quinta-feira, 29 de julho de 2010

A verdade é absurda no plural

O descompromisso de só assinar um livro rindo com cara de besta, só ver alguém na escada completamente por acaso, só responder um número x de mensagens e ignorar a última porque mensagens são um desatino, só se sentir meio bonita, meio inteligente, meio intrigante e só sair andando com um casaco quatro números maior porque está meio convencida de que é assim que tem que ser. E... E só. Eu não vou mais reclamar, mas não nasci pra ser tão desapegada. Tão explícita. Podia dizer que lhes tenho nas mãos, porque verdadeiramente tenho, mas vou me privar desse desagrado. Mais por mim, que me sinto estranha ao reconhecê-lo. E nem mesmo usarei por moeda de troca para receber o bom senso de quem quer que seja em não me constranger. Tolha, pois, minha liberdade de desprezar com essa verdade que arde, porque isso é algo que eu mereço. Eu sei mentir, me orgulho disso. Eis o meu merecimento.
Eu já nem sei agora se você é digno de que eu me lembre de você com essa simpatia inventada e que, muito a contragosto, agora caminha do meu lado, mas ainda assim eu lembro... Ternamente, romântica. Vou enrubescer ao menor sinal de que você tenha descoberto essa minha fraqueza de te querer por perto, mas nada além.
Me convenceram de que a grama do vizinho é sempre mais verde. Só esqueceram de avisar se, vez ou outra, eu poderia ser o vizinho. Que estranho papel. Você e eu, desconectados. A minha última esperança, olha que tolice... Ser o seu vizinho da grama mais verde de todas. Então eu seria um daqueles que precisa regar e aparar o tempo todo a última coisa que lhe sobrou. E que anda desejando, imenso, você por perto, admirando a minha grama. Ainda que eu tenha plena certeza de que só volta pra perto quem algum dia esteve perto, ligado, ou junto. Nunca você. Você, nunca.
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É verdade demais para compreensão de menos.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Por um segundo mais feliz

Acho mesmo que é constrangedor procurar uma minúcia subliminarmente exposta num mar de nitidez ferrada! Pior só o meu coração, não é? Que eu transformei num nó. Num nó que não ata mas não deixa desatar...


"O nosso amor não vai parar de rolar
De fugir e seguir como um rio...
Como uma pedra que divide um rio
Me diga coisas bonitas.
O nosso amor não vai olhar para trás...
Desencantar, nem ser tema de livro
A vida inteira eu quis um verso simples
Pra transformar o que eu digo
Rimas fáceis, calafrios...
Fure o dedo, faz um pacto comigo
Num segundo teu no meu
Por um segundo mais feliz..."
Adriana Calcanhotto

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A minha gratidão é uma pessoa

"É fácil culpar os outros,
mas a vida não precisa de juízes,
a questão é sermos razoáveis.
(...) Mas como começar de novo
se a ferida que sangrou
acostumou a me sentir prejudicado?
É só você lavar o rosto
e deixar que a água suja leve longe
do seu corpo o infeliz passado (...)"


