terça-feira, 28 de julho de 2020

Minimalista

Guarda um tanto de ti na gaveta.
É a certeza que mata o mistério.
Se fica tudo pelo não dito
Sobra ainda uma chance
De fazer diferente
De reinventar
teu rito
De ir mudando lentamente
Enquanto o resto acontece

Guarda um tanto de ti na gaveta
para só pensar mais tarde.
Prefere um pouco
Que às vezes nada te anime
Que não te inquietem
O não e o sim
O vir ou o desvir.
Prefere um pouco
Que às vezes a euforia
Não passe de uma velha conhecida
E que o ritmo se desenhe por si.

Guarda um tanto de ti na gaveta.
Não terceiriza o poder
Do clima na tua barriga
Há um bocado de coisas
Que só se resolvem sozinhas
Com serenidade
Sem delegar, transferir
ou emprestar
culpa
e responsabilidade

Guarda um tanto de ti na gaveta.
No mesmo lugar daquele do Cortázar.
Resolve o conflito no centro
Resolve, primeiro, no centro!
Descobre de novo
Que o para-brisa é maior
Que o retrovisor
E depois volta, sem medo:
a olhar no fundo
a perceber o quanto vale
O que ficou guardado dentro

domingo, 26 de julho de 2020

Atlântica

Passa de duas da manhã. Lá fora faz frio, aqui dentro eu faço questão. Hoje sei que não vou conseguir adormecer antes de escrever que me dói perceber ter apostado num pacífico sendo tão atlântica. Você é pacífico e eu sou atlântica. Atlântida. Uma cidade inteira submersa no peito, onde tudo acontece. E nela tantos tesouros escondidos que eu gostaria que fossem encontrados. Se ao menos você procurasse. Mas esta noite não. E acho que nas outras tampouco. Olhando pra tela em branco onde esse texto se desenha na madrugada do sofá da minha sala eu tento de novo entender, em vão, essa predileção estranha por quem me quebra sem notar que quem me quebrou fui eu. De novo. Você é tão pacífico. De um jeito que chega a me irritar. Você não nota o tamanho do que se esconde no meu degrau de baixo. Nem faz questão. Você não nota que vai mas fica um pouco, como óleo, formando pequenas manchas no meio de mim. Quem nota me manda fugir. Ou partir pra outra. Ou não me permitir de novo insistir até que seja tarde demais. Você vai e eu me dou conta de que isso não importa o quanto poderia importar, se você se importasse. Esse silêncio me ajuda a entender do que eu quero me distrair quando te busco pra perto. O frio também. Mas hoje você não me entretém. Pra ser honesta, hoje nada me entretém. Então, de repente, tudo cai sobre mim como uma pedra atirada no fundo de qualquer oceano. De uma vez. Lenta e só. Reescrevendo a lei de sua própria gravidade. Percebo tudo de uma vez e não consigo desver esse descompasso. Mas eu mal comecei e estou tão cansada. Dessa procura. Dessas apostas. Dessa necessidade de não pensar a respeito. De me dar o que comer. De me por pra dormir. Mas você não quer saber. Não, você não quer saber. E, se pergunta, é como que por educação. Você só quer deixar ser, estar, acontecer. No fundo, você não quer saber que eu perdi as contas de quantas noites como essa eu sou feita. Muitas, pelo que me lembro. E muitas ainda virão, pelo que suponho. São noites que cabem no bolso desse casaco. Por dentro da meia-fina preta. Na textura do batom vermelho. No cheiro doce impregnado no meu cabelo. São noites em que eu levo o que machuca pra passear, mas trago sempre de volta, pra casa, em guerra, exausta, sozinha, no fim.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Trincado

