segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Tacógrafo

Tenho consciência de tudo que vi naqueles que passaram pela minha vida. Suas virtudes e falhas... Sei o que me encantou e o que me repeliu. Essa consciência é fruto de um olhar apurado, de um olhar tacógrafo, que foi sendo marcado por muitos altos e muitos baixos. O gráfico ziguezagueia para frente com muita intensidade e sua marca é incorruptível. Sua marca me denuncia. Nada o engana. Nenhum reflexo tangenciado o trai.
É esse olhar que identifica a inconsistência de erros infantis, é esse olhar que seleciona o alvo e descarta repetições. Treinado, como em uma produção em série. Astuto, como em uma lapidação de diamantes. Um olhar de pássaro que conhece precipícios e o céu, que aprendeu a ser fênix quando descobriu que a morte é inevitável. É necessário voltar sempre inteira da queda, as asas abertas aproveitando o vento, o azul. Aproveitando ao máximo o cúmulo das liberdades: O voo em ascensão, a nuvem.
Esse olhar é um pretenso raio-x, modesto em sua complexidade, que só tem poder porque pressente a necessidade de determinadas presas. Porque há presas que anseiam, que precisam ser engolidas já pelo olhar de pássaro. Um conforto quase maternal, mas modesto, porque o olhar de pássaro não teria sentido sem o objeto de sua mirada. É uma correlação harmoniosa, não há colidência entre o olhar e o que se olha, apenas o choque invisível das disparidades e o abraço uníssono entre as semelhanças.
É um olhar de ressaca. Sim, de ressaca. Mas muito mais tangível que o de Capitu, muito menos requintado que o de Machado. Como um olhar de maquiagem borrada na manhã que sucede a festa, a ressaca desse olhar é a de ter experimentado sensações que deixaram ébria, tonta, alucinada e o que rima com alucinada. Apaixonada, desesperada, mimada, entediada. Sensações que estão sempre passando, em um processo que aos poucos se completa e se renova. É esse olhar de ondas salgadas que estão sempre na iminência de quebrar nas bordas do mar e de ondas de água doce que se recolhem para hidratar minhas expectativas, fazendo os instrumentos desse mesmo olhar brilharem outra vez.
Esse olhar que é ressaca, pássaro, tacógrafo e consciência é um pouco de tudo que já vi, do que não quero mais, e muito daquilo que espero anti-intuitivamente que ainda me façam enxergar.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Pra não dizer que não falei dessa metamorfose ambulante

