terça-feira, 15 de agosto de 2017

Eco [11]

No dia em que a Laura partiu, meu peito parecia o trânsito da Índia. Os sentimentos se misturavam num caos apavorante. Numa confusão fenomenal. Havia lamentos pela partida indo e vindo de todas as direções, sem semáforo. Havia uma saudade antecipada buzinando impaciente em algum lugar, ensurdecedora. Uma tensão de não poder errar, descuidar, espirrar fechando os olhos ao fazer uma curva muito fechada. Os sinais amarelos exigindo atenção redobrada para não colidir com a minha vontade de gritar ao mundo que eu queria ela no banco do carona da minha vida para toda e qualquer viagem. E depois vermelhos, em um grande, sonoro e universal: não, não vá por aí, é melhor administrar este vaivém quando a cabeça estiver minimamente em ordem. E depois verdes, exigindo destreza para ir para onde eu queria chegar sem atrapalhar quem vinha vindo depois dela. Tinha também um óleo de gratidão, lubrificando as engrenagens.
E eu ali. Guiando o coração, um tuk-tuk precário no qual já couberam tantos passageiros ao mesmo tempo ou na sequência. Tentando reaprender a direção defensiva. Tentando assentar o pé esquerdo na embreagem, e o direito alternando entre o freio e o acelerador. Mirando o retrovisor de relance, pasmo com o fato de que o tráfego seguia, como a vida, absolutamente encadeado. Como se a desordem generalizada fosse, na verdade, a ordem natural das coisas, bastando compreender a dinâmica. Aceitar. Para sobreviver nem mais forte, nem mais inteligente, mas com a rapidez de adaptação atribuída a Charles Darwin. E portanto tocar adiante, da melhor forma que me parecesse possível.
No dia em que a Laura partiu, como é natural que me aconteça, romantizei os efeitos daquela paixão quando ela começou a surgir. Quando tudo parecia em perfeita sintonia. Quando os carros me davam passagem em dia de chuva, no engarrafamento, numa solidariedade insuspeitada. Numa conexão com o universo que só consegue compreender quem já esteve apaixonado. Eu intuía as lombadas das estradas pelas quais não costumo passar, e reduzia a velocidade no momento certo, como que por milagre. E chegava ao destino, maravilhado. Sortudo. Afortunado. Época em que descobri os faróis de milha, para iluminar o caminho adiante, muito mais longe. Ocasião em que eu aprendi a reclinar o banco do carro para a posição exata em que meus braços podiam envolvê-la sem desconforto algum. Romantizei desejando, tão fundo, que aquilo que vivemos tivesse durado um pouco mais. Quem sabe para sempre.
Tolice. Eu jamais poderia ter controle de nada. E a confusão de uma partida talvez seja, em resumo, muito semelhante à confusão de uma chegada. A necessidade de reorganizar a vida quando ela foi avassaladoramente e de súbito bagunçada é idêntica, tanto quando uma paixão começa, quanto quando o contato cessa.
Só muito mais tarde entendi como e por que o trânsito da Índia flui, apesar de tão caótico: cordialidade, compreensão e bom senso. Para a bagunça funcionar, é preciso respeitar a lógica instituída. É necessário haver um senso de cooperação mútua entre todos que participam da intrincada movimentação urbana. Senão, desanda. Porém ordem, ordem mesmo, tudo direitinho, só na monotonia. E eu sempre me recusei a estacionar. Por alguma razão, eu não queria ou seria capaz de enxergar a Laura, no início, durante ou depois dela partir, senão sob a ótica da baderna - desregrada, sacudindo tudo, deliciosa - que ela conseguiu trazer para a minha vida.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Refreia

O padrão é branco,
liso e básico.
Discreto
combina com todos
Com tudo

Caibo nele.

Engana-se, porém
quem supõe
que o padrão
não dá trabalho.
É quase só o que ele dá.

O padrão fala baixinho
Não atrai
o olhar de esguelho
Não responde processo
Não é abordado pela polícia
Não chama
Atenção:
o padrão não muda
o mundo
Para além da convenção

O padrão é um jeans apertado
que dá cintura
Magra e fina
mas dificulta a respiração

Refreia o instinto
A língua
Interrompe a escala

Mas é preciso mantê-lo
Porque, enfim, não dói
Não arde
Não cura
Não sente o dissabor
de uma vida padronizada