Conheci gratidão em tempos difíceis e entendo que isso facilitou meu apego. Nos filmes, por exemplo, eu via espécies de gratidão disparando frases de efeito e achava algo tão distante que quase me doía. Portanto, ao conhecer gratidão de carne e osso, achei agradabilíssimo de tão real e lhe ofereci uma porção de hojes. Tinha manias estranhas, é verdade, mas gostava de minhas formas e de tudo que eu escrevia. Sentia-se incomodamente semelhante a mim. Gratidão era leve e sensível, tinha uma disposição sem fim para me ouvir e consolar, sorria muito, falava pouco e foi impossível não me afeiçoar àquele jeito sem medo de pronunciar “para sempre” em se tratando de nós. “Hoje é para sempre”, eu pensava, e acho até que cheguei a dizer. E verdadeiramente era. E fora este o nosso início desajeitado.
Não sei se posso dizer que gratidão chegou aos poucos, porque me é necessário considerar que foi num ímpeto que trouxe consigo uma porção de declarações de amor que guardava no bolso. Despejadas aos montes, em muitas parcelas, sem mais sem menos. Lembro-me do quanto sofria na época em que ninguém sabia a nosso respeito. Mesmo depois, poucos souberam de nossas verdadeiras dimensões e outros menos ainda do quanto era recíproco o que sentíamos. Por vezes, contudo, era um sofrimento divertido, já que as proibições nos faziam ferver de contentamento a cada encontro e, ao mesmo passo, de descontentamento a cada despedida. Era eu e gratidão, a sós, conhecendo a saudade, atributo do querer bem.
Gratidão tinha um abraço protetor e os beijos mais consonantes com os meus – coisa que, aliás, eu não precisava de muita experiência para supor. Gratidão compadecia de cada medo que eu tinha, agradavam-lhe os meus trajes, os meus ataques forjados de ciúme, os meus movimentos, as minhas piadas, a minha inocência e até a minha malícia. sei disso porque gratidão nunca soube dissimular muito bem. Em nossas conversas ria-se até a barriga doer, divertíamo-nos com os silêncios, as ironias e as coisas implícitas em geral. Nessas ocasiões, o sobrenome de nosso afeto era distração. E distração, por oportuno, servia de alento às lacunas que, se não me falha a memória, o nosso amor possuía.
Aos finalmentes me cansei do que outrora era ideal... Mas não me é consentido ou mesmo aceitável reduzir gratidão à monotonia da repetição. Gratidão não me enfadava. Assim, não por conta própria. Ao contrário... Sempre fora de uma criatividade insistente em sua maneira de conquista e a cada dia eu me sentia solidamente convencida de que gratidão era, ainda indubitavelmente, o melhor par romântico que eu jamais teria pensado deter. No entanto isso já não chegava, não era o bastante... Enquanto procuro um sinônimo à altura de “sufocar” preciso admitir que, vez ou outra, as coisas ideais não são o suficiente, principalmente para quem não se sente firme nos propósitos.
Passaria, agora, longas semanas, sufocada. Sem motivo, não quereria mais o gosto de gratidão em minha saliva. Nem da piedade. Nem de questionamentos. Seus tantos planos - os quais eu não realizara – tornaram-me um pouco grosseira ao admitir o pesar da frustração. Mas gratidão segue, a passos que eu nem sei se são lentos ou apressados demais. Segue igual, ou disforme. Ou de forma muito parecida com gratidão que eu conheci naqueles tempos difíceis e essa última hipótese quase me provoca uma sensação de alívio. Não tornei gratidão rude, ou mesmo não pus nenhuma parcela de meu amargo em gratidão, talvez mesmo isso seja tudo que eu esperaria não ter feito, almejando sua felicidade.
Jamais dei conta de explicar-lhe toda minha razão e não sei se realmente teria razões a serem explicadas. Ora! Os argumentos de gratidão são infalíveis e precisos, e mesmo quando zomba, gratidão tem um ar tão naturalmente indiferente nos últimos tempos que chega a me deixar estupefata. Nunca soubera ao certo porque me tornei, tão por vontade, uma persona non grata. Deve ter sido aquele sufoco do fim do mês, a angústia, o início da faculdade ou a véspera do feriado. Houve um tempo em que eu acreditei que gratidão jamais se cansaria da minha indecisão, dos meus desassossegos, das minhas confusões ou do pouco de mim dedicado - que ainda assim eu repartia, principalmente perto do fim. E é por isso que nunca pude garantir se merecemos de fato o fim que tivemos... Ou gratidão nunca me contestou depois da nossa despedida para que eu refletisse a esse respeito, ou foram tão poucas e sutis as vezes em que o fizera que tratei de não enternecer com aquilo.
Acho que amei gratidão de uma forma que não se repetirá outras vezes em outras oportunidades e creio ter sido singular o modo com o qual gratidão também me amou... Efêmero, gratuito, exacerbado. Fora de ordem. Justamente do jeito que se deve ser e doar-se o amor, ou como eu o imaginara depois de abandonar gratidão naquela rodoviária. E é pelo abandono que me sinto em dívida de explicações que eu mesma não possuo. Posterior ao nosso fim, hoje e “para sempre” eu desejo tudo aquilo que é lindo, fabuloso, espetacular e extraordinário para gratidão, porque gratidão me fez um bem sem tamanho e eu disse isso menos vezes do que deveria. Guardo gratidão “para sempre” comigo. Porque gratidão foi quem me ensinou o valor de para sempres.
E então desejo, altruísta, porções generosas de gratidão a quaisquer que sejam os alguéns com os quais vier a se envolver. Desejo, além disso e por último, que tais alguéns sejam capazes de ser gratos, em retribuição, como gratidão espera e - acima de tudo - merece. Exatamente da forma como não dei conta de ser naquelas semanas as quais me sufoquei, não por falta de ar, mas por excesso de confusão e de mim.
E dou adeus a gratidão, de uma vez. Nunca mais seremos os mesmos, porque o tempo passa e com o tempo, inevitavelmente e amiúde, mudaremos. Aí está a data de hoje, que não me deixa mentir... Feliz aniversário, gratidão. Amor, amigos, saúde, sorte, surpresas e todo o mais que de melhor possa haver. A minha gratidão é uma pessoa, e esse é pra você!


