quarta-feira, 13 de abril de 2016

Eco [6]

Há pelo menos outros cinco ecos antes deste.
Clique se quiser ler o primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto.

Outro dia sonhei com a Laura. Não como quando se diz "sonhei com você", para puxar papo, desde que o mundo é mundo, mas um sonho real e enlouquecedor, no escuro e de olhos fechados, impróprio para quem tem medo de escuro e de não saber onde está pisando, a queda provável e cada vez mais perto. Nele, Laura caminhava na minha direção com uma criança nos braços, recém parida, e dizia sarcástica: tem a idade da traição.
Acordei ensopado de um suor de calafrios no clima ameno de fim de março e custei a voltar a dormir. A minha consciência não sabia o que aquilo significava. Para ser franco, preferia que a inconsciência nos desse um extrato analítico no fim do mês ou da noite, feito máquina registradora, com os vultos, assombros e coisas indecifráveis em geral que permeiam os pensamentos mais escondidos do cérebro. Facilitava para mim e para o analista. Assim, como é, as divagações e constatações se confundem.
Ali acordado depois do sonho infeliz eu me fiz finalmente, no âmago, com todos os pormenores - no meio daquela noite esquisita, sozinho na cama olhando fixo para a parede em que se reflete o vitral da igreja pela fresta das cortinas - as perguntas que vinha evitando objetivamente por meses.
Tenho vergonha de ter sido traído (e absolutamente nunca poder saber se fui)?
No lugar da Laura, eu me trairia?
Há séculos a sociedade ocidental pseudo monogâmica reproduz o estigma do corno manso. A gente convive com a zombaria em relação ao traído que admite a traição e insiste no relacionamento. A minha geração internalizou o comportamento. A que me antecedeu internalizou e, com a pouca sorte que vislumbro incidir sobre os novos tempos, a próxima haverá de internalizar.
Ótica reversa, cá estamos nesta perspectiva cretina. Que direi eu, zombeteiro de carteirinha dos ludibriados resilientes, daquela outra infidelidade - a insuspeitada? Daquela margem de erro, do risco fundado na condição humana de todos os seres, na possibilidade da Laura ter, sim, simplesmente provado o mel de outra pessoa (como naquela música que fez sucesso do João Paulo e Daniel), concomitantemente ao tempo em que usufruía do meu, ao melhor estilo abelha-rainha-da-minha-desgraça? Sendo que nunca, nunca, absolutamente nunca poderei ter certeza se isso se concretizou, mesmo que pergunte a ela, e principalmente caso creia em uma resposta negativa honesta?
Não escrevi nos dias que sucederam o sonho. Tentei esquecê-lo, como tenho tentado sempre que a Laura me vem em pensamento. Tem sido cada dia um pouco mais indolor. Só me lembrei novamente disto hoje, quando, esperando o sinal abrir para os pedestres, enquanto cruzava os braços e esfregava a palma da mão direita no antebraço esquerdo de frio, presenciei uma cena. Uma mulher de capacete subia em uma moto estacionada ao meu lado, quando foi prontamente interceptada pela dona da moto, capacete em punho, aos berros de "esta moto é minha, moça, esta moto é minha". Era óbvio, para qualquer um, que a moça de capacete confundiu a própria moto com a moto estacionada, possivelmente porque sempre a deixa ali. Mas era visível a vergonha que ela sentiu por uma situação que não era, necessariamente, ou pelo menos não exclusivamente, culpa sua. É aquela vergonha que a gente sente pelo constrangimento de não ter se antecipado à situação. Por não ter sido onipresente e onipotente. Por não ter visto, não ter podido, percebido, adivinhado ou mesmo desconfiado algo que, imediatamente depois, ficou claro como a luz, como um lampejo de sanidade.
Sim, o sonho foi o start de uma experiência ruim que talvez eu nunca experimente, de fato, em relação à Laura. Um misto de déjà vu, amostra do purgatório e pesadelo. Sim, tenho muita vergonha do furo na estatística (quando penso nesta hipótese, a de ter sido traído). Sim, atormenta jamais poder ter certeza sobre nada nesta vida, quiçá sobre uma infidelidade. Sim, eu creio racionalmente que não fui passado para trás, mas a confiança é nuvem diáfana que se dissipa quando a lua do destempero reflete o sol desta vil possibilidade. E percebi que tenho vergonha, afirmativamente e muita, quando me dei conta de que não sei responder, realmente, à segunda pergunta (no lugar, no exato lugar da Laura, eu me trairia?). Não sei responder. Primeiro porque nunca estive rigorosamente nas mesmas condições, já que cada um é um e eu não sei o que se passava na cabeça dela. Segundo porque ainda que tivesse estado nas mesmas condições, sei que às vezes a ocasião faz o ladrão, apesar de todas as convicções.
Então, vejo agora, é possível que a vergonha que eu sinto da possibilidade de ter sido traído e não saber venha da vergonha de ser insuficiente para a Laura, é claro, mas principalmente da possibilidade de ser tão... falho? aberto? inconcluso? desonesto? inescrupuloso? liberto? tão tudo, quanto ela.