Não matarás. A menos que encontres um estuprador em conjunção carnal com tua filha. A menos que alguém te aponte um revólver numa briga. A menos que também se considere a morte que é não se deixar salvar pela mudança de opinião. Honrarás pai e mãe. A menos que sejam contra teu casamento. A menos que não te reconheçam como filho. A menos que tenhas doze anos e te cortem a mesada. Santificarás o sábado ou o domingo. A menos que a grana esteja curta. A menos que no sábado recebas convites irrecusavelmente profanos. A menos que domingo seja dia de futebol com os amigos. Amarás a Deus sobre todas as coisas, não dirás o nome dele em vão, e não terás outros deuses além dele. A menos que tua fé seja outra. A menos que o nome do teu deus seja Buda, Jeová, o Sol ou o Maradona. A menos que teu ceticismo tenha te feito ateu. Não cobiçarás as coisas alheias. A menos que isso te motive a ser melhor e adquirir as tuas. A menos que o vizinho tenha usado o mesmo adubo que tu e as plantas dele tenham crescido mais. Não terás ídolos. A menos que se depare com alguém muito digno de tua admiração e a gratidão se converta em idolatria. A menos que alguém tenha te criado com esmero e a duras penas. A menos que Paul McCartney faça turnê no Brasil. Não prestarás falso testemunho contra o teu próximo. A menos que esse próximo seja acusador do teu pai, teu irmão, teu filho. A menos que te deem recompensa. A menos que o testemunho não te pareça falso. A menos que tua falsidade seja patológica. Não furtarás. A menos que tua barriga doa de fome. A menos que apostes com os amigos. A menos que fiques com uma caneta no meio de tuas coisas sem querer. Não cobiçarás a mulher do próximo. A menos que a cobiça seja recíproca. A menos que alguém te ensine que a fidelidade nem sempre comporta todos os sentidos. A menos que sejam todos poligâmicos. A menos que aos poucos a mulher do próximo pareça absurdamente mais próxima de ti do que dele.
Toda máxima é demasiado perigosa. Qual o liame que ao mesmo tempo distancia o errado do que nos parece certo em cada ocasião? Em termos práticos, o que legitima nossas defesas? De que substância é feita a legalidade das normas morais que te impões todos os dias? Até onde vai a cogência do que te ensinaram que era certo? O mandamento faz lei ou mera punição? Por qual motivo eu acreditaria em uma lei que só faz me punir, se tenho escolha?
O homicida não precisa ignorar a norma, ela nasceu nula para ele até ser compelido às consequências. O homicida, em geral, não desconhece a norma, mas sua motivação lhe parece maior que ela. O homicida do estuprador da filha não precisa conhecer os mandamentos, o código penal ou os direitos humanos para se julgar legitimado. E ninguém nunca saberá de antemão a medida dos extremos aos quais será submetido. Ninguém sabe precisar unanimemente o que é "extremo". Quantos bilhões de juízos variáveis devem ser considerados para ponderar a moral média sobre todas as coisas?
Compreendo que de olho por olho o mundo acabaria cego, compreendo o exercício pacifista - necessário! - que devemos todos praticar, mas hoje acordei estranhamente casuísta e combativa. Achando o livre arbítrio uma estampa xadrez em que as regras morais gerais, paralelas, colidem com as situações específicas. Acordei admirando a coragem da antítese. O quanto é radical o poder avaliador, quase educativo, que exercemos sobre nós mesmos. Somos nossos próprios juízes. Ou melhor, nossos árbitros. É nossa vontade que nos confere a possibilidade de mediar e avaliar o que é melhor para nós.
Ninguém sabe ao certo a distância que o árbitro de si mesmo precisa conservar para que não seja parcial, para que não seja corrompido em seu julgamento. Eu posso até ser pecadora, mas acordei sem tolerar a forma pronta. Moralmente, não me cabe a ditadura do senso comum. Ao me investigar, fazer digladiar minhas próprias opiniões controversas, refletir o que é posto como norma e o que é sinônimo de justiça, ao ser tribunal exclusivo ao julgar os reflexos dos mandamentos, que às vezes flexiono, eu me torno purgada das penas que cominam para mim. Ao não solidificar minha jurisprudência em tantos aspectos e não sumulá-la nunca, eu me permito novas sínteses. 
Estou em constante processo de beatificação e sou advogada do diabo de minha própria santidade.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Cobra de laboratório

Isso não é um jogo. Mas se for eu vou perder porque queimei a largada. Antecedo o fluxo nesse desequilíbrio bambo sobre a corda. Ninguém escapa ao peso de viver assim. Trapezista sem impulso, sou de cabeça para baixo, imito o ébrio que alterna os pés no chão, sempre um pouco cambaleante, e também as mãos errantes, tateando o momento de amortecer a queda. 
De repente meu corpo é uma ponte, embaixo dela vive um mendigo. Escondido. Que não exerce seu ofício. Que não pede menos que as esmolas que lhe dão. Meu coração é cobra de laboratório: ou está sendo testado ou (reaça!) muito bem conservado. Alimenta-se e é ungido pelo veneno que serve para produzir o antídoto. É perito em tentar ser uróboro. É possível que intua que nunca chegará a lugar nenhum, mas insiste em rastejar, a boca semiaberta. O silêncio ofídico de sua saliva corrompe meu juízo e minha razão. O sangue que bombeia das e para as veias me sobe à cabeça. Meu corpo é o punhado de membros toscamente instrumentalizado para botar meu coração para correr.
Hoje usei salto alto. Nem se percebe que o que eu quero é olhar por cima do muro sem esforço, o queixo erguido, espreitando a grama do vizinho, e guardar o pé em meia ponta para atravessar portais cósmicos invocados pelo atrito. Eu nunca soube caber em minha pequeneza, embora goste tanto dela. Meus olhos brilham no escuro imaginando a saída desse labirinto de altas paredes. Muitas de mim seriam necessárias para dissipar a urgência que eu sinto, muitos novos ares seriam necessários para me renovar enquanto suspiro misturando o tédio com as possibilidades que invento. Lembrar dos meus sapatos de salto me faz lembrar, também, que outro dia quis tatuar uma âncora ao lado do calcanhar de Aquiles. Para pesar sob o chão, prender-me ao solo. Logo eu, que só pensava em tatuar as costelas, na altura do peito. 
Para a dona de um coração cobra de laboratório, que espera sempre o próximo teste, calcanhar de Aquiles, que espera sempre a próxima lança, é inconcebível que o corpo ancore, a menos que seja em alto mar. Sendo. Mas eu ainda sei recolher os dados depois da sorte já lançada de Caio Fernando: Não sei, deixo rolar. Vou olhar os caminhos, o que tiver mais coração, eu sigo. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Arteira

