terça-feira, 1 de novembro de 2022

Capitão Nascimento

Se você chegou até aqui sem que eu compartilhasse o link em lugar nenhum, temos intimidade para que eu seja tão franca quanto posso sobre como estou me sentindo. Espero que você saiba compreender ou se retire. Escrevo porque tenho medo de ser sufocada pelo meu silêncio. E eu vou discutir tudo isso com a minha terapeuta, obrigada por perguntar. Não precisa se preocupar. Já estou me preocupando o suficiente por você e por mim. Eu sei que vai passar. Eu torço que vá passar. Tenho me apegado nisso já há muito tempo. Mas hoje quero falar de desespero. Total e sem precedentes. Eu sei que isso não é normal. Quero falar da paralisia da minha vontade de viver esse tempo em que as verdades são tão duras ao meu redor. Eu sei que isso não é normal. Há muito tempo eu não sonho. Durmo e acordo exausta. Teorizo conspirações. Me absurdo diante de outras. Faço um buraco no peito pra encontrar a humanidade que eu achava tão bonita e só encontro mais medo. Medo de não ter mais para onde correr, agora que as rodovias estão fechadas por lunáticos. Medo de partir pra nunca mais, também. Mas muito mais medo de ficar aqui, rodeada de pessoas que costumavam ser boas e agora são tão hostis. Medo de ser incapaz de consertar o estrago depois de ter me quebrado em mil de tanta tristeza. Estou exagerando? Então por que todo mundo parece louco? Então por que não consigo parar de chorar, agora que era para estar alegre? Não sei. Sei que vou sobreviver. Mas a que custo? Sei que nada é para sempre. Mas talvez a tranquilidade devesse.

sábado, 22 de outubro de 2022

Tempo de podar

Vivo para ser amada. Por mais que eu diga que não, cada relação que estabeleço na vida é um plantio e um cultivo de onde espero colher amor. E respeito. E a vantagem de crescer junto. Da família ao casamento, do trabalho a sorrir para a moça do caixa da cafeteria: quero desesperadamente ser amada por cada um e tenho dificuldade em aceitar o contrário. Talvez a Claudinha da infância busque mesmo companhia pra brincar ou subir em árvore. Ou talvez ela só saiba que merece o amor que é capaz de entregar aos outros. Por isso talvez me custe tanto sobreviver em tempos como estes, nos quais é necessário lembrar que nem todo mundo é feito de temperança, bom humor e civilidade. Nos quais é necessário podar. Amizades, amores, colegas e até família. Para diminuir a sombra, para poder enxergar o sol. Podar. Tirar as folhas secas, os galhos que cresceram na direção extrema e errada, aquela cochonilha branca mofada e infeliz que não se combate nem com água e nem com seca. Estabelecer limites. Permitir que o que é bom tenha espaço para respirar e alcançar a luz. Sem se encolher por trás da sombra do que é mau. Podar. Não arrancar pela raiz, para que morram ou desapareçam na minha vida, mas justamente o contrário: podar para que haja uma mínima chance de que sobrevivam depois, com a saúde das relações que duram porque se respeita o tempo de brotar de novo, vindo de outro lugar que não o que secou ou apodreceu e agora merece ser podado.
Sou cheia de amigos e amores. Mas solo nenhum sobrevive ao excesso de ervas daninhas. Muito menos à ignorância e à estupidez. Tenho podado muito, e queria poder dizer que é quase sem notar. Mas eu noto. Às vezes dói um pouco. Às vezes me sinto culpada. Desculpe, amiga de infância, não quero ser complacente com a sua hostilidade, nem sei fingir que não conheço a sua história. Desculpe, doutor, o cabresto comigo nunca vai funcionar. Desculpe, incompetente, não vai dar pra te ver me chamar de burra e fingir que não vi. Desculpe, fundamentalista, eu cresci e ainda estou pensante. E agora estou te podando, para não adoecer por completo. Que a sua incapacidade de ser vida um dia renasça como adubo. Porque quero ao lado hoje só o que floresce - não para ser medo, mas para ser amor.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Eco [23]