(...) "e viveram felizes...
para sempre,
e eles estavam livres
da perfeição
que só fazia estragos..."
Nando Reis

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Prometo refletir


Quando a gente tenta não pensar, e busca - com muita impaciência - que a confusão da gente não interfira na paz do outro, que os sonhos da gente sejam maiores do que as tentativas de abafá-los, que a racionalidade pese mais na disputa de primeiro lugar com tudo que é involuntário, eu custo a crer que isso não seja um sinal. A gente pode, sempre poderá, não saber o que quer e ter dúvidas, né?
Ou eu tô enlouquecendo?

Prometo refletir. Em silêncio.
Mas refletir, assim mesmo.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A voz da razão

[...] Entre eles há somente um que coincide com aquilo que minha fantasia representa. Neste momento, não posso amar um homem a quem não admiro. As feições ficam em segundo plano. Que estranho! Quando um rapaz gosta de uma moça, começa a batalhar pelo seu amor, e luta insistentemente [...]
Ele deve se achar a pessoa que eu menos gosto entre todas. Se eu caminho junto a Linde, afasto-me de propósito o mais possível; se as moças falam com ele, eu não me reúno a elas de jeito nenhum. Quero demonstrar a cada momento que antipatizo com ele, que não o amo [...]
Quando você gosta de alguém, então toda a vida se concentra nele: falar para que ele escute, agir de modo que ele perceba [...]
Porque eu vim a saber inoportunamente do enamoramento de Linde, então a consciência da minha impotência fica exasperada assim? Afinal, posso competir com O.? Com aquela moça requintada, que não só jamais dirá uma palavra indelicada, como nem sequer fará um gesto deselegante? Ao passo que eu...! Com voz selvagem, mando todos para o diabo e, encarniçadamente, saio no tapa com os rapazes que me importunam. Não seria o caso de desencadear uma transformação? A mudança só pode acontecer em nome de alguma coisa, mas o nome que me inspira eu devo esquecer. É fácil, porque é só um leve enamoramento e mais nada, mas minha cabeça boba pergunta: "Seria melhor travar uma batalha?". Mas onde existem dúvidas é difícil pensar no sucesso; aliás, essa é sempre a voz da razão.
Nina L., p. 363-364

terça-feira, 20 de julho de 2010

Porre

Tem também o tempo no qual o eu-lírico da gente resolve tomar um porre de outros eu-líricos para enxergar o quanto é pequeno, tosco e insensato. Eis Jaya Magalhães, me lembrando que eu já fui melhor.


