quinta-feira, 12 de maio de 2022

Big deal

Quanto mais próximo se tornou o dia de me casar (e digo casar sem ter casado, sem me preocupar que as pessoas confundam as coisas ao me ver usando um véu no bar fazendo a despedida de solteira sem que eu vá, de fato, usar um véu e comparecer a um altar em poucos dias, de propósito sem que eu explique muito a elas, como quem não fecha a porta para a possibilidade de querer me casar de fato um dia mas ao mesmo tempo sem que eu sinta que um sacramento a qualquer tempo pesaria mais do que a minha própria decisão), por alguns momentos aquilo se tornou pra mim um big deal. Uma ocasião de ajuste fino do ponteiro dos segundos da minha vida amorosa. Uma consciência muito nítida da escolha que eu tinha feito, com todas as imensas alegrias, desafios e tédio que eu já sabia desde sempre que ela poderia me causar.
Nunca tinha morado com alguém e por muitíssimas vezes pensei que nunca fosse morar com alguém, até que sim. Então, vendo se aproximar a grandeza daquela mudança drástica de rumo no cotidiano, gradualmente eu mudei o vocabulário para começar a dizer que meu namorado agora seria meu marido  primeiro brincando, depois a sério como quem estava brincando, depois finalmente me dando conta de que meu dito marido não estava fazendo o mesmo comigo. Talvez porque esposa é uma palavra muito mais feia do que marido. Talvez porque uma vez ele me chamou de "minha mulher" antes de cogitarmos morar juntos e eu ralhei por conta do pronome possessivo dizendo qualquer coisa como "eu não sou de ninguém não". Talvez por ele enxergar uma união estável ainda de um jeito diferente de um casamento, para o bem ou para o mal. Talvez porque ele concorde comigo que uma decisão pesa mais do que um sacramento ou uma nomenclatura. Talvez por uma influência decisiva, embora longínqua, de alguém que seja capaz de rir em público, em caixa alta e quase diretamente de uma foto com nossas escovas de dentes juntas apontadas para a câmera no dia da mudança (ai de nós, cometendo o crime hediondo de sermos monogâmicos, piegas e felizes assim). Ou talvez porque o tédio e as agruras podem vir de qualquer jeito e ainda antes quando se dá nome aos bois  e, se for mesmo isso, eu acho que ele pode ter razão mas não vou concordar já porque ainda estou me situando na sutil arte de ter (ou será que ainda não?) um marido, sendo de bom tom que permaneça otimista.
Fato é que, quando finalmente me casei (ou não, "mas é como se fosse"), passada uma semana, meu proclamado marido viajou por dez dias para a Europa. Sem mim. Coisa engraçada de acontecer. Por isso, que conste nos anais do nosso casamento: sim, ele fez uma lua de mel sem mim. De modo que amanhã, quinta-feira, é o único dia da semana em que é permitido descer o lixo reciclável nesse prédio e, pela segunda das três vezes em que o meu apartamento de meio-que-casada teve o lixo descido licitamente, eu vou fazer isso sozinha. Acho que descer o lixo do próprio apartamento é o exato oposto de uma lua de mel. E todas as tarefas domésticas, que foram pouquíssimas, foram inteiramente minhas nesses dez dias. Mas não é disso que se trata, embora também seja. Não falo só de lavar a roupa e a louça, fazer faxina e tirar o lixo, mas da vida doméstica inteira. Comer de determinado lado da bancada, dormir só com a ponta do cobertor de casal dobrada sobre mim em vez de deitar embaixo dele, escolher sozinha o lugar onde será guardada aquela travessa nova, aguar as plantas, abrir as portas e janelas para o sol entrar e o cheiro de gás sair. Tudo eu. Eu comigo.
Morar e estar sozinha na casa comum nestes dias me deu outra perspectiva. Se é verdade que o problema da vida conjugal é aprender a dominar o tédio, como nos ensinou Gabo, também é verdade que o tédio precisa ser dominado em qualquer circunstância e, se penso nisso, lembro que o convívio da gente com a gente mesmo pode ser a coisa mais difícil e tediosa de que se tem notícia. Por tantas vezes quis aprender a ser sozinha antes de mais nada que, agora, é como se houvesse sido forçada a estar sozinha um pouquinho mais, que é pra ver se aprendo de uma vez por todas que não controlo o fluxo da vida.
Estar sozinha num apartamento pensado por e para dois é dominar, mesmo sem querer, a solitude de um estado contemplativo e meio decepcionante para quem se dispôs à vida conjugal. Nestes dias a voz dos meus demônios internos ecoou solo pela casa, nos poucos momentos em que estive em casa, somada ao cochicho de um tanto considerável de saudade não só da condição autoproclamada de esposa, mas mais especialmente do que esses dias poderiam ter sido, não fosse a lua de mel inusitada do meu pretenso marido. 
Enquanto minhas amigas confessavam que surtariam bem antes de mim, eu esperei pacientemente para comprar a máquina de lavar, os quadros, as almofadas e o capacho da porta. Fui sentir só ontem, violentamente, a falta que o cumprimento do plano para o qual eu me preparei por meses podia fazer no meu juízo. Nos primeiros oito dias, meu cérebro negou a distância e a relevância desse intervalo com a naturalidade que eu esperaria receber se tivesse uma viagem sonhada e adiada há anos que aconteceu — vejo aqui a ironia com que sou tratada pelo roteiro do destino — imediatamente depois da nossa primeira semana morando juntos.
Preenchi o tempo com muitas compras e ganhei também presentes de amigos: o porta-detergente, o jogo americano, a jarra, a tábua de vidro. Detalhes pensados de véspera, com certa obsessão, para de alguma forma antecipar um cotidiano que por enquanto apenas se anuncia.
Mas quanto mais próximo se tornou o dia de (vamos chamar assim de propósito) "voltar a me casar", eu fui ficando apreensiva, nervosa e inquieta, num misto de ansiedade e certeza da impossibilidade de adiar mais tudo aquilo que eu sinto que era mesmo pra ter sido. Sem nunca ter me casado, amanhã volto a me casar. Eu e meus hormônios decidimos fazer disso outro big deal, seguido do primeiro. Embora eu não saiba o tempo que vou levar para voltar a tirar o pé do chão. Talvez por isso a apreensão. Desejo muito que seja, finalmente, doce. Que seja anti-monótono e imprevisível, mesmo quando em detrimento dos meus planos, amém. E sobretudo que eu não perca a capacidade de achar que a vida a dois pode sempre ser grande coisa.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Não cheira bem