Arte. O que eu queria fazer se ninguém pudesse me ver é arte, está respondida ousadamente a questão. Arte, porque dirigir em alta velocidade, movimentar circularmente os quadris e cozinhar algo muito gostoso é arte, porque tudo que eu gosto é ilegal, é imoral e engorda e/ou é arte.
Beber uma taça de vinho é arte, beber uma taça de vinho certo tempo depois de um porre de vinho e ainda ficar com os vincos da boca seca tintamente manchados é arte. A arte é assim, pode ser inaugural, por excelência, ou pode deixar marcas sólidas que lembrem pela cor, a textura, a sensação, o cheiro. É o que vai se reinaugurando de diferentes formas a partir da primeira experiência sem jamais se repetir. A arte é a musa arteira, sedutora e incomparável do artista. A arte não aceita ser rasa ou superficial. 
É uma puta hipocrisia dizer, por exemplo, que a arte imita a vida ou vice-versa. As duas não pretendem se confundir. Misturá-las não combina, misturá-las dá ressaca. A arte é produzida para o idealismo, para ser melhor, mais visceral, mais lírica, menos inesperada que a vida. A arte não se permite ter reflexos espelhados, a menos que eles não lhe sejam fiéis e sim um pouco distorcidos. Jamais iguais. 
Monalisa é arte. Vênus de Milo é arte. 14-Bis é arte. Tanta coisa é carregada pelo estigma. É mais acertado e anti-intuitivo estampar aqui o que não é arte. Eu tenho, por exemplo, um pelo encravado embaixo do braço esquerdo nesse exato momento, e não ouso pensar que ele seja arte. Por que falar em pelo encravado no meio de um texto sobre arte choca tanto o leitor? Porque a realidade absoluta desse pelo jamais seria traduzida em uma música, uma pintura, uma escultura ou um texto (a menos que ele fosse tão ruim e despretensioso quanto este). Mas este texto, sim, por mais fraco que seja, por menor a argúcia que contenha, é arte a partir do momento em que alguém assim o considerar.
A arte não nasce pronta, é preciso que alguém a assimile e a considere. Mas depois disso ela não anseia mais por ouvintes. Não demanda espectadores, apenas eterniza-se. A arte não é um pelo encravado que, mais tardar daqui a dois dias, depois de alguns problemas ou impasses, estará curado. A arte sugere o punho na porta, igualzinho a vida, e depois se reinventa, exigente, e passa ela mesma a exigir a visita. A arte não se presta a combater a beligerância da vida porque compreende que isso é perda de tempo. A arte só tumultua os sentidos e depois assina esse rascunho.
Ninguém assume a autoria de um pelo encravado, nem mesmo o produz ou o pendura na sala de estar, ninguém se vangloria dele ou se emociona com ele, isso é a vida. Valorizar a vida real em detrimento da irreverência da arte é uma inversão de valores. A vida é uma ferroada enquanto a picada do inseto arte não dói. Suave, mesmo letal e arrebatadora. O veneno da arte se mistura a absolutamente todos os fluidos do corpo e não se dissipa por inteiro nem com soro fisiológico em abundância. Só a arte fica, só a arte merece ser crônica. A mordida do bicho arte arrepia a nuca e não deixa hematoma. A arte é tão sutilmente marcante que não precisa que a vida lhe flagre.
Os amantes se vão e a arte fica no que foi ilegal, imoral ou engordou. No tanque vazio do veículo com o motor recém brecado depois da viagem a duzentos por hora, nos lençóis amassados, na cozinha bagunçada. Arte é descobrir a hepatite e se enxergar cada vez mais verde. A arte é o que não se deixa de lado a partir do momento em que a conhecemos, a arte nos torna iniciados nela, pretende tornar-nos incapazes de ignorá-la, substituí-la, menosprezá-la. Eu vou responder de uma vez por todas, sem tom de segredo. Se ninguém pudesse me ver eu queria fazer arte. Ou talvez só sê-la.