Tem alguma coisa que grita alto na minha cabeça. É ainda pior quando sou contrariada ou me sinto presa. E eu tenho me sentido bastante contrariada. Há todas estas restrições sanitárias e mortes e ressacas morais depois da amnésia e meias-verdades e há todos esses conflitos e essas dúvidas e as minhas enormes obsessões investigativas. Estou cercada. Quase sem ar. E depois há todas as vezes em que perco o controle, de novo. Há também o que eu quero e ainda não consigo dizer em voz alta. Talvez essa seja a raiz da coisa que grita alto na minha cabeça: o que eu quero e ainda não admito. A coisa que grita alto na minha cabeça cresce - e quase me ensurdece - quando qualquer palavra escorre dos meus ouvidos no tom de uma rejeição. Tenho medo de ser um pouco rejeitada. E sei que isso significa que alguma parte de mim acredita que merece exatamente o que teme. Algo bate forte e afiado na parte mais sensível do meu ego quando meu tanto é pago com faz. Ou quando suspeito que é assim que ele tenha sido pago, no devaneio das minhas suposições. Aí há alguma coisa que grita na minha cabeça sem parar, sem parar, irritante como um filho único. Um grito que tem a face da mocinha de Psicose e uma estridência que eu sei que poderia estilhaçar todos os vidros desse apartamento se fosse finalmente posto pra fora. E quando sou descoberta nessa fragilidade, isso me arde mais. Há dias, de modo geral, que me ardem mais. Há manhãs nas quais eu olho pro recado colado na moldura do espelho do quarto e me pergunto como. Como é que eu vou conseguir. Como é que eu vou quebrar a minha prosa e dialogar com o mundo, se a minha mente anda tão a milhão por hora, tão comigo mesma, tão analisando tudo e julgando cada coisa. Como é que eu vou me esquecer que a paixão é um dos únicos sentimentos capazes de fazer frente ou apostar corrida com esse desespero enorme e sem nome que às vezes fala tão alto que não me deixa ouvir outra coisa. Eu sei que preciso parar de rodar, trôpega, entre os cantos mofados desse quarto e esses outros cantos que suponho, formados entre a dobra do que nem foi dito e aquilo tudo que eu teorizo. Eu sei que preciso parar de roteirizar uma decepção que me seja confortável porque já estava prevista. Que se me condiciono para o pior e ele chega e eu ainda estou tão despreparada sofro o dobro. Chego em casa e tiro as botas de salto alto e fino no fim do dia e encaro as meias curtas, brancas, de estrelas, um pouco infantis. Não consigo sossegar essa vontade de ser embalada como criança pequena afastando o medo de me perder para os outros. Quero ser gente grande logo. Quero me bastar logo. Tomara que ninguém suspeite quão alto grita a coisa dentro da minha cabeça. Tomara que amanhã ninguém suspeite que o que eu vejo no fundo das almas quebradas ao meu redor é um espelho trincado de gritos não dados.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Ainda sobre querer

Nos países de língua espanhola amantes dizem te quiero. Acho isso lindo. Dizer te quiero é como declarar que o outro atende, no todo ou em parte, a algum desejo. Ainda assim, sabem bem os herdeiros de Cervantes que entre querer e amar alguém há uma porção imensa de paralelas finas. Vez ou outra talvez até queiram que estas linhas se toquem, mas se dizem te quiero sabem que, pelo menos por enquanto, elas ainda formam um abismo através do qual podem saltar ou não  e ainda não sabem se vão.
Se eu tivesse nascido do lado de lá do Tratado de Tordesilhas, te quereria sem medo na cama espaçosa de um domingo que não fizesse barulho. Te quereria começando a sangrar. Te quereria chapado, falante ou chorando, enlouquecido. Te quereria às claras. Te quereria em posição fetal. Te quereria logo depois de ver um ovni. Te quereria com teu botão de pause adquirido de escambo. Te quereria me olhando de canto. Te quereria preterindo meu travesseiro por ti, calmo e terno, oferecendo um abraço. Te quereria de instantes em instantes, mais do que de projeções em projeções. Te quereria podendo perder meu controle e pondo pra correr todos os pensamentos, até me contorcer inteira nos teus braços e ao redor de ti. Te quereria suspirando satisfeita. Te quereria ingênuo como antes dela. Te quereria, ingênua, como antes deles. Te quereria em bando e sem comparativos. Te quereria imenso: para cima, para os lados e pra frente. Te quereria gigante, de pé, na minha frente e ao meu lado. Debaixo de mim. Te quereria sem medo de vacilar na frequência certa de vez em quando. Te quereria com um cachorro carcomido debaixo do braço, saindo do veterinário, com a língua pra fora, preocupado. Te quereria chamando bebês no diminutivo. Te quereria de novo sem evitar dizer que há entrega ou mais de uma saudade por semana. Te quereria sem fronteiras ou formalidades diplomáticas. Te quereria invasiva, de luz acesa e cortina aberta. Te quereria pacote completo, inclusas as flores e os documentários. Com a boca roxa e os lábios projetados para a frente, parecendo desdém. Te quereria entregue a querer.
Se eu me comunicasse em espanhol, tu entenderias?
Na língua materna me falta vocabulário.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Avarento

