quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Algures

"[...] E agora eras tu que me abandonavas, que tinhas pressa de regressar à tua vida real - tão longe do deserto, tão longe do sonho, tão longe da nossa solidão a dois! Abandonavas-me assim, doente numa cama de hospital, como não se deve abandonar ninguém que nos ame, pois não?

Foste-te embora, foram-se embora as outras visitas desse dia, uma enfermeira veio dar-me um remédio e mudar o frasco de soro, e eu fiquei sozinha, a pensar em ti e na tua visita. Através da janela do quarto, percebi que a tarde estava a acabar e que as luzes da cidade se iam acendendo. Lá de fora vinha o ruído do trânsito ao fim do dia, um ruído de gente e automóveis apressados, gente que queria voltar para casa, onde estavam os que amavam ou os que se tinham habituado a amar, sem fazer demasiadas perguntas nem exigir nada mais do que esse amor tranquilo de todos os dias. É verdade que nunca quis ou nunca vivi para querer isso para mim. Queria mais, vê tu! Queria viver no limite todos os dias, queria que as coisas estivessem sempre a correr. Conhecer novas pessoas todo o tempo, sair, ir a discotecas, divertir-me todos os dias, sentir que podia seduzir todos a minha volta e brincar com isso. Mas agora, agora que a noite chegou e que fiquei sozinha, agora que sei que também tu voltaste para uma casa onde tens alguém à tua espera, alguém que te ama, alguém que te dá paz, também a mim, de repente, me apetecia poder ir para casa e ter à minha espera alguém que me amasse. Não, não estou a dizer que queria que fosses tu. Não estou a dizer isso, estou a falar de alguém. Alguém sem nome.

Eu sei que algures, mais adiante na minha vida, hei-de encontrar quem esteja em casa à minha espera quando eu chegar. Sim, eu sei, está escrito, é sempre assim. Mas era agora que eu queria não sentir este vazio, não te sentir tão distante, tão longe do deserto. Queria só dar um sentido à nossa viagem. Já sei, já sei que nada dura para sempre - só as montanhas e os rios, meu sábio. Mas o que fomos nós um para o outro: apenas companheiros ocasionais de viagem? Com o tempo contado, com tudo previamente estabelecido e com prazo de validade previsto à partida? Foi só isso, diz-me, foi só isso o nosso encontro? Não ficou mais nada lá atrás, não deixamos nada de nós, os dois, no deserto que atravessamos? [...]"

(Miguel Sousa Tavares, in: No teu deserto. Companhia das Letras, 2009, p. 108).

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Trofeuzinho

Você não me chacoalha. Não importa o quanto se atreva. Eu não visto minha saia florida para lhe esperar no domingo, nem olhei para trás enquanto manobrava o carro para partir todas as vezes. Sinais claros de que você é aquele lugar que eu não vou guardar para comer confortável enquanto a fila tá grande, porque acho deselegante. E não é que você tenha culpa ou não seja apetitoso, não. Eu quem já cheguei dando de ombros. De blusa furada. Querendo passar o tempo. Trocando a lente pelos óculos. Feministando e fazendo pouco caso. O que é quase a mesma coisa. Manifestando um pouquinho essa ojeriza que me bate ao misturar a energia do meu corpo com outro corpo cuja cabeça é tão diferente da minha. Mais uma dessas grandes bobagens espirituais do novo século. Mas aí você exagerou: abusou da ênclise. E da minha boa vontade. Abriu os botões da camisa. Tirou a barba. Fez enquete. Contraiu o bíceps para a plateia, mostrando que era um piadista pouco inspirado e sem cerimônia para brincar sobre vantagens pessoais, mas também achava que era o super homem. No escuro da minha caverna, eu bati palma para a sua tentativa. Mas tive certeza de que não dava mais para mim. E para a minha superioridade. Ou para os seus melindres. O seu portanto é perante e, ainda assim, você é muito pedante. De uma pobreza de espírito radioativa, que me arranca todo o remorso em ser, também eu, um pouco espírito de porco, como estou sendo agora. Finalmente tive coragem de jogar você inteiro para a torcida. Perdeu por aclamação e unanimidade. Nascemos falidos, eles disseram. E ninguém ousou argumentar com o papo da compensação histórica.
Se escrevo é porque, além de babaca, eu sei ser justa. Se eu não perdoo, não é por nada, é só porque você não me chacoalha. Não balança a estrutura. Não me dá abalo Císmico. Temo que eu não queira lidar com você porque tenho preguiça. Suspeito que não esteja no mundo para lhe morder e lhe assoprar, embora desejo que você encontre alguém que esteja. Não me disponho a passar mais vergonha com você no meu parquinho. Por isso, sei que não será amor. Já que amor é sobretudo se dispor a passar vergonha no parquinho. Ou pelo menos arcar com este risco. E eu, em se tratando de você, desisti antes de tentar. Não sei dizer se o problema é comigo ou se você é o inseto de asinhas bonitas que não voa. Só tenho certeza de que não quero que as suas patinhas sujem mais o meu terreno sagrado. Passe bem! Mantenha os brios. Seja você. Não se jogue no chão. Queria sentir muito.
Não há desapontamento maior que o de varrer alguém da vida e não doer.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Gosto de morte

