sexta-feira, 30 de julho de 2021

Variantes

O que mais me encanta em viajar é aumentar a chance de descobrir um canto bonito do mundo que a minha imaginação não tenha conseguido prever antes. Beleza natural, obra de museu, uma gente estranhamente familiar fazendo as suas coisas comuns de um jeito diferente e novo no meio da cena: nunca consegui traçar um padrão na composição. Eu sou capaz de me lembrar, porém, de momentos muito específicos em lugares em que me senti extremamente feliz, em paz e conectada com um todo. Em alguns eu tenho fotos. Em outros eu meio que intuo que ainda possa ficar tão contente e viraram destinos numa lista imaginária. Em outros a câmera não capturaria o que eu sinto. Os melhores momentos me pegaram de assalto. São aqueles em que fechei os olhos e enchi os pulmões de uma vida inteira de repente. Uma vida num segundo, geralmente de silêncio. Uma vida tão vasta e cheia de possibilidades que eu só soube sentir nessa espécie de êxtase efêmero a certeza. Mas tenho viajado menos. E me conformado mais com isso. Tenho conhecido menos os encantos do mundo e os peixes do mar. Tenho tido menos estímulo novo, de fora, para renovar meus grandes momentos mentais. Tenho visto menos variedade de gente. E a variedade que tenho visto é enjoativa como eu mesma, porque já conheço. De modo que para voltar à sensação de extremo prazer de uma redescoberta quase infantil das possibilidades novas e pulsantes deste planeta eu tenho tido que fazer alguma força com a memória. Para fazer surgir uma coisa que de tanto ser evocada vai ficando muito antiga e meio gasta e rota. Estou parada. E estar parada acaba com a minha fé cênica. De repente já não sei mais contar a história que gostaria de ter. Como se o aqui e o agora só fizessem dobrar as minhas abas crescidas de viver coisas novas para dentro, para caber aqui. Agora. E não sou capaz de achar que isso tenha necessariamente a ver com envelhecer, porque eu já envelheci antes e as coisas tinham ficado melhores. Penso nesse congelamento momentâneo das minhas coisas boas imprevistas e insonhadas mais como um recorte de tempo e espaço, porque estou no sul do mundo. E assim me sinto rodeada de feiúra e de sobras, do que é antigo, de mais do mesmo, de algo como um desmovimento para a frente. Efeito-caranguejo. Eu me sinto meio terceiro-mundana e presa numa cela de terceiro-mundanos da pior espécie. Como se à nossa geração fosse conferido um azar tremendo, que já se repetiu antes. Ou que quem sabe seja cíclico na História do Mundo e das pessoas, mas nem por isso menos desastroso. O mundo às vezes costumava se mostrar tão bonito, para agora estarmos vivendo e engolindo coisas nojentas como alguém que bota o que sobrou de viável numa gaveta e só abre de vez em quando, para não gastar. Como um perfume caro. É isto. Tenho passado menos perfumes caros. Julgado menos especiais as minhas ocasiões. Tenho planejado menos as próximas viagens. O que talvez signifique confiar menos no futuro. Em contrapartida, tenho aprimorado minha capacidade de desassociar da realidade. O que muito provavelmente tem a ver com a prática, para não enlouquecer.

Deve ser quando a gente se cansa de estar hoje e neste onde repetidos que descobre aonde mais quer ir.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Alegoria

