terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Eco [5]

Logo depois de apertar o botão número seis do elevador, cheguei a esboçar o gesto de por a cabeça no vão da porta para agonizar até a morte, ficando preso entre o térreo e o andar das garagens, as pernas balançando violentamente cômicas para o lado de dentro, como em um filme do Tarantino. O bizarro da cena eximindo o bizarro do contexto. Sangue interiorano volumoso e vermelho correndo vivo até o carpete do hall de entrada do L'universVoilà, L'univers: uma morte medíocre, para um ser humano mediano e patético, neste cenário cafona de tão cheio de pompas.
Olhei de soslaio para o visor. Subindo. Quem dera os ricos investissem em tudo, menos em um sensor para impedir suicídios cinematográficos em seus prédios cheios de espelhos, como o que hipotetizei naqueles dezoito segundos até que a porta finalmente fechasse, depois que a obstruí com a minha modesta - para não dizer pífia - massa encefálica.
Por que diabos eu estava fazendo aquilo? Respondo: para me sentir vivo e para ferrar com a Laura até o caroço. Como ela fez comigo, se fosse possível. Quando o elevador chegou no terceiro andar, respirei fundo, pensando que depois de tocar o interfone seria muita covardia, a de sempre, aliás, amarelar ou morrer na iminência de consolidar um encontro com uma amiga da Laura, só por vingança.
Eu estava ali. Três dias depois daquela estocada nas costelas que foi o nosso término. Sem ter chorado uma lágrima sequer, ainda. Sem entender nada. Tendo passado a seco pela fase de me culpar pelo ocorrido (primeiro dia), e pela fase de ficar revisando a lista de qualidades dela (segundo dia). Finalmente, no terceiro dia, numa versão mais abestalhada de Jesus Cristo que a daquele velho, Inri, que fazia aparições na televisão, eu me considero pronto para a ressurreição. Para dar o troco com um rancor mortífero.
Sim, um troco. No meu raciocínio pseudo-macho-alfa-de-quinta-categoria, a Laura só poderia ter me traído, na minha ausência. E se apaixonado por outro, quem sabe. Só isso justificava o impulso grosseiro de não amaciar meu ego antes de tentar destruí-lo, coisa que me parecia que ela tinha feito. Não importa o quanto um homem seja lírico, às vezes ele acha que tem a obrigação de ser prático.
Então, pensei em uma dúzia de adjetivos autodepreciativos que inflavam o meu peito e outros músculos (o canalha moderno necessariamente se obriga a achar lindo ser canalha) e toquei a campainha. Bem bonita, a menina. Mais alta do que eu lembrava, de ver de longe. Loira, com uma pele um pouco torrada de sol. Risadinhas. Sotaque. Cabelo preso com um rabo de cavalo meio de lado. Exótica. Uma argentina intercambista com quem a Laura trocou confidências durante a faculdade, até se distanciarem. Eu não podia ter dado match no Tinder em pessoa pior.
Para encurtar a história, comemos pizza. Uma playlist com musiquinhas sacanas tocando. Transamos. Umas três vezes, se é que eu posso me vangloriar um pouco antes da derrocada fatal da história para a parte infame. Antes e durante, bebemos vodka. Vodka. Muita. Vodka. E aí eu... Vomitei. No caminho entre o sofá e o banheiro. Cedo demais, uma avalanche de queijo e pepperoni se direcionou para o chão. Tarde demais.
Na saída do elevador, depois de me vestir e de pedir mil desculpas - sin problemas, porsupuesto, hasta luego. É desse jeito hermanamente caricato que simplifico a parte em que não prestei mais atenção -, como fazem todas as pessoas sem um mínimo de senso de ridículo, e é impossível que você tenha chegado até aqui supondo que eu tenha um, eu liguei para a Laura. Chamou até cair. No meio da madrugada, pudera. Imaginei ela no décimo sono.
Quatro da manhã, liguei de novo. Chorando. Bêbado, claro. Uma, duas cervejas ou mais, nacionais, compradas no posto da esquina de casa, em cima do que sobrou daquela orgia multicultural de ir até um prédio com nome francês, ingerir o mais russo dos teores alcoólicos e não fazer nada além de comer em espanhol para vomitar em italiano.
Na segunda tentativa, depois do quarto toque, ela atendeu. Culpadíssimo pelos incidentes da noite, quis contar tudo para, sei lá, ser perdoado por ser um imbecil. Desatei a falar, sem dizer coisa com coisa. Até me dar conta de que a Laura estava em um lugar com um barulho ensurdecedor. Paciente, e provavelmente sem entender meus grunhidos, pediu que eu me acalmasse e tomasse um copo d'água. Como quem implora, de um pedestal, que o súdito erga-se sobre os calcanhares, dê meia volta e evite passar mais vergonha, na iminência de um pedido de reconsideração. Outro baita tapa na minha cara.
Quando ela desligou, chorei mais. Eu precisava resolver uma centena de coisas antes de voltar a ser um homem que faz escolhas sensatas. Eu precisava conseguir enxergar a Laura como uma pessoa inteira. Independente. Ela me enxergava mais inteiro do que eu era. Ao sugerir que eu me recompusesse sozinho, Laura me tratou com a decência que eu tinha esquecido que merecia de mim.