É só, meretíssimo.

sábado, 17 de julho de 2010

Despedidas

Charles morreu, em um acidente. Tinha 20 e poucos anos, deixa mãe, irmã, uma namorada e amigos. Apesar de homem feito, carregava consigo uma juventude gritante e não raro quem lhe encontrasse o trataria por “rapaz”. Era ainda um rapaz o Charles que conheci de vista, de ouvir falar. Não sei como era sua vida, assim, em pormenores, não sei se era bom homem, se trabalhava, se preferia verde ou azul... Tudo o que tenho certeza é de que ele vivia e a partir de um acidente como o da noite de ontem, não viverá mais. Era um cara como tantos outros caras, que sorria, namorava, festava...
Mas para o Charles e toda a sua juventude, fatalmente, não haverá amanhãs. Charles não poderá mais assistir seu time ser campeão, nem comprar o carro dos planos, nem viajar para a praia. Charles não verá agosto dissipar o frio, quanto menos setembro anunciar a primavera... Charles não comemorará seu próximo aniversário, não saberá o que é envelhecer com sabedoria, não reclamará do governo que vai assumir o país. Charles não terá tempo para ter filhos, não irá reconciliar-se com desafetos, não será possível dizer eu te amo uma última vez a quem quer que ele amasse. E essa porção de verbos, negados por um acidente que lhe tomou a vida, dão conta de desolar a nós, inconformados.
Embora haja algumas explicações – sejam elas o destino que já estava escrito, uma missão que fora cumprida ou um chamado divino para os céus – nenhuma delas dá conta de acalmar a angústia de um momento como esse. A morte que me perdoe, mas acharei, agora e sempre, que foi cedo para o Charles e para tantos outros que morrem todos os dias. Porque ainda havia tanto por viver...
Em um momento a vida é tão imensa, cheia de cores, e em outro, tão pequena a ponto de caber e esvair-se em alguns segundos. Não é o acidente que me assombra, nem só a morte que me espanta... É a vida, recheada de uma fragilidade sem fim, que doerá a cada um de nós nessa inevitável despedida. Doerá porque olharemos para trás e, em nossas memórias, Charles sorrirá para sempre como no último riso que ele deu em nossa companhia. E doerá porque, ao nos lembrarmos dele, lembraremos também de todos aqueles que nos são caros e que, mais dia menos dia, nos deixarão de formas que, ao coração, serão invariavelmente cruéis. Cabe a quem fica retirar daquele último sorriso força para continuar. Procurar naquele último contato um suspiro de conforto que seja capaz de motivar a seguir...

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Aquilo que só eu conheço

Odeio o mundo, e no entanto amo infinitamente
a chamada alta-roda.
Como se torna odiosa a vida que passa
só para nos arrastar ao terror.
Meu destino, lento e furtivo,
consiste em viver numa concha apertada e escura.
E esconder de quem quer que seja os meus sonhos íntimos
ou aquilo que só eu conheço.

