segunda-feira, 1 de junho de 2020

Da cintura para cima

Com licença, preciso confessar que vou tentar despi-lo depois de despi-lo. Com uma incisão que rompa o couro e o resto, vou tentar encontrar um caminho por debaixo da pele, em busca da segunda camada detrás da que fica à mostra. Uma incursão nas entranhas que faça jorrar o sangue e ponha para fora o que é bonito e o que é feio - e sobretudo matéria viva e pulsante, que por isso não admite maquiagem. Tenho tentado explicar que só gosto do quente e do vermelho imperativo de dentro. É esta profundeza de todos os seres e, em especial, dos objetos de desejo, que alimenta a minha curiosidade. Que me põe alerta e desejosa. Que me veste com chapéu camuflado e cadeira de praia e desafia os meus anzóis para depois da pescaria. Inspirada por cada etapa desta expedição à natureza selvagem das coisas. Muito embora não saiba o que encontrarei ou o que farei com o que encontrar, eu só me sinto confortável se houver entre nós alguma identidade de âmago. Algum segredo insuspeito e confessado por querer. Alguma neurose reprimida e inédita, mas agora compartilhada. Se a nossa essência corresponder, afinal, no que for essencial. Se houver uma parte mole e praticamente inacessível guardada em algum lugar no ventre ou no peito, quase intocada, que ainda se possa manejar ou curar ou esculpir a dois. Da qual se possa falar a respeito depois de beber vinho tinto. In vino veritas. Eu poderia, eu bem que poderia sumir antes dessa vontade insana me aparecer. E admito mesmo que seria mais confortável não permitir que cresça outra vez em mim esta obsessão sentimental pelas vísceras. Se eu não fosse eu, anunciaria o sumiço de véspera e de fato teria forças para sumir, evitando a carnificina. Mas, a despeito das suposições, eu me conheço bem. E me conhecendo bem, qual não é a minha surpresa: talvez já seja tarde demais. Agora já tenho de novo uma faca afiada em punho e um certo talento de estripadora, bastando pedir licença para iniciar a minha obra. Agora já acredito que haja algo muito intenso e vermelho vivo para além das tuas escamas desbotadas e verdes. Com sorte, terei tempo para encontrar. Para confessar que te quero mais e também ou principalmente da cintura para cima. E que do depois espero que possamos fazer, juntos e rápido, a sutura desse corte que, com sorte, não vai deixar marcas. Com sorte, descobriremos a tempo se nossa matéria-prima coincide. Com sorte, também tens desejado tirar a camiseta para mim num reflexo de intimidade, sem pensar muito a respeito.

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