Só me dei conta de que eles já tinham devorado seis cigarros seguidos cada um enquanto atualizávamos uns aos outros sobre como tínhamos passado a noite quando, bastante íntimo, ele perguntou a ela se tinha café em casa. Meu nariz de fumante passiva ardia, e a ideia de tomar uma xícara de café naquela hora da manhã parecia perfeita, mas perigosa. Eu não precisava ter visão de raio-x para ver a úlcera se formando lenta nos nossos estômagos com aquela combinação.
Não há papila gustativa na minha boca que não recorde da pasta de dente impregnada nas dobras das nossas línguas da noite anterior, meio que sem enxaguar, para mascarar a ressaca. A cada aproximação era como se eu girasse o indicador inteiro dentro de um cinzeiro cheio e pusesse na boca com vontade, achando que era goiabada. E esquecesse e em seguida pusesse de novo e de novo, até dar um pouco de náusea. "Gosto de morte!"
Senti a frase pontiaguda entrar entre a quarta e quinta costela da minha própria barriga, ouvindo com espanto, como se as palavras tivessem vindo do além. Um espectro incontido da minha consciência. Ele sorriu amarelo-nicotina, mais do que os vãos entre os dentes. Ela encolheu bem os ombros e expirou na direção dos pés um cinza difuso, de certo bem da cor dos nossos pulmões e com a profundidade das rugas. Quase não pude crer que eu tinha dito aquilo em voz alta. O olhar deles se cruzou por meio segundo. Fazia calor e tinha nuvem, mas àquela altura o clima seria horrível, fosse como fosse. Eu estava indiscutivelmente fora daquele sentimento empático de cumplicidade, que envolvia somente os adictos.
Eles concordaram. Fizeram piada. Rimos todos, um pouco nervosos. Depois fizemos silêncio. Depois a chaleira ferveu. Tomei meu café instantâneo com leite e duas colheres de inconveniência. Morno. Amargo, como era de se imaginar. Conversamos e desconversamos. Não comemos nada por horas. Parecia prova de resistência. E o corpo pondo pra fora um fel unânime que se espalhava por todo o recinto. Almoçamos duas da tarde. Na sesta, deitei no peito dele no sofá improvisado. Tenho certeza que os meus cabelos e os dele tinham o mesmo cheiro. Senti os dedos que passavam de leve nas minhas costas nuas, tão ternos que pareciam querer arrancar minha culpa com afeto, sem eu precisar pedir desculpa por nada.
Ali, naquele afago, eu quis contar a ele que, apesar de tudo, eu não fui sempre assim. Quis confidenciar que na segunda-feira eu voltaria à minha vida normal e me sentiria uma super heroína que combate a moral e os bons costumes pelas ruas da metrópole nas horas vagas, quando ninguém está olhando. Também por causa dos beijos tóxicos dele. Quis falar qualquer coisa que não deixasse suspeita de que eu chegaria em casa e, sim, correria para o banho, e, sim, esfregaria o sabonete nos braços e nas pernas e no rosto inteiro com muito mais força do que é costume. E esfregaria shampoo atrás das orelhas e escovaria os dentes com cuidado, como num ritual. Quis contar da impressão de que ele jamais acessaria a camada mais profunda de mim. Que não se infiltraria pelos meus poros. E o quanto ele deveria agradecer aos céus por isso. Quis explicar que eu sei bem como é querer tanto manter algo aceso, ao alcance da mão, por pior que seja o gosto na boca e por mais danosos que sejam os efeitos.
Era tarde. Fiquei muda. Ele acendeu mais um no anterior, sem controle. Encostou os lábios finos no filtro novinho e branco e se empenhou tanto no movimento de sucção que, por trás da cabana feita para não apagar a chama, eu via as bochechas magras afundarem entre as duas carreiras de dentes, deixando-o ainda mais magro e mais pálido. Sorriu um sorriso envolto naquela névoa venenosa. Olhei fixo para aquela possibilidade que ele tinha me dado. Poderíamos viver aquelas horas sem nos importar ou apenas tragar a morte juntos, enquanto vivíamos. Só dependia escolher.