domingo, 29 de julho de 2012

À francesa

Adormeci com Jack Johnson no volume dois. Repetidamente. Não sonhei, embora tenha muita certeza de que a música me inspiraria um sonho bom. Acordei confusa, como quando acordamos sem saber muito bem onde estamos. É sempre no mundo, afinal, o que nem por isso nos priva da sensação. Acordei com Jason Mraz. I'm yours. "Eu não posso esperar (...)".
E no meio de tudo, você. Faça noite ou chuva. Em meio à tempestade. Num mar revolto e confuso. Por semanas consecutivas. Na música que repete que assim continua... Parado e me olhando. Ou distante. Até no sono sem sonhos. Você. Um ponto de interrogação nas certezas que a vida vinha trazendo, pra fazer crer que não me perdi de mim e que posso guerrear contra as convicções mais simples. Pra fazer crer que eu ainda sou sensível aos pequenos gestos ou pra contemplar os meus vícios de linguagem. Pra adoçar a noite sem que eu o diga que isso aconteceu, como prêmio, no final. Pra esmagar meu senso de direção com o tom de voz despreocupado.
Não preciso fechar os olhos para adivinhar, uma vez mais, a sensação familiar da ponta dos dedos da mão esquerda no rosto, de leve. Do mesmo rosto escapando de mim a medida em que não me despeço das manias antigas. À medida em que me confesso confusa. À medida em que eu me digo quase entregue, ainda que nem precisasse dizer. À medida em que me repito "deixa livre!" quando te sinto um possível passageiro clandestino e fugidio de meu porto, da minha trama e do meu drama.
É quando penso, ligeiramente, em fugir antes. Nada como um clássico... Saída à francesa. Mas, zombando de nós, o destino põe um quê de mistério na história e minha vocação para os contos de fada faz perder algo no caminho... Não o sapatinho, já que as histórias jamais haverão de se repetir de todo. Somos modernos. Perco pelo caminho uma peça de roupa, rasgada. Nada mais prosaico e contemporâneo. Sorrio com a contradição. Nada mais capaz de me fazer perceber que, se eu fugir antes, provavelmente será na sua direção...

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Parecer merecer


E sem mais nem menos eles chegam, sem avisar, pra quebrar o silêncio de algumas horas - ou muito mais. Chegam quase sempre no singular, seguindo uma história mal resolvida, que é pra dar um toque mexicano à novela de nossas vidas. Chegam no singular. Sim. Chega alguém. Mas pra não me comprometer uso o plural - talvez melhor que sejam vários deles, sucessivamente. Não foram feitos pra durar, e às vezes duram... Parecem merecer, e às vezes não merecem... Aproveitamos, assim, pra fazer deles o melhor que podemos ser.
Mas então, como eu já dizia, eles chegam. A pauta de temas afins é restrita por ser ampla demais... Em pouco tempo, o assunto acaba. Um riso tímido do outro lado da linha, da tela ou do meio palmo que nos distancia. Nos conhecemos pouco e, por isso, não nos despedimos nunca. É bom falar (até) do que é banal. Talvez porque saibamos que a lei a ser aplicada é a mesma do sentir: só "vinga" quando a gente insiste, a despeito dos contratempos. Então insistimos, até surgir um "durma bem" que seja capaz de encerrar os assuntos amenos. 
Muito mais por convicção do que por prudência, falta-lhes a franqueza de assumir uma intenção, qualquer que seja. Falta-lhes vocabulário para ser inédito, já que a essa altura é melhor economizar em matéria de apego. E lhes falta alguém que, há não muito tempo, foi importante porque não lhes faltou. E eles são e somos todos, enfim, comuns. Não no sentido literal, mas um ao outro. Comuns no desapego, comuns no desespero no meio da festa, no meio do banco na calçada, no meio do nada. Comuns ao perceber que somos o que decidimos ser.
Ainda sobre as intenções. O quão humano é ter as segundas antes das primeiras? Eis, uma vez mais, a verdade crua, entre tudo o que é sutil. Uma das poucas certezas que ficam, para além dos finais... querer.  E eles querem. Querem muito essa verdade que vai sendo inventada a cada passo na direção um do outro, tarde ou cedo.
É isso. Sem mais nem menos eles chegam, em singular, sem avisar, porque querem. E o que querem não se sabe. É um misto de confrontos, desconfortos e vícios... Meus queridinhos. Os quase-amores. Se nunca se transformassem, seriam minha espécie predileta de frio na barriga. Os quase-amores, que passam longe de ser o que se espera deles. Os quase-amores, que tem tudo para ser e nunca são. Os quase-amores. Que não passam de felizes coincidências, caprichos do destino capazes de nos impulsionar a seguir.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Sobra-me a coragem

