quarta-feira, 28 de abril de 2021

No que pensa quem não fala

O apartamento ao lado foi ocupado por um casal que muito provavelmente tem um filho. Não vi a mudança acontecer, mas já ouvi uma vez ou duas as três vozes distintas, em alto e bom som, ecoarem pelas janelas deles em direção às minhas, depois de um ano inteiro de silêncio absoluto ali desde que mudei pra cá. O filho deles acho que usa muletas. Sei porque o segundo quarto tem muletas apoiadas na janela aberta de vez em quando agora. E provavelmente alguém do casal ou ambos têm uma família distante, porque outro dia ouvi uma chamada de vídeo na qual circulando pelos cômodos animada a mulher dizia a quem talvez fosse sua irmã ou mãe ou cunhada ou sogra que o lugar tem tantos quartos, e tantos banheiros, um sofá assim e assado e inclusive é cheio de CDs e livros incríveis da antiga proprietária "aqui, nesta estante" - e que seria incrível se um dia ela, interlocutora, pudesse encarar a viagem e visitá-los para conferir pessoalmente.
E aí teve o dia em que, finalmente, depois de assuntar um par de coisas com os ouvidos, tive alguma sorte de contato visual com eles. Como o apartamento é espelhado com o meu, a vista da janela da minha cozinha sem cortinas atravessa a lavação, a janela texturizada da lavação e o vão de ventilação do primeiro andar para dar em outra lavação com sua janela texturizada, que dá em outra janela da cozinha também sem cortinas. De modo que quando cheguei na minha própria cozinha, de pés descalços e uma roupa extremamente caseira, para lavar a louça, estando as janelas todas abertas eu os vi de luz acesa e em movimentos domésticos e foi como se eu intuísse todas as peças refletidas nas minhas. E foi também como se comungássemos imediatamente das duas intimidades familiares sem querer, com alguma curiosidade, mas com um espanto genuíno, arquitetônico, moderno e inconveniente. Sei que imediatamente desejamos todos morar em duas fazendas com pelo menos dois hectares de distância entre elas.
Foi quando descobri meio de relance que a geladeira deles é branca e grande e fica apoiada bem no canto esquerdo de lá e eles têm uma espécie de bancada. Vige a regra do quem-cozinha-não-lava. Eles também devem ter descoberto que tenho um vaso de tulipas falsas pregado na parede em tons de vermelho, laranja e amarelo, que ouço música sem fones, que minha pia é rente à janela e minha secadora de roupas encosta do outro lado da parede-meia, aproveitando uma tomada que podia ser dos eletrodomésticos.
Em uma fração de segundos estas coisas foram todas descobertas, mesmo que não tenhamos dito uma palavra, mesmo que não tenhamos desejado e mesmo que não tenhamos sido demasiado curiosos para que acontecesse. Viramos espectadores recíprocos da vida alheia. Achei que tudo teve um tom de invasão constrangedora para os dois lados, o que me levou a ter que fazer força para agir com naturalidade. Naquele momento, julguei que a melhor maneira era fazer de conta que aquilo não estava acontecendo. Não os cumprimentei (embora saiba que na quinta o mais novo precisou berrar por uma toalha de banho, do que pude presumir que o armário onde guardam toalhas não fica no banheiro). Não acenei (embora saiba que jantaram macarrão com brócolis e bacon). Nem me apresentei. Nem sorri. E eles na cozinha assistindo TV, conversando coisas aleatórias e resmungando outras que eu não conseguia discernir.
Instaurou-se uma reflexão séria na minha cabeça sobre má educação. Algo sobre o dilema ético entre não ser a vizinha do mês ou entrar na casa dos outros sem ser convidada. Por fim, preferi respeitar o manual da privacidade. E por falar em privacidade, em dois segundos fiz uma série de contas sobre aquela dinâmica, como a de que não poderia mais tomar água sem roupa de madrugada, por exemplo. E que tudo que ouvi também poderia ser ouvido por eles quando eu falar algo dentro do meu próprio apartamento.
Eu tive louça de três dias pra lavar naquele dia. Cozinhei picando as coisas com muito mais cuidado. Preparei um chá com alguma cerimônia. E fiz tudo enquanto pensava no que estavam pensando de mim, no que estavam vendo de mim, no que estavam assistindo do reality show particular do qual agora éramos todos, além de espectadores, participantes.
E foi assim que eu virei a vizinha que eu virei na cabeça deles.
Sabe-se lá se a tímida ou a rabugenta.
Se a prudente ou a mal educada.
Já criei 39 teorias a respeito. Inclusive aquela na qual me dei conta de que dou muito mais importância do que deveria ao olhar do outro sobre minha intimidade. Neste caso sei, entretanto, que mais dia menos dia cruzaremos nas escadas e nos cumprimentaremos cordialmente e verbalizaremos todo o ritual de boas-vindas e apresentações e a partir daí a nossa relação será construída, aos poucos. Mas ainda me deixa absurdamente inquieta pensar, de um modo meio exaustivo até, nessas coisas que são presumidas pelo espectador sem muito contato a partir das mínimas informações. No que pensa quem não fala. De quanto julgamento e preconceito é feito o olhar de quem olha e foi capaz de olhar apenas superficialmente.
Porque na vida, na internet, e agora infelizmente também na minha janela da cozinha, aquilo sobre o que incidirão as primeiras impressões do outro é sempre público, nunca privado. É como se no mundo, e especialmente no virtual, fôssemos todos vizinhos de janela. E o que os outros podem supor do que a gente é, a partir de pequeníssimos ou grandes sinais, chega quase sempre muito antes da gente.