domingo, 20 de outubro de 2013

Que me faz sereia


É praticamente inacreditável que você me habite e que se manifeste mesmo quando tudo está na mais perfeita harmonia. Quando acabo de me satisfazer com algo. Quando, bendita, eu estava prestes a conseguir me deixar em paz. Querido, é inverossímil que você more aqui, nesse corpo franzino com algumas estrias nas coxas, manchado de patologias da derme, nesse templo secreto que eu uso como instrumento para falhar em tantos setores.
É isso mesmo, benzinho, chego a duvidar que te mereça, imagine o tamanho da contradição. Nem sei se consigo falar sobre você assim, fantasiando o quanto todo mundo pode apontar o dedo e dizer que não sou digna da segunda parte de você. Invento um lance qualquer com aquele seu irmão para me distrair, esperando que ele seja imortal, chama, infinito enquanto dure e todas as outras pieguices dos poetas, mas no fim só você persiste. Você é mesmo o único que eu sei de cor. O único que não me abandona. O único que, tenho certeza, volta aos meus braços no fim da noite, no meio da tarde, no começo do dia. O único.
É por isso que te venero. Afinal, não tenho escolha se você sempre submerge nos mares mais calmos e até nos mais revoltos, e me arrasta contigo para a água, nadando sempre, muito, perdendo o fôlego de tanto procurar tesouros perdidos no fundo do oceano. Se eu sou uma mulher quase inteira, você é a cauda de peixe e o timbre de voz que me fazem sereia. Ignorar você seria estabilizar, talvez até cultivar uma sensação honesta de satisfação, mas a gente sabe que isso não é para mim. Não fui projetada para o conformismo e a culpa é toda sua, que vive me sugerindo a chance de encontrar algo melhor na próxima esquina, se não parar de tentar, de nadar, de nadar, de nadar...
Você só é. Está sempre sendo nesse ritmo que me complica. O eco dos meus quereres.

Essa podia ser uma carta para alguém, de amor, para o amor, sobre o amor (aquele irmão que me distrai). Acho que essa é mesmo uma carta de amor. Mas no envelope, campo do destinatário, logo abaixo do "PARA", escrevi: Esse desejo por mais, mais, mais, mais (...)

sábado, 19 de outubro de 2013

Só à vista

À primeira vista era um cartão de banco azul, simples, acho que as cores faziam degradê. Não sei se era crédito ou débito, nunca precisei ouvir a pergunta. E ele quebrava o cartão o mais simetricamente possível, pra destruir as chances com certa ordem, enquanto o tempo passava. É, era um cara quebrando um cartão de banco azul enquanto eu assistia com o canto do olho. Enquanto eu era a destinatária indireta do gesto. Ou melhor, eu era o próprio cartão. Cheia de tons de azul, dígitos funcionais, um chip dourado que me tornava útil, beijos com nomes escritos em alto relevo, tão útil em tantas ocasiões, e agora estava sendo quebrada. 
À segunda vista, ele brincava de quebra-cabeça com os pedaços produzidos. Não é estranho? Ele ajeitava todos os pedaços que não pretendeu tornar disformes (mas tornou mesmo assim, no momento da ruptura) e formava a representação de um cartão completo em cima da mesinha de cor clara. Aquilo era inócuo porque aquele cartão quebrado jamais tornaria a retribuir em igualdade de condições a expectativa futura daquele homem. Porque aquele cartão, por menos rancoroso que fosse, por (morta) natureza, não guardava mais a fortuna ou a miséria de quem só fazia lhe quebrar.
À terceira, só à vista. Nem crédito, porque minha confiança na bandeira e nas reservas já se esvaía, nem débito, porque eu jamais o obrigaria a uma quitação póstuma de nossas contas recíprocas, dívidas contraídas de boa vontade. Não importava que ele guardasse os pedacinhos, emoldurasse, usasse superbonder ou durex. A lição já era mais minha do que nunca, depois de quebrar, mesmo que a fatura chegasse dias depois.
A quarta à vista, mas só na madrugada da sexta-feira eu consegui processar a operação: As chances de um relacionamento não acabam na quebra, acabam quando você não se enxerga mais no cartão quebrado. Quando você passa a desejar assinar-se desautorizadamente, sem tarjas de segurança. Porque liberdade (e, por consequência, felicidade) é não caber em um tamanho padronizado retangular azul degradê. É ser ampla demais pro formato compacto de um cartão. Quem dirá pros fragmentos desconexos de um cartão de banco azul e simples. Desapego é quando você não aceita ser, por si e pra ninguém, menos que um inteiro.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Dalila de mim

