sábado, 23 de maio de 2020

O manjericão agora tem quem lhe escreva

De onde estou te vejo de canto, por detrás da janela da sala. Ainda me surpreendo como uma planta como tu pode ser uma amiga tão honesta e íntegra. Confidente íntima, embora silenciosa. Uma certeza de vida. Pois saiba, manjericão, que o que sinto no cômodo ao lado é uma nostalgia felina, mas extremamente doméstica. Que faz com que eu me pergunte se as coisas mais importantes e intensas da minha vida já passaram e agora o que cultivo são apenas os ecos, as memórias a respeito, a tentativa de emular o que da primeira vez veio de golpe. Deve ser o que ocorre ao adicto quando se dispõe às segundas viagens. Aquela intenção - que já nasce falha - de tentar repetir exatamente a mesma alucinação e os momentos do jeito que eles aconteceram da primeira vez. Uma espécie de saudade perene de estar envolto naquela luz brilhante de plenitude. Daquele momento em que, passados dias ou anos, ainda nos lembramos, depois, de ter estado decisivamente vivos. Tenho uma certeza inconfundível de quando esta euforia me acontece. De quando houve uma conexão que deixou rastro com o que há de divino em mim. Passa o mesmo contigo, manjericão? Se tens na memória algum dia como aqueles meus, de uma alegria única e incontestável, concordas então que a manifestação deste brilho de juventude inconsequente já tenha pra nós se esgotado? Por acaso conservas uma esperança de que há felicidades maiores à nossa espreita? Não diz nada. Nem precisa sequer concordar comigo. Faz a tua fotossíntese calado para manter-se em pé, fincado na minha varanda. Sem embargo, hoje cedo acordei e tinhas flores. De mim também há duas. A que é só manjericão e a que tem flores. Vivo decidida a não deixar que uma mate a outra de fome.

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