terça-feira, 29 de setembro de 2020

Eco [21]

Larguei as chaves em cima de uma peça de cerâmica em formato de folha cuidadosamente pensada para ficar ao lado esquerdo do aparador da entrada, ao alcance da mão, e o gesto produziu um barulho curto, mas estridente como um alarme. No centro da mesa, flores artificiais nos mesmos tons do quadro escolhido por algum decorador famoso que eu nunca vou conseguir pronunciar o sobrenome, embora a recepcionista tenha tentado me impressionar mais cedo abusando de todos os tês mudos e efes dobrados que compunham sua assinatura.
Precisei tirar os sapatos e arrancar as meias para sentir três passos de um tapete fofo até me debruçar no sofá com o corpo inteiro jazendo pesado, a cara e tudo, num material moderníssimo impermeável, como descobri chorando sobre ele uns minutos depois. Para tentar me por absorto daquele teatro de cafonices pretensamente cosmopolitas e lembrar quem eu era, fechei os olhos e respirei fundo, obrigando a cabeça a cavoucar algum pensamento distinto no meio de tantos comportamentos automatizados.
Veio logo um episódio de mais cedo, quando eu vi uma mulher dentro da piscina maior, tia ou instrutora, mãe não parecia, tentando ensinar a uma criança a ter coragem de mergulhar. Mas o menino não era capaz, por nada no mundo, de tirar as boias apertadas contra os dois bracinhos magros, repetindo toda vez o gesto de levar a mão ao rosto, o que impedia que se entregasse à experiência completa. A mulher dava em outro idioma as instruções doces e calmas de que ele podia confiar nela, de que ela ia segurá-lo, de que naquele lado ele ainda dava pé, e a criatura como que por instinto parecia não dar mesmo conta de se soltar todo contra a água. Quando finalmente achou que tinha conseguido, as boias ainda o continham na superfície segura dos que não se afogam nem molham bem a cabeça. Pensar nisso deitado no sofá àquela hora do dia teve pra mim o mesmo efeito que beber líquida como água e cloro uma dose cavalar de realidade pelo nariz.
Quando tornei a abrir os olhos, acomodei a cabeça e reparei num canto que estava escurecendo. Digo, não do sol se por. A parede estava escurecendo. Já era estranho estar num hotel como aquele, do outro lado do mundo, mas mais ainda ser surpreendido com uma trivialidade dessa depois de despertar da lembrança anterior. Eu tinha a nuca apoiada numa almofada enorme de qualquer cor em tons pastéis quando percebi que a tinta branca da parede começava a ter ranhuras naquela pequena parte do quarto, atrás da cortina, bem próxima ao teto. Talvez, pelas ínfimas dimensões da mancha, ela houvesse passado despercebida. Eu acho pouco provável que a administração do lugar fosse deixar um detalhe desse passar, se se ativesse a ele, o que me dá a impressão de que eu era o primeiro hóspede e, mais do que isso, o primeiro ser humano a notar que aquele fenômeno estava acontecendo ali.
É quando se percebe o mofo pela primeira vez que ele começa a existir. Canos se rompem, é claro, mas só depois do primeiro furo minúsculo que dá vazão ao que estava contido é que o estrago começa a ser feito. Do mesmo modo que a primeira partícula esverdeada que se aninha a uma segunda, quando notada, inaugura um mofo inteiro. Pode-se, antes, abrir bem as janelas, arejar o ambiente, dar a ele a luz do sol. Fazer um trabalho preventivo. Porque depois não há o que se possa fazer. Eu sempre quis ter essa sensibilidade de não deixar nada mofar, desgastar ou corroer. Lamentavelmente, faço parte daquele grupo que só se dá conta do caos quando ele já está instalado. A possibilidade daquela sensibilidade é toda perdida quando o primeiro ponto de fungo de mofo aparece, porque depois daí tudo é um receio imenso do lugar ser corroído de escuro antes mesmo que a gente possa dar o primeiro espirro.
Se penso naquele menino e na coragem que lhe faltou e me enxergo o mesmo covarde de quando tinha menos anos de idade e começava a descobrir o mundo fazendo cena e resistindo ao fundo, e acreditando que tudo devia ser perfeito e liso e limpo como a parede mais bonita do hotel mais caro que o dinheiro pudesse pagar, eu lembro que o medo de afundar e se afogar é um pouco como o medo de que seja tarde demais para conter os danos e manter as aparências. Idealizando a perfeição, eu também sei vestir as boias para nunca mais querer tirá-las. Mas eu estou exausto de tentar me convencer que qualquer amor é melhor do que amor nenhum, Laura. E uma verdade úmida como essa, quando é notada, já se infiltrou pelo quarto inteiro.

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