Nasci numa cidade que fedia e isso era sinônimo de prosperidade, porque o cheiro vinha do tratamento dos resíduos de fécula de mandioca das lagoas de uma multinacional. Isso sempre fez determinados bairros da minha terra natal serem quase asfixiantes. A empresa empregava muita gente até fechar. Quando fechou foi um deus-nos-acuda de desemprego. Era a maior fonte de arrecadação de tributos municipais. Mas era, também, a principal fonte de um aroma quase constante de peido, no seu entorno e além. Como um chorume de uma comida muito específica esquecida há muitos dias. Mandioca, talvez. Um fedor só. Tudo muito característico e ao mesmo tempo tenebrosamente familiar. Para alguns, era cheiro de dinheiro. Ou de sustento.

Tenho uma coisa com cheiros e isso me atormenta a vida toda. Não é por acaso que as pessoas dizem que algo não cheira bem quando se supõe que há algo errado, mas não se consegue saber ainda o quê. Uma metáfora quase literal para dizer que um mau odor é uma coisa que impregna o ambiente de modo a não nos deixar concentrar em outra coisa quando, talvez, se soubéssemos desde o princípio e exatamente de onde o cheiro vem, ainda assim não saberíamos tão bem assim o que fazer a respeito. Titubearíamos, em nome do pão nosso de cada dia. Ou não teríamos estômago de revirar esse lixo de dias que agora escorre.

E embora a gente olhe, objetivamente, pra todos os lados, às vezes não sabe dizer o que há. Demora a encontrar o foco. Mas ele está lá. E se o primeiro contato com um cheiro ruim não nos deixa esquecer que algo está sujo, podre e vai mal ou precisa de atenção é porque a gente sabe ou intui, pelo faro. Meio bicho. Num segundo momento, porém, já é como se os pulmões estivessem mais acostumados com as partículas indigestas espalhadas pelo ar. Se for todo dia então, nem se fala.

Porque cheiro ruim dessensibiliza o olfato, sempre tive medo de acostumar. Sempre tive medo que as máscaras de segurança virassem adornos. Medo de precisar fechar os olhos mais que as narinas. Acho que, justamente porque sempre tive um medo muito profundo de feder, sempre estive muito atenta às minhas companhias. Com que cheiro sentiriam de mim à distância se eu andasse com quem não cheirava bem. Aquela preocupação social de ser contaminada pela impressão de uma cagada que pudesse vir a feder e eu não cometi.

Compreendi só adulta que merdas acontecem. A qualquer um. E que merdas fedem. Fedem muito. Algumas mais que outras. Mais que uma lagoa inteira de dejetos de amido. Compreendi, não sem torcer o nariz, que ninguém está escape de estar próximo do que fede muito, como esse cheiro do bairro Liberdade nos arredores do ginásio nos anos 2000 que estou sentindo agora e ainda assim precise ou deseje ou não veja nenhum horizonte de ar mais puro do que permanecer. Tentando refinar o olfato para as notas de prosperidade. Prendendo a respiração o quanto puder.