quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Cavo um abismo

É sempre o mesmo tango
Em frente às mesmas portas
E meus sapatos estão rotos
De dar voltas
Fazendo buraco no chão
Fazendo que vão e não vão

Saio pra ver o movimento da cidade
Só pra ver no que vai dar
E dou.
E dou num muro de tijolos. Lindo, forte e tosco. Tão extenso que não se sabe qual dos lados protege. Dividindo todas as coisas em continentes de antes e depois de uma grande beleza. Um divisor entre nós, os líricos inveterados e enfastiados de dançar sempre o mesmo tango em frente às mesmas portas, e aqueles que sofrem um sofrimento desconhecido, porque sem eco na literatura. Passo as bolinhas gordas do lado de baixo dos últimos dedos pequenos do pé contra esse muro. Não é desprezo. É um flerte. E penso apenas: venha cá. Desdivida-nos. Equilibre-nos. Tu és tão bonito. E eu tenho sede para dois. Quero ralar os meus joelhos para te alcançar e transpor. Como se não importasse. Alcançar. Quero ficar de barriga para cima, do lado de lá, contemplando a grande beleza. Não a tua, mas a deste gesto. Sem cigarro. Sem subterfúgio. Numa simplicidade infantil e tosca e hábil, como a tua. Forte. Casco de tartaruga. Ninja. Justo aquela da qual ninguém se lembra do nome, porque não estudou arte o suficiente. Tão bonito, tão bonito que só podia mesmo estar do outro lado esse tempo todo, ignorando os preceitos mais básicos da noção de profundidade.
Cavo um abismo cada vez mais fundo
E tu te amontoas,
o Everest.
É sempre o mesmo tango
Em frente às mesmas portas
E meus sapatos estão rotos
De dar voltas
Fazendo buraco no chão
Quero alcançar meu inferno e tu
Teu céu.