Baby
Eu queria
Que seu desejo fosse
Um cheque em branco
Assinado
(é claro)
Que eu preenchesse
E descontasse
Quando me conviesse

Que seu desejo fosse
Daqueles
Que batem o pé
Na fila do banco
Para apressar o gerente
Para tomar um empréstimo
para poder pagar o preço
para poder desejar mais

Baby
Se você não passasse tudo no débito
Não fizesse planilhas
Não tivesse o orçamento
do seu desejo
tão apertado
Eu também manteria a minha conta
No vermelho

Mas você é avarento

terça-feira, 7 de julho de 2020

Louca de homem

Do interior da cidade de onde eu venho vem também a história de uma jovem que enloucou de homem. Tinha uma família boa, foi bem criada, estudou e usava umas saias até o joelho, como mandava o figurino da época. A menina era um primor. Mas quando as pessoas se deram por si, ela enloucou de homem! Não é que tenha virado quenga, não - embora isto sempre dependa muito da perspectiva moral com que se olhe para as situações. O que conta o senso comum é só que seus pensamentos se descaminhavam muito nitidamente quando chegava perto de um homem. A ponto de não dizer coisa com coisa e sair estrada afora com o dedo anelar sem adorno para o alto dizendo: aqui não aqui não aqui não! E às vezes era só o padeiro passando, o filho da vizinha em uma bicicleta, qualquer homem praticamente incapaz de lhe fazer mal algum.
Para que se curasse dos maus hábitos, às vezes passava meses enclausurada sozinha no sanatório da Vila Inês. Todo mundo sabia, mas fazia de conta que não, para manter as aparências. Diz-se que voltava sempre como quem volta de uma viagem, revigorada. Noutras ocasiões a família, farta de suas sandices, rendia-se a deixá-la fazer das suas em público. Assim, diz-se, foi se construindo sua fama e, sobretudo, foram-se todos acostumando com a acidez de seu comportamento, que nem por isso deixava de ser bastante patológico.
Houve vez de um grupo inteiro de oito estudantes de Medicina descer da capital só para se debruçar sobre seu caso. Quiseram testar se a literatura técnica e seus microscópios e tubos de ensaio davam conta de explicar a causa, uma predisposição, os sintomas e o potencial contagioso da doença. Mas não teve jeito. Só o que conseguiram descobrir era que as enloucadas dela começaram no dia em que viu um moço muito bonito cruzar a rua e sem querer ele desplugou o fone de ouvido da caixa de som que carregava no bolso e, no ato, a praça da cidade foi tomada de um barulho muito alto, meio triste, dançante e melancólico.
Pensava-se inicialmente que ela houvesse ficado fascinada com aquilo, tanto, que seguiu o moço até encontrá-lo. Sabe-se que o encontrou sentado num banco da estação, os fones de volta nas orelhas, sem prestar-lhe a mínima atenção. E ela gritava e era como se surdo da música alta ele também ficasse cego para sua mímica agitada que não tinha fim e também ficasse não-tátil pra os chacoalhões que ela lhe dava nos ombros para chamar-lhe a atenção plena.
Conta-se a boca pequena que foi a maior vergonha que já se viu uma mulher passar quando ele seguiu, impassível, com a mala e o chapéu na mão, e tomou o primeiro trem para longe. E ela ali, naquela afobação teatral. Naquele mesmo dia, mais tarde, diz-se no interior da minha cidade que a jovem contou a uma amiga que queria só devolver a ele um lenço branco de anil que deixou cair na frente da farmácia e, com tanto barulho e espantamento, ninguém reparou. Mas já nem a amiga lhe acreditava.
Dali pra frente, ela enloucou de homem. Não havia mais qualquer deles sobre a Terra que pudesse chegar perto sem acordar nela um grave tique nervoso. Às vezes, ouvi dizer, ela vociferava outros berros além daquele típico do anelar em riste. Coisas como: quero água, quero água, pão e vinho e atenção, água/pão/vinho/atenção, água/pão/vinho/atenção. Repetidas vezes, até cair de sono exausta ou dopada e acordar mais uma vez dentro da ambulância ou já nos leitos brancos e assépticos da ala psiquiátrica. A fim de conseguirem contê-la um pouco para regressar à vida em sociedade, mantida a saúde pública e a dela própria.
