eu acompanhasse este "frito" com uma coca-cola de proporção assombrosa quando comparada ao meu pequeno apetite.
Me sentei em um lugar estratégico: De lado para uma ex-amiga, de frente pra um grupo de uns oito garotos que me veriam se sujar com alguns farelos enquanto devorava uma coxinha de frango sem usar guardanapos, por vontade própria. Aquela era a situação mais patética em que eu já havia me enfiado publicamente - e de propósito - em menos de dois semestres de faculdade. Eu quase era capaz de rir imaginando os comentários no mesmo instante em que eu me levantasse, dizendo qualquer coisa sobre eu ser uma maluca depressiva ou um projeto de gordinha tensa. Era com esses olhos que a senhora da limpeza olharia pra mim ao me ver devolver o frasco de mostarda e regressar tomando o último gole com os canudinhos que já faziam o inconfundível barulho de acabou, baby. (Não falam, mas se falassem era exatamente isso que diriam).
Não sei se é muito sensato dizer que o preço para redescobrir a coragem e a confiança em si é menos de $5 na cantina do Tio Willy, mas direi mesmo assim. Um cartão para adquirir uma coxinha pode não ser um passaporte para ingressar no país das maravilhas, mas isso muito pouco importa quando a única coisa da qual se precisa é sair de trás do véu de delineador da Avon pra provocar emoções ridiculamente novas. Devia passar das dez quando, de estômago cheio, desfiz a trança do cabelo com maestria e desejei lavar o rosto como quem diz ao mundo: Estou aqui pra isso mesmo e me basta saber que sempre haverá a chance de um recomeço.

***

" (...) Pois bem, quando eu consigo fingir, não é por muito tempo. Pasmem: sou colorida, cheia de vida e amor pra dar, mas estou longe de ser uma pessoa alegre a vida toda. Durante o dia, meu raciocínio frita, meus hormônios borbulham, o coração dá nó, os olhos incham e meu humor oscila durante vários turbulentos momentos. Tom-sobre-tom? Inexiste. Meios termos? Desconheço. Quando sou feliz, sou admiravelmente feliz. Quando estou mal, me deixa, eu choro rios. E eu me permito ficar mal. Valorizo cada dorzinha do lado esquerdo do peito, cada vácuo que surge, assim, involuntariamente, no meio de uma noite de sexta-feira sozinha em casa. Valorizo e me permito, principalmente, passar uma noite de sexta-feira sozinha em casa. Eu e eu. Suficiência e pausa. Dois hiatos mudos que só eu sei sobre. A minha felicidade é feita por momentos, não um estado de graça que dura 24 horas no controle remoto. Eu não vou ficar sustentando sorrisos embasbacados nem guardar uma mágoa que um dia vai me dar um câncer. Se eu quero sofrer um pouco, não há santo que me tire do muro das lamentações, se eu não estou a fim de sorrir, não há beliscão da minha mãe que me faça ser simpática. Realmente é muito fácil ser feliz com a vida que eu tenho. Só faço o que eu quero e tenho tudo que eu gosto. Claro que o contrário não se encaixa, nem sempre faço tudo o que eu gosto e não tenho tudo o que eu quero. Mas, com tanta porcaria aí nos noticiários, é fácil desligar a televisão, evitar o soco no estômago e continuar sendo feliz. Difícil mesmo é ter uma sensibilidade berrando (...) Eu poderia, claro que poderia, estar aqui mostrando meu lado alegre, rodeada de amigos, festas, bebidas, amores, brincalhona, engraçada, mas optei pelo caminho inverso. Oi amigos, eu sou assim. Lamentando ou não, querendo ou não, eu sou assim. A vida é curtinha, eu não vou perder meu tempo levantando a bandeira do masoquismo e tentando ser quem eu não sou. Tenho maturidade, jogo de cintura, espírito de liderança, personalidade formada? Minha mãe diria que não. Ela quer me ver longe de qualquer tumulto, qualquer intriga, qualquer exposição. E pensando bem, asas são quentinhas. Mas se eu preferisse a comodidade não tinha levantado da cama desde o dia que (...) confundi desamor com pouco amor. O que eu sei é que eu não nasci assim, mas também não cheguei ao ápice da boa forma de um adulto. Eu sei aonde quero chegar, mas não sei como fazer para não deixar partes de mim pelo caminho. Eu sei o que eu quero e o que eu gosto, mas talvez eu ainda não tenha aprendido como conseguir, pedir, latir, gritar para ganhar. Eu só sei que eu quero. Quero agora, nesse segundo, com os olhos, boca, fígado e coração implorando." Mariana Vasconcellos

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Não esqueça...