Foi em uma manhã em que a vida carecia de detalhes que comecei a escrever na primeira página do meu primeiro diário, ainda menina. Faz muito tempo, mas o motivo sempre foi o mesmo. Não me pergunte qual. Entretanto, hoje creio que as pessoas, sempre práticas demais, nunca poderiam compreender um terço das palavras que - o mais direta e secretamente possível - eu dirigi a elas ao longo dos anos. 
Pudera! Prolixa como me é próprio, em meu lado de dentro, sempre se misturavam e confundiam todos os ângulos das mesmas histórias. As minhas, muito reais; as fantasiadas, as que eu idealizara naquela meninice, as que me contavam com detalhes inventados e as que desejei e nunca aconteceram. Sempre muito floreadas de linguagem. 
Eram tempos difíceis para os sensíveis e autênticos. Talvez todos os tempos o sejam, mas aqueles em que eu escrevi meus primeiros parágrafos o eram de maneira própria. A máquina de escrever era inimiga dos insones como eu, com aquele barulho insuportável, denunciando aos que dormiam o tardar da hora. Eu madrugava acordada sofrendo em dose tripla: A uma, pois não poderia sair à noite para espairecer, já que a cidade andava demasiado perigosa para uma criança - como sempre foi, e ainda é. A duas, por ouvir apenas os tic-tacs insuportáveis dos relógios de cabeceira, hoje anacrônicos, por horas a fio. A três, porque não poderia esquecer os próprios pensamentos em uma folha de papel no fundo da gaveta, valendo-se da máquina de escrever. Ao menos, não antes que amanhecesse. 
Àquela época, aliás, tudo era pronto e estava dado. A felicidade inconteste era concedida somente aos audaciosos. E essa audácia pressupunha uma coragem que, de todos os momentos idos, lembro ter tido apenas quando as palavras me emprestaram a força necessária para confessar o que sentia, nem que fosse ao meu diário. Nem que fosse com palavras de criança. 
Se é de ser este, pela primeira vez, um conto biográfico, eu não poderia me esquecer daquela manhã em que fazia frio e a vida carecia, mais do que nunca, de detalhes. O dia em que alguém acorda para seu lirismo é sempre o mais bonito de todos. Mas lá se vão todos estes invernos desde o primeiro em que me pus a traduzir o que ninguém entendia. Ninguém, até chegar Lucas. Um alienígena, como eu, que nem precisava ser de outro mundo para me parecer interessante. Este estranho que tomou meu décimo livro-diário das mãos, impetuosamente, enquanto escrevia, sentada no banco daquela praça, na tarde de véspera do meu aniversário de vinte e um anos. 
E me deixou furiosa! Eu teria vasculhado em todos os planetas de todos os sistemas para recuperar aquele caderno de folhas datadas antes que Lucas, até então um desconhecido, lesse qualquer das páginas. Felizmente não foi possível. Não o foi, já que Lucas correu como um louco e desapareceu em um vão entre o Museu e o Terminal Rodoviário. 
Ainda lembro da sensação de alegria ao ver um desconhecido muito bonito se aproximar, seguida pelo terror. Um desconhecido muito bonito, sim, mas roubando meu diário sem mais nem menos, deixando-me em pânico ao imaginar que ele saberia dos meus segredos mais secretos. Voltei à casa com uma intriga nas ideias e uma dor de cotovelo enorme. Seja quem fosse, saberia mais de mim do que eu desejava. Não era um roubo comum, era um roubo intrigante que eu não reprovava de todo, o que agravava a situação. 
Dali a três semanas, quando eu já dava a causa por perdida, o carteiro bateu à porta de minha casa, com uma caixa coberta de papel pardo, endereçada a mim, sem que eu esperasse nenhuma encomenda. O remetente, contudo, era claro. Sua letra era firme ao escrever meu nome. Corri os olhos sobre o embrulho, lendo outra vez, mais pausadamente: Beatrice Novaes, rua das orquídeas, número duzentos e nove. Era mesmo pra mim. Mas o que seria? Abri com a curiosidade de uma criança. 
Era meu diário! E junto dele havia uma carta curta, datada de dois dias antes, que dizia: "Beatrice, foi um prazer lhe conhecer, ainda que nestas circunstâncias esquisitas. Eu roubando o seu diário aquela tarde na praça, você sabe. Acho que lhe devolver é o mínimo que pode fazer alguém que, depois de ler seus escritos encantadores, deseja roubar seu diário todas as madrugadas, enquanto você dorme, para ler o que há de novo. E acho, também, que o quanto sofri para descobrir seu endereço exime qualquer outra pena que este pequeno delito poderia me trazer. Assisti você escrever, detidamente, por muitas quartas-feiras de bom tempo, naquela praça. Não tive certeza de que deveria me aproximar e lhe interromper, por isso não o fiz. Mas teus olhos, tão brilhantes, me convidavam a desvendar o infinito de palavras do teu diário. Hoje sinto - porque não há outro verbo que o diga melhor - que preciso saber mais de você. Um beijo do Lucas, ladrão de diários e, quem sabe um dia, dos seus pensamentos.
Trocamos oito cartas até que ele me convidou para vê-lo, muito bem humorado: "(...) Eu sei, eu sei, você tem razão. Foi mesmo um "pequeno delito" imperdoável. Aliás, se quiser me xingar, beijar ou tomar um café, estarei naquele mesmo local que nos encontramos a primeira vez na próxima quinta, às três. E por favor, leve só o seu charme, não leve a polícia para prender esse pobre bandido." Aceitei, é claro. Talvez para poder escrever, um dia, que conheci Lucas tarde demais para não me apaixonar. Talvez para dizer que foi cedo demais para não sentir um certo remorso de que meu encantamento por ele acontecesse de maneira muito voluntária. 
Já são quase cinco da tarde e Lucas ainda não apareceu. Talvez seja um jogo. Talvez tenha tido problemas na viagem. Talvez não seja o que eu desejei que fosse, como tantos não foram até aqui. E se ele realmente não vier, ou se nada mais nesta história me fizer sorrir daqui em diante, sobra-me a coragem que as palavras sempre me deram. E este conto.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Um insulto ao que é raro