Porque é sabido até hoje no interior de onde eu vim que se um homem lhe tocasse quando estava naquele estado de nervos típico de quando um homem lhe havia acabado de tocar, brevemente também recaía sobre ele uma enxaqueca terrível, e a sequela que ficava quando a dor de cabeça passava era não entender mais uma palavra que não fosse literal. Música então, nem pensar. Parecia mandinga. Ou uma coisa de energia mitológica medusiana, seja lá como funcione evocar estas coisas.
Antes que eu nascesse, deram-se os fatos de seu óbito. Conto de ouvir falar, porque acho a história curiosa e toda muito pitoresca. Daquelas que só se ouve com tanta riqueza mentida de detalhes no interior do interior, depois de muito telefone sem-fio. Pois diz a anedota de seu passamento que a jovem, já não tão jovem, acostumada a enloucar muito de homem desde muito nova, um dia ouviu no corredor do mercado começar a tocar baixinho e ir-se avolumando aquela mesma música que se ouviu na praça da cidade inteira no fatídico primeiro dia de seu enloucamento.
Diz-se que todos presentes no estabelecimento que conheciam a história e também os seus floreios posteriores ficaram apreensivos. Esperaram, esperaram, atentos e temerosos. E nada do espetáculo inconveniente de sempre. Quem esteve lá jura que era como se ela não estivesse sentindo nada. E diz-se que parecia estar se esforçando muito para ocorrer o contrário.
Da última vez que suspirou, não houve griteiro nem chilique. Ela não espumou de ódio de homem nenhum, como se esperava. E então caiu devagar, escorando-se no carrinho cheio de compras. Tinha perdido o viço. O brilho nos olhos inteiro de uma vez. Por um momento ligeiro a vida parecia passar-lhe como flash, disseram os presentes. Tudo enquanto ela caía lenta entre a prateleira do trigo e a do arroz. Básica e calada como poucas vezes na vida, foi-se encontrar com o que quer que esteja do lado de lá. E embora se possa cogitar que foi para o céu, no auge de sua insana santidade, como se espera que possam ir os inimputáveis, também não há quem possa garantir que uma hora dessas não esteja queimando tranquila no inferno. Não há quem possa garantir que não fosse má e cáustica. Nem que ainda não esteja esperando o derradeiro instante em que a alma do último indie de meia tigela queime inteira na ponta do último cigarro do último moderninho subversivo que brotar desavisado na nossa cidadezinha lá do interior.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

De liquidação

Estamos fazendo a mesma manobra, com a diferença de que eu estou querendo te dizer há dias que aquele jeito de bater na porta antes de entrar é o mesmo que o meu, uma coincidência enorme. E tu eu não sei. Estamos esfriando antes de ter aquecido bem? Eu me sinto alguém que assopra as brasas a plenos pulmões quando não estás olhando e esfregas as mãos e as enfia nos bolsos achando um isqueiro perdido na tua jaqueta preta. Não sei o que te lembras quando isso acontece. Não tive tempo ou entrega para descobrir. E começo a sentir um desconforto em te escavar e receber sempre mais risadas do que respostas. Estamos salteando encontros no calendário com moderação mas eu gostaria muito de aparecer de surpresa. Tu não. E assim vais me ensinando a me recondicionar para o mundo com esta espécie de covardia que só retribui a indiferença que não doa. Ou que doa, mas saibamos fazer de conta que não. E vamos nos mantendo muito leves e livres e alheios ao que virá, mas eu estou só fingindo o tempo inteiro que sei boiar em água mansa enquanto não sentimos prazer ou remorso em mergulhar um pouco, nem que seja com a ponta do pé. Quero sentir tudo muito, mas desconfio que tu nem saibas. Acho que não apertas os olhos para fazer foco além dessa versão grosseira de mim que se parece contigo. Como se vivêssemos um romance de liquidação. Somos as peças que sobraram no final da estação. Eu me vendo barato pra que tu que não deixes de me comprar uma vez por semana, como um velho hábito sobre o qual não seja preciso reservar energia para pensar a respeito. Cerveja, pães, cigarro ou alface. Já não tenho certeza de que te prefira acreditando que eu também não sei o que quero e o que não quero da vida. O que me alivia ou o que me assusta. Porque acho que sei. Estou o tempo todo querendo dizer um sim enorme para qualquer coisa. Mas tu não me perguntas nada.

