terça-feira, 29 de janeiro de 2013

As coisas findas

Amar o perdido 
deixa confundido 
este coração. 

 Nada pode o olvido 
contra o sem sentido 
apelo do Não. 

As coisas tangíveis 
tornam-se insensíveis 
à palma da mão. 

Mas as coisas findas, 
muito mais que lindas, 
essas ficarão.

(Memória - Carlos Drummond de Andrade)

Frigi mais de hora sobre a cama, enquanto embrulhava e punha um quadro dos Beatles no correio mentalmente. Escrevi o endereço dezenas de vezes - ora em papel pardo, ora em caixa decorada, ora com tinta de sonhos. Passado o desespero que me povoou os últimos dias, sobrou reflexão. De algumas coisas, não se pode fugir. De algumas coisas tangíveis... E de algumas coisas findas. Se é que Drummond me autoriza a paráfrase.
Hoje, nessa madrugada, minha decisão faz aniversário. A gente sabe que um mês é tempo demais porque já viveu muitos outros antes desse. Porque olha pra trás e percebe quanto detalhe importante aconteceu nessas quatro semanas. Trinta dias é uma vida. Mas uma vida, antagonicamente, não passa de um piscar de olhos. Aí está a tragédia de Santa Maria, que não nos deixa esquecer.
Ainda sobre o poema e tudo que ele me provoca: Amar o perdido confunde. Que o diga todos aqueles que ainda amam algo que já não existe, mas um dia existiu: Um bom humor que se perdeu no tempo, uma paixão que se esvaiu. Amar o perdido distante confunde tanto mais... Porque há, junto da perda, a confusão de um esquecimento que, aos poucos, deixa de ouvir os apelos. 
As conhecidas exceções que me perdoem, mas minha geração não aprendeu a consertar as coisas. Eu me flagrei, ainda hoje, deixando clara a opção de partir antes mesmo de começar. Depois me senti profundamente envergonhada. O fato é que repetimos amizades e amores tangenciando à distância com os seus defeitos até que as próprias qualidades nos pareçam descartáveis. É triste admitir que abandonamos os barcos de papel que ajudamos a dobrar porque, um dia, descobrimos sua fragilidade no curso desse rio que está aí, pra ser navegado.
Que fiquem as coisas findas que foram muito mais que lindas, sim, Drummond. Porque o passado nos trouxe até aqui e, só por isso, já teria valido a pena. Mas que fique também a certeza de que usamos de nossas sensibilidades ao máximo, enquanto não findou. Que tenhamos tentado identificar as fraquezas do outro e tentado lhes curar as feridas nos limites de nossas forças, à exaustão, sem pensar duas vezes. Pra só então desistir.
Nós merecemos atenção. Sabemos o quanto precisamos uns dos outros. Que antes de terminar (a vida, o amor, a paixão, a amizade, o plano, o entusiasmo, o relacionamento) a gente batalhe pra manter de pé o barco de papel dobrado com tanto esmero, quase como faziam nossos avós e alguns de nossos pais, sem esquecer de tudo que nos fez dobrá-lo, vinco por vinco, pra chegar ao que se tornou, depois de tantas tempestades, quase naufragado. Pra que quando formos coisa finda, tenha-nos sobrado mais amor doado e coisa linda do que quadros dos Beatles empoeirando na estante.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Um delírio otimista

"O que mais me encanta em você, 
é (...) tua inteligência moleque, 
de pernas tortas...
Teu delírio otimista, à beira da sorte."
(Frejat)


Amanheci com os dentes do juízo doendo - o que era, no mínimo, sugestivo, depois do dia que houvera tido. Talvez por isso, tarde da noite, passando da hora de dormir, depois da despedida e com chuva fina batendo contra a janela do quarto e o clarão distante de alguns trovões, resolvi brincar de me perder mentalmente.
Uma louca desvairada e genuína imaginando loucuras tristes, porque alguém já disse um dia que a inspiração é prima-irmã de um pouco de melancolia. E já que a vida vinha sendo generosa comigo, eu precisava inventar uma tristezinha que fosse pra conseguir raciocinar e escrever.
Nesse inventado devaneio pessimista, o mundo virava um deserto distante em que todos aqueles que me arrancam sorrisos estavam por perto. Menos um. E naquela brincadeira mental (pra lá de cruel!) em que eu me imaginava distante de um só, daquele ser específico, eu fui sufocando aos poucos daquela ausência, insatisfeita por não ter podido descobri-lo, afagar-lhe a nuca, vê-lo corar de timidez ou cantar com o som do rádio num dos últimos volumes mais uma vez.
E naquela invenção eu fui querendo tanto... E deixando de conseguir negar que esta era uma prova muito além de real de que prefiro viver os delírios otimistas, ainda que o juízo me doa ou a inspiração pra escrever me falte. Pois a de viver me sobra.
É possível que se apaixonar pela terceira, quarta, quinta vez, faça com que a gente tema delírios tão loucos e negativos quanto esse meu, de inventar o deserto que o mundo se tornaria com a falta do outro. Então eu lembro que o juízo me dói, mas não deve me censurar. Porque é só neste agudo ponto de maturidade em que percebemos que se apaixonar pode ser, afinal, o fato de otimizar os melhores e mais insanos delírios, fazendo equilibrar-mo-nos - certeiros feito Tom Cruise na última cena de Vanilla Sky - na tênue linha entre a liberdade e o que nos tira o sossego.
E permitir-se insistir, docemente, conhecer uma ponta do espanto e descer inteira na falta de fôlego que as coincidências e afinidades nos provocam, fazendo permanecermos à beira. À beira do outro, de sua boca, de seus desejos, de seus traumas, de seus encantos, de suas verdades, da sorte. E depois mergulhar nisso tudo, sem medo, seja lá o que essa sorte nos reserve.