- Se eu pudesse te dar dois conselhos, seriam eles: 
Compre uma jaqueta nova pra usar amanhã à noite.
E nunca mais leia históricos de conversas no Facebook.

Era sexta-feira e eu sorria ainda muito desajeitada. As mães prescindem ladainhas introdutórias e não é necessário apresentá-las demoradamente - apenas sabem de tudo, todo o tempo, e também por isso são tão admiráveis.
Não é preciso ser mãe pra perceber que resmungo os restos, aos poucos, parafraseando aqui e ali o que já não faz sentido. Mas quando foi que deixou de fazer? Nem digo "aonde foi" ou como foi - não sou tão pretensiosa. E não ouso esclarecer que se eu soubesse haver um lugar, era lá que eu teria ficado, sem precisar de uma jaqueta, de coragem ou de conselhos.
Domingo respiro fundo o todo que sobrou, feito viciada. O todo é pouco, mas ainda inebria. A cada movimento da expiração, solto mais um pouco desse todo diretamente de um dos meus órgãos vitais. 
Começa a chover... Os dias de chuva inundam até o que é raso, e as noites, então, é melhor nem lembrar. Ao menos, o que era forte vai esmaecendo e ficando débil. Pusilânime. Pu-si-lâ-ni-me. Palavra bonita com esse significado medíocre. Esse adjetivo desqualificador do que um dia foi certeza e enfeitador de tudo que ainda é dúvida.

As fotografias somem das minhas paredes, novas fotografias aparecem nos murais. São tão opostas, mas tão iguais. Talvez não passem de um insulto ao que é raro. Pro impropério ser completo, surgem outras bocas. O gosto delas é neutro e é um só: O da vontade de continuar sem se arrepender.

"Cláudia fecha os olhos e vê-se uma vez mais nos braços dele. Quantos homens a amaram com eficácia e surpresa e originalidade, depois? Todos. Um cardápio de homens dignos (...) simpáticos, sensíveis. E Cláudia a fechar os olhos (...)". 
(Inês Pedrosa in: A instrução dos amantes, p.163)

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Não é pecado fingir

Estava pronta pra começar o texto dizendo que "Com sorte, nem Andrea Doria nem Os Barcos funcionaram nos fones, assim o texto sai mais... Seco." quando, sem mais nem menos, meu celular resolve me pregar a mesma peça da razão e funcionar. 
Sempre gostei de Renato Russo, sempre gostei de Legião. Melhor quando eles me livram dos corinthianos, alvoroçados e barulhentos, em carreata pelo título (parabéns pra eles!). Mas bom mesmo é quando os fones me livram de mim e me permitem pensar isolada.
Parece que terei de me controlar pra continuar incontroversa, dessa vez. E pra não manter nenhuma janela de conversação aberta, ansiosa pela mensagem de que "Fulano está digitando algo...". Mas nisso, infelizmente, Legião não ajuda, já que sou estupidamente previsível. Tanto, que quase sou capaz de dizer que às vezes não faço sentido. 
Quase. Às vezes. Possível. Provável. Nota? Vez em quando eu cuido pra não me iludir com certezas. Outras vezes descuido e pareço sensata. Vez em quando faço o jogo do contente. Outras vezes choro. Vez em quando é quando ouço música. Outras vezes quando lembro de domingos como o último.
Retomei a escrita, ao menos, o que me desencarrega da função de processar informações sozinha. Assim, reparto a tarefa de me desentender. Alguém já disse um dia - Fernando Pessoa, já que a memória é melhor que o resto - que nada pesa que não leiam o que se escreve. E segue dizendo que se escreve para se distrair de viver. E se publica porque o jogo tem essa regra.
Hoje me distraí mais que o normal, sabe? O aniversário da tia Carmen, o estágio, o entrevero, o jogo. Os ingressos, as roupas e os preparativos pra sair no sábado, ainda naquela história do jogo do contente.

Logo depois de Andrea Doria e Os Barcos, vem Sereníssima, aquela do Legião que diz como eu gostaria de estar enquanto o caos segue em frente com toda a calma do mundo.

Acho que quando "ser" dá muito trabalho, não é pecado fingir.