Na primeira vez que me olhei no espelho hoje depois de cortar o cabelo vi um fio branco apontar bem no topo da cabeça. Não foi o primeiro, Laura, mas dessa vez não arranquei. Não fiz mais que um movimento pra comparar a rigidez com os escuros. E deixei ali. Mas quis te contar que estou envelhecendo. Te perguntar se o tempo passando aí tem o mesmo peso e o mesmo cansaço daqui. Você também tá se sentindo no inferno astral? Também tá exausta de ter os mesmos defeitos e os mesmos traumas e de ter que lidar com as mesmas pessoas? Imagino que sim. Também te irrita perceber que amadurecer tem um pouco a ver com aprender a negligenciar algumas coisas em nome de uma parceria sólida pra passar o resto da vida? Embora a nossa geração já não seja mais dessas de pensar no resto da vida. Bom, hoje quando vi o cabelo branco, eu até pensei. Quis te ligar correndo pra contar que não sou mais o mesmo, o que talvez queira dizer que ainda sou exatamente igual. Finalmente abdiquei daquela bobagem de ter inveja da modernidade e agora entendo que caminhamos todos na contramão da vanguarda enquanto vemos avançar o relógio, por isso quem se deixa carregar pela maré tem vantagem. E que eu, que já estou mais velho do que nunca antes mesmo de fazer aniversário, sinto no claro desse cabelo que é um pouco tarde. Que estou velho para uma porção de coisas. Que as ressacas têm durado três dias. Que hoje mesmo ouvi um idoso fazer planos para o próprio funeral. Que um dia meus pais também precisarão de cuidado. Aí quis te perguntar como é que vai a vida. Ou o que significavam aqueles fones de ouvido que você usava no meio do mar no meu pesadelo da semana passada. Mas foi contigo que aprendi a não dar o braço a torcer para que não me torçam o dobro. A me apaixonar por mim. A te deixar pra lá. E a envelhecer, com charme e o cabelo cortado, sem essa coisa imatura e adolescente de querer sempre um pouco mais do que o que eu tenho e me é dado.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Big deal