Uma atitude significativa: Um lampejo de memória que não me trai mais porque me descompromisso dele. A memória deve ser dedicada às coisas certas, já que não há traição possível quando não se espera fidelidade. A memória só trai quem se permite rememorar, quem se compromete a reprisar um filme ruim no final do domingo. Então eu me descompromisso de alma e coração. Aos muitos o corpo, mapa explícito de hábitos repetidos, também desacostumará.
As marcas dos outros, a vida e a inspiração que me pediram emprestado e não me devolveram. O tempo dedicado. Qualquer esforço vão. A música que, preciso compreender, não é nossa, mas minha, e pode significar coisas novas. A sensação de ter, ganhar, perder, estar, qualquer que seja, é una, é ímpar. A solidão ensina que só se é a dois sendo um de cada vez. É minha, só minha, incompartilhavelmente minha a capacidade de comoção, paz, euforia, satisfação. Portanto permanece aqui.
Corto os cabelos, um palmo e meio, e agora sou Dalila de mim mesma - roubo minhas próprias forças e me beneficio delas. Cada mecha que não perdi por conta própria até aqui deve servir de alerta para que eu permita o crescimento alheio. Cada cicatriz que facas estrangeiras me fizeram serve para que eu desafie e desaponte meus gumes. Para que não firam o outro, para que eu (só) corte de mim as minhas dores e fraquezas. Para que eu tenha tempo de reconstruir meus fragmentos.
Que os cortes que deixei por aí doam gradativamente menos, muito menos do que os que me deixaram, e que eu seja esquecida com a agilidade de quem muito quer e tudo tem. Não quero jamais ser atendida nos desejos que fabrico dolorida da perda, colorida de cinza. Eu quero acreditar num carma operante, que identifique e reconheça que o que vale é a minha intenção em dias como hoje, quando só o que faço é querer para mim e para os outros uma reconstrução superlativa das próprias forças, das pontas duplas e de fé em si mesmo.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Poderosamente: A força que o discurso tem

