quinta-feira, 25 de junho de 2020

Eco [18]

Enquanto a Laura abotoava um jeans muito justo que contornou com alguma dificuldade seus quadris até chegar à cintura e parecia olhar com satisfação as próprias curvas refletidas no espelho, sem que eu pudesse esperar, me disse que sentia medo. De quê, perguntei, parvo como sempre, sem entender os gatilhos de suas confusões mentais como nunca, óbvio e literal como só eu, imaginando ou querendo que ela fosse responder algo como um medo de altura, de envelhecer ou de insetos voadores.
Ela respirou fundo e arqueou as sobrancelhas, organizando a frase seguinte e reunindo a paciência necessária pra lidar com aquilo. Amarrou os cabelos ainda um pouco suados bem no alto da cabeça e então disse que era medo de trair a própria liberdade comigo. Ao dizê-lo, não mudou o tom de voz, pra que talvez a mensagem passasse despercebida. Feito uma confissão que ignora por completo a figura do padre, mas precisa ser posta pra fora pra afastar de vez a ideia da própria divindade.
Depois ela emendou me dizendo que talvez se sentisse assim porque passou a vida negando o estereótipo da mulher que quer casar e ter filhos ou mesmo "só" achar um amor que durasse, porque se sentia um pouco anulada ao querer essas coisas. Que era como se essa vontade de ter um homem ao lado, que sim, existia, diminuísse em grande medida a sua força ou a sua independência.
Dava pra ver o quanto lhe custava dizer aquilo. O quanto deve ter reunido forças por dias ou meses até conseguir verbalizar a hipótese que agora me anunciava. E então eu não ouvi mais nada com nitidez, ou ela ficou em silêncio, eu não sei bem. Me botei a pensar que ela talvez fosse tão ferida quanto eu. Tão desgraçada quanto eu. Que ela também pudesse sentir a insegurança e o medo de se envolver mais profundamente com alguém de novo. Talvez sentisse até ciúme. A Laura se dispôs a sair de seu platô emocional pra compartilhar aquele medo comigo e o simples fato de dizer que tinha medo a humanizou diante de mim de um jeito bonito e forte, mas irreparável. Porque me dei conta de que ela tinha mesmo um medo muito grande, mas nem assim deixava de querer, muito, de todas as maneiras, o envolvimento romântico mais profundo possível, ainda que adivinhasse que enjoaria de mim ou de qualquer um que ocupasse o meu lugar assim que desvendasse a dinâmica da coisa.
Preciso contextualizar. A mulher dentro daquele jeans era até então, pra mim em especial, uma contadora de histórias. Que transava bem, é claro, mas sem deixar de ser uma contadora de histórias. E a história que a Laura mais gostava de contar era sobre si mesma. Falava de viagens, do trabalho, da infância, de sentimentos, e até sobre suas proezas sexuais. Mas percebo agora que cada uma de suas histórias contava com um véu de inverdade. Uma névoa. A Laura dava à própria vida a sua versão, num enredo peculiar, pelo menos antes de me confessar aquele medo, pra poder mudar de assunto quando eu chegasse perto de alguma profundidade. Ela era uma contadora de histórias e também uma perita em manobrar os fatos pra que tudo ficasse num terreno que lhe era confortável. Sabia adiar com beijos intermináveis o momento de que eu formulasse uma opinião a seu respeito ou mesmo conhecesse melhor os seus defeitos.
A Laura sabia preencher silêncios com diálogos, monólogos ou informações esparsas. Ela só não sabia lidar com o problema de querer. Este problema de não nos ter sido ensinado nunca como fugir do que se quer. Esta questão que implicava criar uma persona baseada em uma mentira ou duas sobre o amor e os relacionamentos e depois confrontar, muito de perto, um medo imenso da verdade reprimida. Da verdade de se envolver mais que o outro, de estar mais disposta, do desconhecido, da traição, do tédio, do desgosto e de tudo aquilo que, em mim e na minha complexidade de homem, podia feri-la tão mais fundo quanto mais fundo ela me permitisse chegar de seu íntimo.
Arrisquei perguntar à Laura se ela era capaz, apesar de tanto medo, de se enxergar de novo como o botão que atravessa um buraco feito cuidadosamente no jeans e sente que uma casa de botão é um espaço feito pra caber. Eu sei que a resposta era sim. Eu sei que a ansiedade da Laura é toda voltada ao instante em que se sentirá assim novamente. Mas ela tangenciou: "Se ninguém souber nem suspeitar que é isso que o botão quer ele não vai ter problema, certo?" E depois riu, nervosa. Ela sabia que agora estava nua diante de mim, apesar de ter acabado de se vestir. Ela queria um grande amor. E por maior que fosse a dedicação na costura de seu disfarce, agora havia uma ponta solta. Que consistia em sabermos que ninguém se movimenta livremente sem algemas entre o que quer e o que não quer. 

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