Quanto mais próximo se tornou o dia de me casar (e digo casar sem ter casado, sem me preocupar que as pessoas confundam as coisas ao me ver usando um véu no bar fazendo a despedida de solteira sem que eu vá, de fato, usar um véu e comparecer a um altar em poucos dias, de propósito sem que eu explique muito a elas, como quem não fecha a porta para a possibilidade de querer me casar de fato um dia mas ao mesmo tempo sem que eu sinta que um sacramento a qualquer tempo pesaria mais do que a minha própria decisão), por alguns momentos aquilo se tornou pra mim um big deal. Uma ocasião de ajuste fino do ponteiro dos segundos da minha vida amorosa. Uma consciência muito nítida da escolha que eu tinha feito, com todas as imensas alegrias, desafios e tédio que eu já sabia desde sempre que ela poderia me causar.
Nunca tinha morado com alguém e por muitíssimas vezes pensei que nunca fosse morar com alguém, até que sim. Então, vendo se aproximar a grandeza daquela mudança drástica de rumo no cotidiano, gradualmente eu mudei o vocabulário para começar a dizer que meu namorado agora seria meu marido  primeiro brincando, depois a sério como quem estava brincando, depois finalmente me dando conta de que meu dito marido não estava fazendo o mesmo comigo. Talvez porque esposa é uma palavra muito mais feia do que marido. Talvez porque uma vez ele me chamou de "minha mulher" antes de cogitarmos morar juntos e eu ralhei por conta do pronome possessivo dizendo qualquer coisa como "eu não sou de ninguém não". Talvez por ele enxergar uma união estável ainda de um jeito diferente de um casamento, para o bem ou para o mal. Talvez porque ele concorde comigo que uma decisão pesa mais do que um sacramento ou uma nomenclatura. Talvez por uma influência decisiva, embora longínqua, de alguém que seja capaz de rir em público, em caixa alta e quase diretamente de uma foto com nossas escovas de dentes juntas apontadas para a câmera no dia da mudança (ai de nós, cometendo o crime hediondo de sermos monogâmicos, piegas e felizes assim). Ou talvez porque o tédio e as agruras podem vir de qualquer jeito e ainda antes quando se dá nome aos bois  e, se for mesmo isso, eu acho que ele pode ter razão mas não vou concordar já porque ainda estou me situando na sutil arte de ter (ou será que ainda não?) um marido, sendo de bom tom que permaneça otimista.
Fato é que, quando finalmente me casei (ou não, "mas é como se fosse"), passada uma semana, meu proclamado marido viajou por dez dias para a Europa. Sem mim. Coisa engraçada de acontecer. Por isso, que conste nos anais do nosso casamento: sim, ele fez uma lua de mel sem mim. De modo que amanhã, quinta-feira, é o único dia da semana em que é permitido descer o lixo reciclável nesse prédio e, pela segunda das três vezes em que o meu apartamento de meio-que-casada teve o lixo descido licitamente, eu vou fazer isso sozinha. Acho que descer o lixo do próprio apartamento é o exato oposto de uma lua de mel. E todas as tarefas domésticas, que foram pouquíssimas, foram inteiramente minhas nesses dez dias. Mas não é disso que se trata, embora também seja. Não falo só de lavar a roupa e a louça, fazer faxina e tirar o lixo, mas da vida doméstica inteira. Comer de determinado lado da bancada, dormir só com a ponta do cobertor de casal dobrada sobre mim em vez de deitar embaixo dele, escolher sozinha o lugar onde será guardada aquela travessa nova, aguar as plantas, abrir as portas e janelas para o sol entrar e o cheiro de gás sair. Tudo eu. Eu comigo.
Morar e estar sozinha na casa comum nestes dias me deu outra perspectiva. Se é verdade que o problema da vida conjugal é aprender a dominar o tédio, como nos ensinou Gabo, também é verdade que o tédio precisa ser dominado em qualquer circunstância e, se penso nisso, lembro que o convívio da gente com a gente mesmo pode ser a coisa mais difícil e tediosa de que se tem notícia. Por tantas vezes quis aprender a ser sozinha antes de mais nada que, agora, é como se houvesse sido forçada a estar sozinha um pouquinho mais, que é pra ver se aprendo de uma vez por todas que não controlo o fluxo da vida.
Estar sozinha num apartamento pensado por e para dois é dominar, mesmo sem querer, a solitude de um estado contemplativo e meio decepcionante para quem se dispôs à vida conjugal. Nestes dias a voz dos meus demônios internos ecoou solo pela casa, nos poucos momentos em que estive em casa, somada ao cochicho de um tanto considerável de saudade não só da condição autoproclamada de esposa, mas mais especialmente do que esses dias poderiam ter sido, não fosse a lua de mel inusitada do meu pretenso marido. 
Enquanto minhas amigas confessavam que surtariam bem antes de mim, eu esperei pacientemente para comprar a máquina de lavar, os quadros, as almofadas e o capacho da porta. Fui sentir só ontem, violentamente, a falta que o cumprimento do plano para o qual eu me preparei por meses podia fazer no meu juízo. Nos primeiros oito dias, meu cérebro negou a distância e a relevância desse intervalo com a naturalidade que eu esperaria receber se tivesse uma viagem sonhada e adiada há anos que aconteceu — vejo aqui a ironia com que sou tratada pelo roteiro do destino — imediatamente depois da nossa primeira semana morando juntos.
Preenchi o tempo com muitas compras e ganhei também presentes de amigos: o porta-detergente, o jogo americano, a jarra, a tábua de vidro. Detalhes pensados de véspera, com certa obsessão, para de alguma forma antecipar um cotidiano que por enquanto apenas se anuncia.
Mas quanto mais próximo se tornou o dia de (vamos chamar assim de propósito) "voltar a me casar", eu fui ficando apreensiva, nervosa e inquieta, num misto de ansiedade e certeza da impossibilidade de adiar mais tudo aquilo que eu sinto que era mesmo pra ter sido. Sem nunca ter me casado, amanhã volto a me casar. Eu e meus hormônios decidimos fazer disso outro big deal, seguido do primeiro. Embora eu não saiba o tempo que vou levar para voltar a tirar o pé do chão. Talvez por isso a apreensão. Desejo muito que seja, finalmente, doce. Que seja anti-monótono e imprevisível, mesmo quando em detrimento dos meus planos, amém. E sobretudo que eu não perca a capacidade de achar que a vida a dois pode sempre ser grande coisa.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Não cheira bem