A conduta ideal para extinguir um encantamento (meu):
( ) Preocupar-se demais, não disfarçar nem um pouco.
( ) Não gostar do meu teatro, não disfarçar nem um pouco.
( ) Não sentir minha falta, não disfarçar nem um pouco.
(x) Todas as anteriores, quando unidas, são letais.

-


***
....que podia ter sido diferente.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Dias de montanha-russa

Por volta das 7:30h, talvez mais, talvez menos, fui acordada pelo meu pai, que avisaria sobre não almoçar em casa. Repetiu duas vezes para ficar acertada a informação e eu limitei a fazer um "uhum" preguiçoso, e não perguntei o motivo de sua ausência, dadas as circunstâncias. 30 minutos depois meu celular despertaria, irritante. Eu demoraria cerca de 15 minutos, os que seguiriam o alarme, para de fato fazer os primeiros movimentos no sentido de acordar, que consistiriam em ler uma mensagem de boa noite recebida no adormecer passado e respondê-la; e depois ajeitar os dois travesseiros contra a cabeceira da cama em qualquer posição entre o sentar e o "deitar-com-a-cabeça-na-vertical". Sem ideia de tempo, passei longos minutos formulando conspirações imediatistas para logo mais, com a certeza de que a ação não dependeria apenas da minha intenção, o que me intrigava. Conspirar pouco adiantaria, pois. Romantizei mentalmente um monólogo jusitificando a atitude, em vão, já que nem eu estava plenamente convencida, e por isto as chances de persuadir outrem se reduziriam para quase nulas. Enrolei os cabelos com a mão, em uma metodologia estranha que ensaiava um nó, exatamente do jeito que faço quando a situação me parece fora de controle. Alcancei o livro do Caco Barcellos na cabeceira, e percebi que o esmalte dos indicadores precisava de retoque. Devorei dezenas de páginas, tentando esquecer que o espaço da folha em branco entre um capítulo e outro bastaria para desviar a atenção muito além da história do traficante Juliano VP. A calça cor de rosa, de moletom, e a blusa vermelha estampada que serviram de pijama pareciam harmonizar perfeitamente com o ambiente tão conhecido, que se resumiria em alguns móveis rosa claro e objetos pessoais. Eram 10:30h quando abri as janelas do quarto para o ar de setembro invadir os pulmões e saudar o vizinho de chapéu de palha varrendo o quintal. Foi quando decidi que nenhuma história é monótona o suficiente para ser esquecida e que até o tédio e a indecisão, inofensivos, são matéria do que escrever.
*
Sentada no banco de madeira com acabamento em cimento, olharia para os carros estacionados longe do portão principal e sorriria, tímida, esperando o telefone nas mãos tocar. A chamada seria previsível como as outras, movida pela mesma intenção e eventualmente pelos mesmos gracejos e codinomes. O destino próximo, conhecido há poucas semanas, pareceria aguardar silenciosamente pela visita que intuia ser breve, breve como as costumeiras perguntas de como foi a semana e breve como a inusitada e descabida explicação: - Cinco minutos para a doçura, Cinco pra você me ouvir. - Diria. Despreparado e sem respostas prontas, como ela previra, ele faria alguma gracinha para amenizar o clima tenso. Eram semanas na iminência de que aquilo ocorresse. Pediu calma e usou, como de hábito, de pequenas doses de zombaria e risos que a subestimavam para garantir que fora apenas mais um surto e de que passaria em instantes, como os outros. Segura, ela o alertaria para o fato de que dois dos seus minutos preciosos, capazes ou não de convencê-la, já haviam transcorrido. O que faria - em tese - com que ele acreditasse na franqueza da conversa de alguém tão irredutível. Os três minutos seguintes são de fato como um espaço em branco, possivelmente surpreendentes, possivelmente enfadonhos. De qualquer forma, a segunda parte do plano estava muito clara, onde declararia a decisão da manhã anterior e esperaria a reação dele, da qual fosse derivar a explicação detalhada e teatral de suas causas, ou a pura simplicidade da despedida ensaiada. - Sentirei sua falta. - Pronunciaria, com um sorriso satisfeito e soberano de quem tem absoluta certeza da recíproca ser verdadeira. Calado e atônito, ele a observaria afastar-se sem olhar pra trás e lamentaria, a cada segundo de carência daquele instante e calmaria dos meses seguintes, por não ter pago qualquer preço que uma montanha-russa humana - tão inconstante - fosse capaz de exigir para permanecer em sua vida.