Eu devia ter cabalísticos sete anos quando olhei pro céu e imaginei que o movimento das nuvens demonstrasse, na verdade, não uma corrente de vento ou qualquer coisa que o valha, mas a rotação da Terra. Naquele momento aquela me parecia uma ideia iluminada e que me elevaria ao patamar de Newton, Darwin e o povo todo das ciências naturais, grande parte que eu ainda nem conhecia. Não era verdade, talvez vocês já saibam, mas o poder que aquele discurso recém-criado exercia em mim surpreendia. Os discursos tem sempre esse poder.
Não  lembro, por exemplo, de quem me ensinou a dançar em par, mas em todas as danças em par da minha vida aquela mesma voz indecifrada ecoará dizendo dois pra lá e dois pra cá com uma força que desconheço de onde vem. Porque o discurso sempre tem poder exatamente como acreditamos nele, e acreditei peremptoriamente que aquele era o melhor jeito do mundo de dançar quando o aprendi, talvez por isso ainda não tenha aprendido jeito que me pareça mais apropriado, motivo pelo qual ele continua valendo.
Eu devia ter uns decisivos vinte anos quando um cara me disse que podia curar a própria carência com qualquer garota e aquilo não me parecia muito verdadeiro, aplicado às regras da minha vida, mas talvez porque ele acreditasse naquele discurso o próprio discurso operasse milagres e desastres na vida dele. E nos distanciasse. Os discursos têm também essas variações de poder: Eles podem tanto que aproximam ou distanciam pessoas.
Há aqueles que criamos em imaginados momentos de inspiração, como minha teoria infantil sobre as nuvens, e aqueles que são repetidos por séculos na tradição, como dançar dois em dois, ou no livros - que, aliás, também são discursos. Não importa que os discursos que formulamos sejam mais frágeis, mais cheios de arestas e possivelmente valham menos do que aqueles que já foram confirmados e abaulados por todo empirismo ou toda ciência. O que se mantém incólume é a força que operam independentemente dessa classificação. 
Não importa se somos os chatos que repetem os discursos inventados para arrebanhar interlocutores para o nosso lado da mesa ou se permanecemos na quietude de quem acredita desacreditando, mas segue firme os próprios ditames. Funciona para a política, para teorizar sobre o amor, para distanciar e unir pessoas, para tudo. O discurso pode, inclusive, mudar e se contrapor com o passar dos anos, mas a força que operou enquanto vigente não pode ser combatida.
O discurso versará sobre economia mundial, sustentabilidade, axiologia das normas, coisas bobas como nuvens, danças ou carências, porque não é a matéria que move as ideias, mas o modo como moldamos essa matéria em algum ponto do corpo que é responsável por armazenar o molde na forma de um discurso em que acreditamos. Se Kafka tinha mesmo razão quando disse que de certo ponto em diante não há retorno possível e a esse ponto é que é urgente chegar, arrisco que a premência do ponto referido se consubstancia no instante da escolha dos discursos que, eleitos, passam a guiar nossas vidas poderosamente através das convicções.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Tatuagem

A mulher assinava a folha de papel com a mão esquerda, descuidada. Nenhuma aliança, apenas um nome indigesto com caligrafia grosseira. Um nome sobre a mão, tatuagem difícil de disfarçar e de se desfazer. Incrédula, eu me perguntava quantas coisas Mayckon já havia ajudado e impedido aquela mulher de executar.
Quanta assinatura, comida, peça costurada, quanta cama desarrumada, portas fechadas com violência, cigarros fumados, escovações de dentes e cabelos Mayckon presenciou mesmo que sua figura não estivesse materializada ao lado daquela mulher, inibindo-a ou concedendo-lhe força preênsil. Não estando ao lado dela, ele ainda assim, imagino, conduzia-a pela mão.
O que leva alguém a tatuar um nome, se é que aquele era o nome de um amante? Que traço da personalidade dele o eternizou naquela mulher? Não imagino um Mayckon fino no trato, não imagino um Mayckon parecido com ela. Invento um Mayckon exigente. Eu o traduzo pelas poucas letras grafadas com desleixo, naquela tatuagem mal feita mas indiscutivelmente feita. Mayckon passou a representar, na minha nada generosa representação, o estigma do amor bandido, dificultoso, guiado pela aproximação carnal e uma subordinação(?) tão silenciosa que se converte em agradavelmente silenciosa, apesar de gritante.
Sei disso tudo só de olhar aquela mulher assinar o próprio nome. Ali, sem aliança, sem o sobrenome dele, parecendo tão independente. Sei disso por todos os meus próprios conceitos antecipados. Sei disso porque sei que depois de um pecado original que fica, todos os outros parecerão um tanto falsificados, derivados, sem autenticidade, fáceis de se desfazer. 
Depois de um tempo, acredito, deixou de ser uma questão de destatuar Mayckon. Suas marcas eram indeléveis. Sei disso porque já tatuei em mim alguém, mesmo sem tinta, porque já identifiquei um mestre hors concours dos meus desejos, diante do qual todas as comparações são desnecessárias, quase obsoletas. Não porque o Mayckon da minha vida fosse o melhor homem do mundo, mas porque me tatuei de motivos para dizer sim a ele.
Aquela tatuagem demonstrava o desprendimento que seria necessário a todos os homens que pretendessem amar aquela mulher depois de Mayckon, depois de uma ruptura, depois de todas as marcas que ele deixou nas mãos, nos padrões, na bagagem emocional e intensa daquela mulher. Por tudo em que Mayckon foi impecável e por tudo em que deixou a desejar... Seria necessário a outro homem muito discernimento, segurança, muitas virtudes e consciência da capacidade de superá-lo.
Uma mulher que já foi muito amada, ou já amou muito, como aquela, não se contenta com marcas menores ou mais fracas do que a que Mayckon deixou, para o bem ou para o mal. Sei disso quando sinto a mão teleguiada para falar de amor e pensar em prazer. Sei disso porque depois de experimentar um pecado capital muitos outros se tornaram para mim interioranos, distritais, suburbanos. Muito mais do que uma tatuagem na mão possa parecer.

