sexta-feira, 27 de março de 2015

Coliseu

O gladiador, assustado, espia a plateia com ar de altivez enquanto ajeita o escudo e leva em punho a espada. Ofega. Seu interesse é, exclusivamente, sobreviver para fazer história. De antemão, tem certeza que será difícil. Ele não sabe o que lhe aguarda, mas tem a ideia fixa de que o que quer que esteja por vir, a criatura é mais forte que ele. É apenas para esta hipótese que está constantemente preparado. De suas experiências, infere que é para isso que servem os espetáculos: divertir a plateia, que assiste a um combate estarrecedoramente desmedido de forças. O gladiador tem, portanto, a desvantagem de se sentir permanentemente ameaçado pelos atributos que não tem e pelo adversário que não conhece. Ele aguarda o pior, porque sabe ou crê que não lhe fora reservada parcela suficiente de sorte para que o obstáculo seja transponível num golpe só. Sua vantagem é a magnitude do feito. Se o sucesso vier - qualquer que seja a batalha - será sofrido e suado e merecido. Se vier diante de um oponente tão qualificado, este será o dourado do louro de sua vitória.
Não, não é possível! Um rugido!? O gladiador tem uma vertigem.
O leão irrompe na arena. O berro alto e longo com a boca de leão bem aberta convence o próprio leão de que ele tem vantagem sobre qualquer ser, bípede ou quadrúpede, que lhe espere depois da comporta. Talvez não seja verdade, já que ele só tem dentes e garras e força e vontade, em vez de aço forjado e dois gumes. Mas ele vai rugindo, andando lento enquanto toma fôlego, para assegurar que todos saibam o quanto ele tem confiança, quase como se pudesse saber que a sua natureza é a disputa e que é o respeito ao confronto e às suas capacidades que lhe faz vencer quase todas as vezes. Ele mostra os dentes. Não porque quer impingir ao gladiador o medo de uma mordida, mas porque não se ruge sem mostrar os dentes e porque sem rugido não se sente apto. Sem o rugido, o leão é só um bicho apreensivo como tantos outros. A maioria do público, logicamente, não o compreende, e então enxerga o gladiador mais humilde. E os manuais de bom público recomendam que o bom humano se identifique com o mais humilde. O leão não entende os aplausos quando é ferido fazendo o que tem que ser feito.
O gladiador, com as palmas ritmadas de incentivo dos que lhe assistem, no íntimo acha o leão um bicho prepotente, porque chega para o combate certo de que tem chances reais de sair com vida, sem nem cogitar a hipótese da perda, e por isso deve ser vencido. E se esquece que ele mesmo só cogita a perda.
O leão faz o que sabe fazer e avança, à frente do gladiador. Não para matá-lo, mas para ter um bom desempenho. Sente que é para isso que veio ao mundo, que foi escolhido para o espetáculo e que, segundos antes, tiraram-lhe da jaula. Não avança para destruir expectativas, mostrar grandeza na comparação ao gladiador, mas porque é sua natureza. E se esquece - ou nem se dá conta - de que vai frustrar a maioria da plateia se agir conforme seus instintos, porque a plateia inteira também teve vertigem quando ele rugiu - sabe-se lá por quê.

Se o gladiador vence, é ovacionado na aldeia por três semanas ou mais, porque superou todas as tantas dificuldades conhecidas e, com sua perseverança, fez dissipar a arrogância do leão. Ninguém se lembra que venceu em nome de sua vaidade. No fim das contas, o gladiador é sempre o herói, aconteça o que acontecer, porque quase ninguém torce para quem lhe parece Golias.

Se o leão vence, não faz mais que a obrigação. No futuro haverá outros gladiadores a quem enfrentar. Terá de rugir e avançar outras tantas vezes. Sua coragem não é aplaudida. Ninguém pergunta ao leão se ele tem medo e ninguém acreditaria se ele dissesse que sim. É o nosso ditado às avessas: o leão mata um gladiador por dia. Mas talvez isso não seja tão fácil quanto parece.