Nina L., p. 175

terça-feira, 13 de julho de 2010

Leituras, tapetes e viagens em geral

Estive sem internet por três dias na semana passada, e o resultado foi uma desintoxicação (ao passo de uma abstinência) que há muito eu não houvera tido. Escrevi, é claro. E acho que desintoxicada as ideias me saem mais soltas, com gosto de diário. Não sei direito se isso é melhor ou pior mas, em todo o caso, hoje tirei um tempo pra transcrever:
O tapete fofo e novo esperava que meus pés tocassem nele depois da retirada dos sapatos. Um pequeno prazer que eu ainda não havia tido. A TV nem precisaria estar ligada, pois eu não a ouviria. O livro que o Leo me deu esteve jogado na minha estante desde ontem. Eu queria começar a lê-lo porque era um presente e porque parecia que me deixaria mais interessante e porque eu queria mandar uma mensagem para o Leo dizendo qualquer coisa sobre ter gostado, ou mesmo não, porque era ainda uma alternativa. Talvez, tudo isso pra que ele me achasse menos tudo que ele pode ter me achado nos últimos dias. Hesitei. Na noite de ontem, eu não tinha ânimo para ler porque tinha muito no que pensar. Todas as noites eu tenho. Dessa vez, não. Pus-me desajeitada na cama. Ali pelo meio. De um jeito que, sem os sapatos, pudesse encostar meus pés no tapete fofo e depois subi-los até formarem um quatro, assim, meio tosco. Ou só encolhê-los. Minha coluna dobrava-se por conta dos dois travesseiros. Eu estava sozinha em casa, em instantes alguém chegaria, pra dizer qualquer coisa sobre a falta de postura, compostura, normalidade, porque quando a gente quer silêncio um pouco de barulho sempre chega, isso é certo. Aproveitei o pouco de silêncio que me restava e li as primeiras páginas com avidez. Logo minha mãe chega, é claro. Primeiro me pediu pra comprar pão, depois me perguntou o que era o “acaso” que o Leo tinha escrito na dedicatória do livro que, sim, ela notara derrubado sobre os outros. Contei-lhe sobre as duas encomendas que ele havia feito, e não consigo ser sincera ao responder se ela acreditou ou não que ele é, mesmo, só um amigo. Não, um projeto de amigo. Pois isso não é importante hoje. Voltei ao meu quarto, pé no tapete fofo, pernas, leitura. De repente me berra lá da cozinha, ou da sala de janta que aqui em casa não é repartida da sala de estar, e me pergunta sobre uma palavra. Antropocentrismo. Perguntou se eu sabia o que era aquilo e eu respondi muito confiante. Eu sabia que sabia. Ela também, pelo visto. Depois me perguntou sobre outra. Biocentria. Essa eu não sabia, mas respondi, mesmo vacilando. Pra ela ter gosto de me perguntar coisas. Não saber a segunda palavra deve ter conferido menos certeza à minha primeira resposta. O que tecnicamente nem importa, eu mesmo nem me interessaria pelo trabalho do grupo de estudo da minha mãe ou por uma palavra como era aquela: Biocentria. E não comi os pães. Apesar do bom aspecto, não tinha mais fome, ou ao menos não queria ter, porque ler era o que eu esperava. Deito-me, coluna torta, um capítulo inteiro, e ela me pede para alcançar a tesoura, acomodo o livro, alcanço. Por pouco não me ofereço para cortar as folhas que ela cortaria, mas achei que fosse um pouco injusto com o meu livro, que esperava debruçado sobre a minha colcha florida, no meu quarto que tocava a mesma música que toca agora, ou alguma muito parecida. Perto do meu espelho, do quadro que me tem sorrindo com janelinhas de falta de dentes e com o meu armário e a minha caneta que ninguém guarda nunca, e um mural cheio de recortes e a nova aquisição da família: O meu tapete fofo e bege, que nem se mensura o prazer de pisar. Retornei, pois, sem cortar nada. E li. Ao ler, uma espécie de campo magnético se forma ao meu redor, mas que tolice isso do campo magnético, que seja. Eu li. Até minha mãe retornar e não dizer nada sobre os sapatos jogados no chão e a música mais alta do que é preciso e sobre a minha coluna e devolveu a tesoura à gaveta, pediu-me que achasse uma fita que colasse o papel muito importante que ela havia acabado de cortar por engano. Às vezes as interrupções me irritam, às vezes não. As do gênero “ache isso, cole aquilo”, especialmente quando estou lendo, irritam muito. (Mas me ama, ela, eu sei que me ama) Colei. Dei de ombros à cara de reprovação que ela não fez, colei mal colado, pus na cômoda e voltei para minha leitura. Tapete fofo, pernas em quatro, todo aquele ritual. Então meu pai chega, e ouço a TV em algum volume que provocasse minha música alta. Não fez menção de pedir que eu abaixasse o meu som, nem me cumprimentou muito cortês, porque não lhe é do feitio. (Mas me ama, ele, eu sei que me ama) Acho que conversavam sobre o goleiro que matou a mulher e deu de comer aos cachorros. Desconectei. Meu livro era mais interessante do que uma morte trágica dessas, o próprio goleiro ou mesmo os cachorros – muito menos os cachorros. Não ando sensível às ternuras dos outros. Nem às minhas. Foram páginas inteiras, poucas, mas inteiras, de expectativa. As estórias têm esse poder de encantar a gente, coisa que um livro abandonado na estante não faz. Lembrei-me das coisas que já tive vontade de escrever. Lembrei-me de tantas coisas. Os livros que não li. Ia pensado no que ia escrever. Na noite de ontem, na vista da cidade inteira, no humor, na indisposição para o livro. Numa vida que consegue imitar a arte. Numa arte que não é outra coisa a não ser retrato de vida. No fim, todas as histórias já estavam escritas - ou serão escritas algum dia, ainda que não estejam nos livros. O sapato está jogado, o tapete fofo, inerte. Meu pai jogado, também, mas no sofá, irritado com minha música ou distraído com as reportagens do canal 28. Minha mãe saiu. Acho que a ouvi se despedir, tinha uma reunião. Ao Leo eu ainda não agradeci a última vez, ou mesmo comentei o final do livro, acho que seria equivocado da minha parte e, para ser sincera, o Leo ainda não é tão importante quanto o livro que ganhei de presente do Leo. Acho agora que deveria ter feito do Leo personagem com outro nome para preservar-lhe o direito de não morar nos meus escritos desajeitados. Não fiz. Estou vendo tudo passar, sentindo os pés gelarem, por isso dou valor ao tapete fofo. Os cabelos não me deixam enxergar muito os lados ou ter disposição para fechar a janela. Ou quem sabe fazer um chá. E eu não sei como terminar, o que é pior. Acho que nunca sei como terminar, inversamente ao quanto sei começar... (Penso agora que isso é o sentido do texto, e que o final sempre parece o sentido dos começos e dos meios) E começo tantas coisas, escrevo tantas outras. Lembro muito... Acho que, por isso, ainda estou escrevendo. Porque me lembro. Mas não sei o que serão das coisas todas que passam e das quais escrevo. Não sei o que será do livro, acho que vou abandoná-lo outra vez agora que o terminei, mas não sei. Talvez o recomece. Não sei do que será o papel mal colado, do meu estômago, o pé gelado. Há uma série de outras coisas para se ler ou escrever, alimentar. Ou mesmo lembrar, mas tudo às vezes me é tão absurdo e indiferente que só termino. Acho que sou diferente. Não, indiferente. Mudo. É tão simples. Mudo e termino. Sempre uma decisão silenciosa... Que nem de longe se compara ao meu tapete. Aí vou terminando, desgostosa e sem jeito, tão polidamente cordial quanto vou começando, e afinal, disso tudo só o que importa é minha recente combinação predileta: Eu, minha leitura e meu tapete.

