terça-feira, 14 de julho de 2020

Ainda sobre querer

Nos países de língua espanhola amantes dizem te quiero. Acho isso lindo. Dizer te quiero é como declarar que o outro atende, no todo ou em parte, a algum desejo. Ainda assim, sabem bem os herdeiros de Cervantes que entre querer e amar alguém há uma porção imensa de paralelas finas. Vez ou outra talvez até queiram que estas linhas se toquem, mas se dizem te quiero sabem que, pelo menos por enquanto, elas ainda formam um abismo através do qual podem saltar ou não  e ainda não sabem se vão.
Se eu tivesse nascido do lado de lá do Tratado de Tordesilhas, te quereria sem medo na cama espaçosa de um domingo que não fizesse barulho. Te quereria começando a sangrar. Te quereria chapado, falante ou chorando, enlouquecido. Te quereria às claras. Te quereria em posição fetal. Te quereria logo depois de ver um ovni. Te quereria com teu botão de pause adquirido de escambo. Te quereria me olhando de canto. Te quereria preterindo meu travesseiro por ti, calmo e terno, oferecendo um abraço. Te quereria de instantes em instantes, mais do que de projeções em projeções. Te quereria podendo perder meu controle e pondo pra correr todos os pensamentos, até me contorcer inteira nos teus braços e ao redor de ti. Te quereria suspirando satisfeita. Te quereria ingênuo como antes dela. Te quereria, ingênua, como antes deles. Te quereria em bando e sem comparativos. Te quereria imenso: para cima, para os lados e pra frente. Te quereria gigante, de pé, na minha frente e ao meu lado. Debaixo de mim. Te quereria sem medo de vacilar na frequência certa de vez em quando. Te quereria com um cachorro carcomido debaixo do braço, saindo do veterinário, com a língua pra fora, preocupado. Te quereria chamando bebês no diminutivo. Te quereria de novo sem evitar dizer que há entrega ou mais de uma saudade por semana. Te quereria sem fronteiras ou formalidades diplomáticas. Te quereria invasiva, de luz acesa e cortina aberta. Te quereria pacote completo, inclusas as flores e os documentários. Com a boca roxa e os lábios projetados para a frente, parecendo desdém. Te quereria entregue a querer.
Se eu me comunicasse em espanhol, tu entenderias?
Na língua materna me falta vocabulário.

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