Nasci numa cidade que fedia e isso era sinônimo de prosperidade, porque o cheiro vinha do tratamento dos resíduos de fécula de mandioca das lagoas de uma multinacional. Isso sempre fez determinados bairros da minha terra natal serem quase asfixiantes. A empresa empregava muita gente até fechar. Quando fechou foi um deus-nos-acuda de desemprego. Era a maior fonte de arrecadação de tributos municipais. Mas era, também, a principal fonte de um aroma quase constante de peido, no seu entorno e além. Como um chorume de uma comida muito específica esquecida há muitos dias. Mandioca, talvez. Um fedor só. Tudo muito característico e ao mesmo tempo tenebrosamente familiar. Para alguns, era cheiro de dinheiro. Ou de sustento.

Tenho uma coisa com cheiros e isso me atormenta a vida toda. Não é por acaso que as pessoas dizem que algo não cheira bem quando se supõe que há algo errado, mas não se consegue saber ainda o quê. Uma metáfora quase literal para dizer que um mau odor é uma coisa que impregna o ambiente de modo a não nos deixar concentrar em outra coisa quando, talvez, se soubéssemos desde o princípio e exatamente de onde o cheiro vem, ainda assim não saberíamos tão bem assim o que fazer a respeito. Titubearíamos, em nome do pão nosso de cada dia. Ou não teríamos estômago de revirar esse lixo de dias que agora escorre.

E embora a gente olhe, objetivamente, pra todos os lados, às vezes não sabe dizer o que há. Demora a encontrar o foco. Mas ele está lá. E se o primeiro contato com um cheiro ruim não nos deixa esquecer que algo está sujo, podre e vai mal ou precisa de atenção é porque a gente sabe ou intui, pelo faro. Meio bicho. Num segundo momento, porém, já é como se os pulmões estivessem mais acostumados com as partículas indigestas espalhadas pelo ar. Se for todo dia então, nem se fala.

Porque cheiro ruim dessensibiliza o olfato, sempre tive medo de acostumar. Sempre tive medo que as máscaras de segurança virassem adornos. Medo de precisar fechar os olhos mais que as narinas. Acho que, justamente porque sempre tive um medo muito profundo de feder, sempre estive muito atenta às minhas companhias. Com que cheiro sentiriam de mim à distância se eu andasse com quem não cheirava bem. Aquela preocupação social de ser contaminada pela impressão de uma cagada que pudesse vir a feder e eu não cometi.

Compreendi só adulta que merdas acontecem. A qualquer um. E que merdas fedem. Fedem muito. Algumas mais que outras. Mais que uma lagoa inteira de dejetos de amido. Compreendi, não sem torcer o nariz, que ninguém está escape de estar próximo do que fede muito, como esse cheiro do bairro Liberdade nos arredores do ginásio nos anos 2000 que estou sentindo agora e ainda assim precise ou deseje ou não veja nenhum horizonte de ar mais puro do que permanecer. Tentando refinar o olfato para as notas de prosperidade. Prendendo a respiração o quanto puder.