***

E para não ficar por isso mesmo, e porque hoje o sentimento já é outro, e porque foi porque li esse ainda há pouco que me lembrei de postar isso aí de cima, segue A viajante, de Rubem Braga:

Com franqueza, não me animo a dizer que você não vá. Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique. Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida — e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes) estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem melancolia que me preparo para ver você sumir na curva do rio — você que não chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas e mais doçura ao murmúrio das águas. Foi um belo momento, que resultou triste, mas passou. Apenas quero que dentro de si mesma haja, na hora de partir, uma determinação austera e suave de não esperar muito; de não pedir à viagem alegrias muito maiores que a de alguns momentos. Como este, sempre maravilhoso, em que no bojo da noite, na poltrona de um avião ou de um trem, ou no convés de um navio, a gente sente que não está deixando apenas uma cidade, mas uma parte da vida, uma pequena multidão de caras e problemas e inquietações que pareciam eternos e fatais e, de repente, somem como a nuvem que fica para trás. Esse instante de libertação é a grande recompensa do vagabundo; só mais tarde ele sente que uma pessoa é feita de muitas almas, e que várias, dele, ficaram penando na cidade abandonada. E há também instantes bons, em terra estrangeira, melhores que o das excitações e descobertas, e as súbitas visões de belezas sonhadas. São aqueles momentos mansos em que, de uma janela ou da mesa de um bar, ele vê, de repente, a cidade estranha, no palor do crepúsculo, respirar suavemente como velha amiga, e reconhece que aquele perfil de casas e chaminés já é um pouco, e docemente, coisa sua. Mas há também, e não vale a pena esconder nem esquecer isso, aqueles momentos de solidão e de morno desespero; aquela surda saudade que não é de terra nem de gente, e é de tudo, é de um ar em que se fica mais distraído, é de um cheiro antigo de chuva na terra da infância, é de qualquer coisa esquecida e humilde - torresmo, moleque passando na bicicleta assobiando samba, goiabeira, conversa mole, peteca, qualquer bobagem. Mas então as bobagens do estrangeiro não rimam com a gente, as ruas são hostis e as casas se fecham com egoísmo, e a alegria dos outros que passam rindo e falando alto em sua língua dói no exilado como bofetadas injustas. Há o momento em que você defronta o telefone na mesa da cabeceira e não tem com quem falar, e olha a imensa lista de nomes desconhecidos com um tédio cruel. Boa viagem, e passe bem. Minha ternura vagabunda e inútil, que se distribui por tanto lado, acompanha, pode estar certa, você.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Quases

