segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Notícia boa

Hoje, por mil razões, lembrei do dia em que fui perguntar do gás e a síndica aproveitou para me dizer que eu devia evitar andar de salto alto ao chegar e antes de sair de casa. Pensei na hora: que raio, eu moro no primeiro andar! Mas devo ter feito cara de paisagem muito bem (logo eu, que sou a pessoa que pior faz cara de paisagem que eu conheço) porque ela emendou um papo sobre deixar um chinelinho na porta. Um. Chinelinho. Na. Minha. Porta. Deu o conselho com um tom amistoso, bacaninha, cuca-fresca, mas obviamente entre o professoral e uma ordem.
Eu quis muito dizer: olha, minha senhora, se a reclamação fosse de um vizinho atormentado que deu pra dormir toda noite no hall ou na garagem, bem debaixo do meu apartamento, vá lá, aí é mesmo do caso de ser vergonhoso pra mim. De toda sorte, era provável que não fosse. Por isso e para não precisar ir ao extremo do deboche, fiquei quieta. Eu não me meto em confusões dessa ordem, exceto quando me meto. Trato muito bem os meus vizinhos. Diria: como gosto de ser tratada. Menos quando capoto vendo live do Bruno&Marrone no talo, mas isso é outra história. O negócio é que eu sempre me surpreendo com circunstâncias assim. Sempre me pegam desprevenida essas críticas bobas, veladas. E, se o ego me permitir ser franca, também as críticas escancaradas.
Naquele dia, durante o banho, como hoje eu dei mil respostas ferinas ao chuveiro para deixar as coisas às claras sem apelar para a falta de bom senso. Para clarear a minha própria cabeça sem me indispor com ninguém. Para me por no lugar dela sem precisar tocar sua campainha e dizer umas boas. É preciso ter muito autocontrole até conseguir parar e pensar num episódio desse concluindo que é de uma tristeza rançosa ter que ser a porta-voz desses avisos ingratos. Tem o peso de um julgamento. De uma descoincidência. E, ademais disso, na vida eu sei que já fui a síndica.
Hoje em dia o que eu menos suporto é me sentir inconveniente. O que não significa, é claro, que eu não me sinta assim muitas vezes. Consegue ser um pouco pior quando eu me dedico muito para não errar. E quando eu definitivamente não erro, mas o outro pensa que sim. Quando entrego o que julgo ter de melhor para ser algo como, sei lá, a vizinha do mês. E depois tomo uma dessa, totalmente gratuita, na cabeça.
A coitada da síndica que me perdoe, mas de minha parte, eu quero é dar notícia boa. Quero correr de salto alto onde quiser correr, pelo apartamento afora, se convir. Depois desfilar pelos corredores. Eu quero andar na ponta do pé também, é claro, pra ela nunca mais ter razão. Mas o chinelinho na porta eu não deixo. Da cabeça ao pé, por mais medo que eu tenha de ser indigesta, acabo nunca admitindo o desaforo de tomar por hábito minguar por ninharia.

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