domingo, 6 de outubro de 2013

Charme desbotado

"Dudaaaaaaa! Ô Duda, vem cá brincar, vai ser legal, a gente vai brincar de esconde-esconde!" Uma voz pueril e insistente me desperta de um sono túrbido, bradando alto da altura do térreo. Imagino que fosse um pequeno convidando uma pequena, ambos meus vizinhos, pra uma animada manhã de domingo daquelas em que só as crianças e os beatos em potencial conservam disposição.
Levantei o corpo como se ele tivesse o triplo do peso e me equilibrei sonolenta sobre as pernas. Rompi as fitinhas do braço esquerdo com a tesoura, tendo em conta que não precisava de passaporte especial pra avançar pela cozinha. Sozinha em casa, a primeira das paredes me dá bom dia e me brinda com o espelho considerável que me mostra uma boca ainda vermelha. Não a boca vermelha que escreve marcas no pescoço sem, contudo, emprestar a saliva, mas uma boca vermelha indefesa e inofensiva.
Parece-me que a boca escarlate não foi projetada para as atividades domésticas, porque não se adapta bem à xícara de café recém saída do microondas e não condiz com o estado de espírito matinal (embora embranqueça os dentes). Pela manhã a boca vermelha de sobras de batom não é sinal de perigo e nem de defesa, não impede nada e não se confunde com o gosto de vodka. Pela manhã, não sou eu que a escolho, mas ela que escolhe permanecer. Já não encanta mais, converte-se em um traço tímido de manifesta resistência ao abandono.
Duda, querida, é cedo ainda pra te explicar essas coisas, mas às vezes o charme da gente desbota. Às vezes nossos encantos perdem a razão de ser. Não sei por que aquele pequeno desejava tanto a sua companhia e não sei as razões da sua negativa, do seu brincar de esconder tão antecipado. Eu nem sei se seria mesmo legal brincar com ele, como ele dizia. Talvez você já tenha brincado outras vezes e ele tenha te encontrado cedo demais, antes de contar até dez, antevendo teus segredos, talvez tenha te ferido sem querer. E nisso nós somos tão parecidas, Duda! Os convites são sempre os mesmos, só os verbos é que mudam.
Torço por ti com a minha boca vermelha desbotada enquanto volto pra cama. Pra que valha a pena algum dos convites que você receber pra brincar ao longo dessa vida... Valha tão, tão, tão a pena que você não tenha medo, resistências, nem motivos íntimos pra não aceitar os próximos. Que você não perca cedo demais a ingenuidade de acreditar nos teus pequenos e saiba a medida exata entre esconder-se e rubro-revelar-se.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Riminha à toa

Tropeço sempre no mesmo degrau. Como quem repete as roupas a partir da terceira semana da estação. Há um tempo de abstinência em que cometo novos deslizes. Mas logo depois, tropeço sempre, voltando às minhas raízes. Claudicante, não nego a rima, não é à toa. Eu me repito por mais que doa. Volto à velha sensação de perna manca. Mais dois centímetros, um tanto de discernimento... Mas logo a vida me atravanca. Fosse um pouco mais de espera e elucidação, um pouco menos de esmero e abrir porta de geladeira... O mundo não me seria nem bom nem mau. Se eu fosse um pouco mais genial. Mas não, avanço matreira. Vem-me essa sequência de disritmia... E aí, adivinha? Melancolia, dor de viver, perturbação e calmaria. Isso tudo até podia virar poesia. Não dou a prosa a torcer. Teimosa, não quebro a linha. Veja só, são tantas vezes que nem meço, só tropeço de novo. Não é lá muito legal. É constatação tola e eu, sempre inovadora, não deixo a mim de ser brutal. Riso sem graça, aceno contido, a esperança é reaça: Não me liberta. Mas também não me provoca. E me conserva sempre o não todo dito. A negativa é velada, o fim calada é o que peço. O recomeço, um retrocesso. Outra escada. Mas sempre o mesmo degrau.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Matéria infinda