E há ainda os quases. Os piores venenos que já inventaram para entorpecer corações tépidos que poderiam ser alegres pelo que foi, ao invés de entristecerem pelo que não foi. Quase é a palavra que repito com maior frequência e a que pior sei definir, noto agora. Me inundo de quases muito mais do que de para sempres e por ques... Mas não declaro, e isso é segredo, porque sou apenas quase corajosa o suficiente para me definir entregue a tamanha incerteza. Me assumir dada às indecisões que provém da palavra... E me revelar atada em tudo que, por muito pouco, nem chegou a ser.

Confesso que não sei

Acho que isso não é inédito: O cerne da questão é que nunca se enxerga mais que uma parte. Nem de mim, nem de nada. As coisas se mostram à luz do que desejam esconder e às sombras do que queremos que elas sejam. E é assim também com as pessoas. Por mais que muito de qualquer um nos seja nítido. A visão particular que temos, todos, esconde um universo de possibilidades e abriga uma porção generosa de desconhecimentos... O mundo pode ser cão além das paredes de nós e raramente hesitará em fazê-lo. Tudo isso porque não sabemos. Jamais saberemos... Somos limitados. Limitados em nossos modos, sem jeito, de vermos... Tudo, infelizmente, não podemos. Então apenas não sabemos.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Dois

Reaparece depois de uns dias... Muito acompanhado daquela dorzinha que quase lateja, projetada para o incômodo. Eu não consigo escrever pra ninguém. Queria escrever pra você. Pra você alguém. Pra você que eu ainda vou encontrar. Pra você doce. Pra você por quem eu comecei a escrever algumas vezes e parei. Mas aí achei que já era demais. Demais pra você. Pra você bem você que crê nessa criatividade que gastou, puíu, fraquejou, vacilou. É como aquele dia em que a gente quase viu amanhecer... Lembro tão bem. "Tem música de circo se atirando nas minhas paredes e voltando." Acho que foi assim que você tentou me dizer. É tudo o que me lembro, ainda que não seja. Desde lá chorar baixo e em silêncio sempre foi um orgulho daqueles muito pesados. Sofrer baixo, não. O tal do sofrimento a gente sempre comparou com o grito. Imensurável. Embora você nem saiba de metade das coisas pelas quais eu sofro agora... Aliás, que chateação quando a gente precisa se explicar pra quem não entende como você entendia, meu bem. Queria te contar das coisas conquistadas e descobertas. Das receitas que me deram e eu provei. Mas por isso, tudo bem. Não funcionaram mesmo... Jamais funcionarão esses meus planos tão em nome da liberdade que no final saem tão às avessas. Seja lá o que essa liberdade queira dizer ou sugira... Ainda quereria escrevê-la pra você, veja só. De um tanto bem grande que você espremesse os olhos pra ter certeza. Mas me sinto frágil... Frágil pra escrever o que, tenho muita convicção, nós dois precisamos ler.