As câmeras do celular novo são ótimas, mas o disparo já com zoom acaba com tudo. Os pixels ficam enormes e tudo na imagem ganha uma espécie de contorno branco. Meio Romero Britto ao contrário. Meio não-cor. Meio radiografia. Uma captura em contraste diretamente do mundo invertido. É como se a fotografia fosse banhada de um excesso de luz que, justo pelo excesso, compromete a essência da coisa. Já não permite contexto. Tudo contaminado.
Desde que comprei o celular novo virou uma falta de respeito fotografar as coisas com zoom. Melhor mesmo o panorama geral, para depois aproximar de novo com tempo e se quiser. Melhor a tomada ampla, a perspectiva superficial, uma noção do todo envolvido - didaticamente falando.
Acho que é assim ser enxergada de perto demais, por um excesso de intimidade, por alguém que me conhecia bem antes. A gente de repente fica à mostra e se reconhece nova de uma forma que não esperava. Pior: a gente agora se vê ali, na tela, de um jeito que talvez não quisesse. Formatada pelas circunstâncias. Na contramão do high definition. Ou quem sabe como uma consequência dele, visto que o instante capturado em milissegundos pelo zoom é muito feio, mas (também) é exatamente quem a gente é. Hoje. Quem a gente está sendo enquanto tem esta discussão.
Ocorre-me agora que eu talvez não saiba ainda ajustar a câmera ideal para cada ocasião. Mas não estou a fim de me sentir burra ou inadequada por isso, porque a verdade é que tenho tentado muito. Estou exausta de tentar. Então quero mesmo é falar do espanto que me causa notar que mesmo o celular novo sendo excelente, tem este defeitinho de fábrica. Possivelmente sem conserto: não existe botão desver ou desfotografar com zoom. Ora fica nítido que ganhei esta ruga no meio da testa de repente, ora num clique errado sou capaz de circular a ruga com tinta branca, o que é ainda pior. Talvez já a tivesse antes, mas não notasse, pela forma como capturava a realidade. Como se aquela mínima reprovação pela resolução, antes manifestada em silêncio, ganhasse agora a forma de um insulto no meio de uma briga. Mas vamos voltar à alegoria: é meio que como uma imagem VGA ampliada num outdoor. Não é que tudo tenha subitamente se transformado. Ainda é quase a mesma fotografia, mas parece pior só porque não cabe ali. Esticou.
Deve ser por causa de celulares com câmeras como o meu que inventaram os filtros do Instagram (e o ventilador, para espalhar a merda até que tudo seja tão merda que haja de novo beleza num pouco de ar fresco, mas isso é outra história). Deve ser por situações assim que inventaram a capacidade de reinventar a consideração e o respeito por alguém, dando um passo atrás, mesmo com o coração estraçalhado de quem já não pode evitar nem sabe mais negar ter dado um passo à frente.

Perdão. Eu já não consigo ser muito bonita no macro, tão de perto a ponto de não haver espaço para mostrar o que me tornei de longe.

Deve ser culpa do meu celular.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Posta-restante

Ainda há o que faça aquela coisa oca se esfarelar em mil. Uma sensação antiga: poodle raivoso atrás da porta. Ossos contra ossos. O beijo do Klimt. Chão de taco. Grandes rodoviárias. Pequenos silêncios que devolvem o controle. Mentiras deslavadas. São imprevistos proibidos feito zonas radioativas. Porque evocam uma melancolia subterrânea como se o passado ficasse umas quatro camadas debaixo dos pés. Volto para juntar os farelos como quem desce um túnel com uma escada em espiral até o que é profundo. Quero estar de volta nesse ar escasso e úmido. O mesmo das covas, das cavidades e das alcovas. Quero me lembrar do que fazia ficar depois de tanto insistir para não esquecer do que fez partir. No dia a dia aquela coisa quase me escapa. Quando volto para ela, oca como agora, amaldiçoo ter gasto as minhas energias mais frescas e vivas naquele período. Depois amaldiçoo a coisa ter ficado oca. Sem recheio ou substância. Sem um vestígio sequer que não o vazio protegido por uma redoma, e que se esfarela de vez em quando. Ainda me espanta que haja o que faça aquela coisa oca se esfarelar em mil, como um gatilho. E as partículas voando soltas. Minúsculas. Quânticas. Vivas. Tendo que ser recolhidas de novo. Ainda me espanta que tanta coisa aqui passou e aquela coisa oca fica.