domingo, 5 de julho de 2020

Eco [19]

Não tenho coragem o suficiente de te querer menos que o suficiente. Ou de te beijar pouco. Não posso me dar o luxo de te ver chegar, insistir e depois perder o controle, Laura. E também não comportas nem mereces meu desejo médio, equilibrado e recomendado pelo Ministério da Saúde. Sentado nesta cadeira e te olhando de longe nesta sexta-feira fria imagino, desavisado, escorregar a mão por dentro da tua roupa sem saber que vais querer logo tudo. Deve ser por isso que teus lábios sem voz encontram os meus olhos e se desenham numa pergunta, me dizendo: eu duvido. O prazer de uma transa não vai nos bastar, mas reconheço o quanto é incoerente te negar essa possibilidade. É tão complexo que não sei explicar. Então tu diz eu duvido e depois me arrasta, rendido, para o escuro do banheiro de uma casa vazia. Todo mundo vê, mas ainda assim subir a escada contigo tem o gosto de um segredo. Teus dentes batem contra os meus lábios com força e me puxando e eu tenho cada vez mais certeza de que do teu beijo, Laura, eu nunca vou poder dizer que seja como um pedido de licença. Tu és o avesso de morno. Tens tudo que é confortável de cabeça para baixo. Eu fico frouxo diante de ti e do teu tamanho. Por isso desejo que me perdoe por não saber direito te dizer por que não. Por investir sem pensar a minha mão e a minha coxa contra o vão quente das tuas pernas. Nunca sei, depois, onde quis chegar e por que não tive coragem. Mas gosto tanto da cor da tua intensidade. De pintar os lábios nos teus, juntos, no escuro, e ter uma taça manchada da tua boca na pia do dia seguinte. Tenho agora a memória da tua textura úmida contra os meus dedos, abraçados e tu de costas. Ainda bem que sobrou um pouco de juízo. És tão completa, oscilante, cruel, humana, gostosa, intensa, livre e poética. Deve ser por isso que me dá medo te apertar contra mim, carne magra contra a minha, até os ossos se apertarem uns contra os outros. Tenho tanto medo de te quebrar que quase esqueço que tens a força de três ciclones e seguramente dentro de ti arde mais de um vulcão ativo.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Não se deixa prender

Quando estou em paz, corto os temperos em pedaços muito pequenos pra cozinhar e acerto as medidas de tudo. Levanto do sofá disposta a encarar o dia e encontro o que estava perdido nas gavetas com facilidade. Não esqueço das chaves, do lugar onde guardei os brincos ou de retornar as ligações. No trânsito, de carro ou a pé, encontro bem verdes todos os semáforos. Meus caminhos parecem todos abertos e, quando estou em paz, isso não me assusta. Um mistério que não decifro e não passa despercebido. Quando estou em paz tenho reflexos, intuição e serenidade. Quando estou em paz tenho sorte e não quero viajar no tempo. Não desejo corrigir meus desassossegos, como a série da moda, porque acho mesmo que não seria capaz de evitar pequenas tragédias. Quando estou em paz, não desejo saltar as angústias me equilibrando de momento de paz em momento de paz. Reconheço nessa tranquilidade uma delicadeza que não sufoca e não se deixa prender.