segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Chave, flauta e alicate

Naquele dia em que conversávamos sobre traumas e carência, um amigo me disse que vivia uma fase terrível de ferida viva na qual os portões pareciam ter-se aberto e os demônios iam saindo todos, um por um, sem que ele conseguisse fechar ou mesmo lidar com eles. A impressão tenebrosa sucedia um período no qual ele esteve absurdamente apaixonado. Ainda que não fosse, o raciocínio era perfeito. Dizia muito sobre nós, sobre o tempo que gastávamos tentando reprimir todas as nossas inseguranças sem encará-las, sobre a intensidade que sempre emprestamos e às vezes não nos devolveram. Dizia tudo sobre os esforços que fazíamos, às vezes juntos, para conter as duas bandas altas e velhas de madeira escura desse castelo antigo onde é aprisionada toda sorte de monstros com a qual preferíamos não ter que lidar. Daquele jeito em que logo se vê que o pedaço de madeira atravessado não vai suportar a pressão de dentro. O dilema - e se digo dilema é porque não encontro palavra melhor - é que viver é se relacionar. E cada pessoa que passa pode ter a chave de uma cela, o alicate de uma corrente, a flauta de um animal peçonhento que foi abafado ou pretensamente domesticado dentro da gente. Cada pessoa que nos acontece pode ser o início do furo que vai fazer estourar uma represa inteira que gostaríamos de esquecer que existe, feita dos nossos sentimentos mais feios, bem líquidos. E não nos é dado saber que custo vai se compensar em cada benefício. A cada trauma nasce em nós uma promessa de não deixá-lo se repetir, uma certeza de merecer mais, uma ansiedade de não errar de novo. Só que não existe a menor possibilidade de conseguirmos passar totalmente em branco pela vida daqui pra frente. Ou de nos fecharmos, feito prisões perpétuas, para que os demônios deixem de transitar livremente. Ou de enclausurarmos nossa disponibilidade toda nas masmorras dos nossos medos de falharem conosco. Não existe a menor possibilidade. E, se existir, espero que um lembre ao outro de que para nós o atrito entre as forças de dentro e de fora sempre ensinou muito mais do que um portão hermeticamente trancado. Porque é só pelos portões bem abertos que todo amor, euforia e reciprocidade podem entrar.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Por conta própria

De passagem de volta quase comprada para o próximo desatino
Aérea
Como a minha cabeça
Eu me pergunto como estabeleci o teto dos voos que alcei.
Por que sempre teimo ir ver se estou na esquina
Se meu destino final está aqui, na esquina.
E se digo esquina quero dizer:
Esta espécie de encruzilhada.
Por que flutuo no conhecido, orbitando as falhas, no que já provei.
Por que evito deixar espaço para momentos como aquele em que não estava dizendo que não, e também não estava dizendo que sim, e de repente as pernas podiam estar cruzadas mais para dentro da mesa e eu me esticava para trás fazendo um quiz sobre tudo-menos-a-profissão. É muito mais íntimo do que beijar na boca. Também mais incauto. Mais frugaz: uma mistura de sagaz, frugal e fugaz. Talvez até mais eu.

Porque quero saber. Ter controle.
Estar bem informada sobre o que me acontece.
Como se pudesse engarrafar este líquido que me escorre entre os dedos, para conseguir contê-lo.
Mas sei que esta condição não se impõe para mim senão com o peso de uma escolha.
Se tento me equilibrar, digamos, sobre esta tábua de madeira em cima de uma bola, é como se a certeza de que vou pender para um lado ou para o outro qualquer hora, em franco desequilíbrio, esmagasse a mim e ao outro ao mesmo tempo e rápido.
Como abandonar esta neurose dualista?
Esta espera eterna por cair.
Talvez para isso precise fugir um pouco de mim.

De passagem de ida quase comprada para o próximo desatino
Aérea
Como a minha cabeça
Eu me convenço de que só assim saberei desobrigá-lo de ser completo
Só assim posso aprender a deixá-lo ir, quando for a hora:
Se antes houver aprendido a ir e a voltar
Por conta própria.