quinta-feira, 4 de junho de 2020

Utilidade

Das receitas que eu conheço melhor para abstrair angústias e surfar nos próprios pensamentos, a mais precisa e eficaz sempre foi afundar no trabalho. Perdi as contas de quantas vezes desconectei de questões sentimentais - sempre elas - e de inconformismos de toda ordem rendendo o dobro. Sendo a funcionária do mês. Quiçá do ano. Maquinando produtividade profissional para distrair ou, pode-se dizer, para voltar a focar em algo útil. Eu sempre tive muito do que tentar me distrair.
Utilidade. É curioso que tenha me ocorrido justo este termo para problematizar o meu comportamento. Às vezes tenho algumas dúvidas sobre o que é utilidade pra mim. Sobre qual é, ou pode ser, a minha real utilidade como pessoa. Sobre o que me faz querer ser vista como alguém mais útil e distinta, especialmente quando tudo vai mal em alguma área da vida.
Bem, a verdade é que usar o próprio conhecimento a serviço dos outros talvez seja a definição mais básica e abstrata de utilidade. Fazer a diferença na vida de alguém pelo próprio trabalho é útil. O sentimento de dar o meu melhor pode me ser útil. E fazer dinheiro, é claro, é uma consequência bastante útil. Resgatar a praticidade no cotidiano do meio da confusão mental sempre foi útil. Trabalhar é como ter os pés na terra, na realidade.
Eu poderia falar de qualquer coisa sobre missão aqui, mas hoje não quero pensar que haja nada de místico neste tipo de arranjo. O contexto não me permite. Não quero pensar em vocação, ou em privilégio, ou em talento. Ou nas coisas que desempenhamos sem esforço, como se fosse um dom, e pros outros pode valer muito mais. Hoje quero me deter na reflexão sobre estes instantes em que sinto a necessidade de fugir de mim. Na razão para criar este mecanismo de redirecionamento de energia que pode ou não funcionar, e por quê. E como.
No início da semana, voltou a me ocorrer que eu poderia ter e levar a sério uma causa ou duas. Fazer trabalho voluntário, por exemplo, abdicando daquele pensamento de que a filantropia é apenas uma face altamente vendável do mau caratismo humano, usado para equilibrar os freios da condescendência consigo mesmo. De todo modo, eu poderia invocar das profundezas do meu idealismo algumas paixões sociais. Pulverizar minha mão à obra para outras obras. Militar na internet, mas não só. Desempenhar também ações mais afirmativas para me sentir, de novo, útil. Seja lá o que pudessem ser essas ações afirmativas. Eu poderia me dedicar a descobrir algumas outras utilidades para não manter todos os meus ovos na mesma cesta, como dizem. Eu poderia empreender com mais objetividade o caminho das minhas outras inquietudes, para testar se diminuem.
Sei, porém, que só estou pensando nisso tão detidamente porque, cá entre nós, a minha principal fórmula não tem funcionado. Ou não tem bastado. Ou, pelo menos, não me tem sido tão eficaz quanto já foi um dia. Neste momento exato, é como se o trabalho não cumprisse sua função precípua de me reorganizar. De me justificar. De me tragar inteira e me soltar feito fumaça, filtrada pelos pulmões do aparelho de bater o cartão de ponto, melhor do que entrei.
Oxalá o trabalho volte a ser em breve tudo que já foi pra mim um dia. Fonte inesgotável de recompensa para a dedicação e do sentimento de utilidade. Até lá preciso, minha nossa como preciso, preciso muito, preciso avidamente encontrar outras fórmulas igualmente eficazes para despejar a minha intensidade em coisas menos potencialmente decepcionantes e lesivas do que... pessoas.

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