Saio quase sem tempo e entro apressada. Olho pros lados um pouco distraída e um pouco temerária como de costume e vou sentando, bem à frente, à direita, pois não há centros sentáveis por ali. No fim das contas, é o lado menos ensolarado e isso é ótimo, porque saí só com meus óculos de grau dessa vez. Acomodo a bolsa que é pequena demais no colo furtivamente, e desejo que o dia saiba ser porque é dele que espero algo. Não do novo mês, aparentemente tão desejado por tanta gente (quem dera nos reinventássemos, na prática, uma vez por ano, como pensamos nos reinventar no início de cada mês!), nem dessa semana que mal começou. Eu quero um dia bom, todo meu, eu-me-amo-não-posso-mais-viver-sem-mim como na música do Ultraje. 
E pra facilitar as coisas pro destino, sento perto da janela, com os cabelos ainda molhados, o rosto se recuperando dos traumas da última semana, a pele amarelada de uma hepatite recém descoberta e não encoberta por maquiagem, o perfume que é quase uma estreia e transita entre frutas doces e incenso, percebo agora. Mais dois anéis, um em cada mão, e um sapato de salto que faz um pouco de barulho. Não é um dia bom pra impressionar pessoas, mas não tarda pra que eu tenha companhia. 
Sessenta e seis anos bem vívidos na raiz dos cabelos, em olhos fundos, em manchas nas mãos e vincos ao redor dos olhos. Se foram bem vividos, não posso dizer, apesar de que me faz bem delirar imaginando. Em uma viagem relativamente curta a senhora me conta sobre os filhos - que não teve -, sobre a religião - que eu não pratico -, sobre as notícias sensacionalistas da tv pela manhã - que não acompanhei -, sobre sua aversão à ideia de adotar crianças - que não compartilho -, sobre seu preconceito com "homemsexuais" - que, mais do que não compartilhar, gargalho só de lembrar -, e sobre mais uma porção de "atribulações" sui generis facilmente classificáveis pelo Ministério da Saúde na ala das patologias comportamentais sérias, comuns e incuráveis. 
É de ficar boquiaberto do quanto a sinceridade daquela mulher me comoveu. Eu poderia rechaçar seus dogmas, desacreditar dos milagres que não vivenciei, denunciá-la aos patrulheiros dos direitos humanos, zombar de sua anacrônica vida à moda antiga. Entretanto, não ali. É que eu não tinha armas contra sua franqueza. Não naquela oportunidade tão específica e assustadora de ouvir aquela mulher com o interesse que não me dedicaram muitas das pessoas que eu já classifiquei como parecidas e interessantes. No fim, talvez eu pudesse emprestar a ela as condições pro dia feliz em que a moça do banco ao lado era simpática e só fazia assentir. Às vezes tudo que a gente faz é menosprezar as oportunidades. 
É óbvio que o mundo não gira por causa de mulheres como eu, que ignoram algumas convicções pra não brigar com idosas de ideias que cheiram naftalina. Mas pode ser que o mundo gire por pessoas como ela, que não se importam se agradam ou não e, mesmo sabidamente imperfeitas, transparecem com seus vincos, seus óculos antigos, suas manias e mazelas insolúveis, suas saionas comportadas (ou acima do meio das coxas?) e suas opiniões... Livres, ainda que de dentro de suas próprias grades. Por aí, vagando até acertar a companhia. 
Guardei aquela pessoa na memória pra muito além de um texto no final do dia. Com o passar das horas, tornei cada vez mais preservada nossa irremediável afinidade, como faço com todas as pessoas a quem quero muito bem. 
Andar de ônibus é matéria infinda do que escrever. Viver também.