quinta-feira, 17 de março de 2022

The dark side

Desisti de pensar se sou generosa por altruísmo ou por ego. Eu gosto muito de ser boa. Entre outras coisas, porque isso me dá musculatura e crédito pra ser má quando preciso. Ou quando quero. Eu gosto de ser boa como gosto de mar: não sei explicar bem o motivo, eu só sinto que a vida faz mais sentido sendo boa, quando estou sendo. Mas sei que não sou boa o tempo todo. Aliás, longe disso. Eu sou feia também. Muito feia. Feia de doer. Eu penso mal das pessoas. E também penso bem. Luz e sombra. Eu gosto muito de fofoca no fim da festa, de dar resposta atravessada e venenosa, de ser franca o suficiente pra transparecer o meu pior. The dark side. E tudo bem. Porque sou complexa. Quebra-cabeça de zilhões de peças. Sobretudo porque ao ser complexa também vejo a complexidade dos outros, e aí me torno boa de novo. E me aceito controversa porque estou o tempo todo aceitando que tenho um histórico. Que já errei muito. Que preciso me redimir de mim mesma, comigo mesma. Sem reza. Sem satisfação. Sem nenhum moralismo. E se a verdade dos outros me parece absurda, ainda é uma verdade para os outros. Acho isso da maior bondade que há. Mas sei encher rápido os dedos de uma mão de gente a quem já fiz mal, por querer ou sem. E mesmo não me orgulhando disso, eu abraço as condições que eu tive para fazer as escolhas que já fiz, confiando que eram as melhores de todas naquele momento. E aí, você sabe: pensando assim eu sou boa de novo. Não tenho escapatória na bondade. É minha sina. Sou boa, muito boa, a melhor de todas. Dessa vez, comigo. Fiel à minha verdade e ao que há de agridoce em ser eu. Sou boa ao aceitar a imperfeição de todas as coisas, incluso de mim. Vejo isso pelo vão das minhas próprias rachaduras. Sou boa de entender as camadas do que me une a cada um que está ao meu redor. Boa de fazer quem está do lado crescer comigo. Boa de deixar pra lá. Boa de cativar sem que se entenda exatamente por quê, já que sou péssima. Já que sou boa em ser odiada, também. Açúcar e pimenta. Só vê bondade quem aguenta.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Bem menos ingênuos

Ele acaba de entrar às pressas aqui no laboratório sem enxergar o totem das senhas, sem se dar conta de que os atendentes estão atendendo, sem perceber ninguém aqui que espera. Interrompeu tudo ao redor com uma urgência absoluta e sem máscara pra perguntar em alto e bom som: "aqui faz exame de DNA?" 
Enquanto espero a cotonetada no nariz neste canto pouco isolado do resto da sala e guardo o espaço de duas cadeiras do meu coleguinha do lado - esse ruivo cabeludo que tosse bastante e não sei por que diabos mantém os óculos de sol na cara mesmo num ambiente fechado - eu começo a suspeitar que ele entrou aqui querendo o oposto de mim. Ele quer um positivo. Uma confirmação. E precisa ser logo, ou ele não vai mais aguentar a pata de elefante pesando no peito.
Gabriela, acho que esse cara quer muito ser o teu pai. Tua mãe entrou depois pela porta (depois de o atendente obrigar ele a voltar no carro pegar a máscara, depois de uns 15min e muitas sapateadas, depois de uma brava explicação de que a máscara tinha ficado pra trás porque te buscar na maternidade e fazer o teste logo era fundamental). Aí vem tua mãe. Recém parida. A cesárea por cicatrizar e um caminhar lento e doloroso. Tu nos braços. 
Ainda não te furaram a orelha, mas sei que tu és uma menina porque o cueiro que te envolve é cor de rosa. Suspeito que ainda não compraram fraldas suficientes pra semana, mas sei que o teu nome será Gabriela porque tua mãe, já com mais de 40, parece viver à moda da geração passada em todos os detalhes. Bebeu daquelas referências. E agora perfoma, junto com o teu pretenso pai, uma quase-tragédia corriqueira. Vocês estão aí sem perceber que ao redor todas as atenções se voltam pra ti e pra eles. Ou percebendo, mas tendo muito mais com que se preocupar que com a opinião do povo do laboratório onde farão o exame que talvez dite o rumo da tua vida.
A tua mãe está aérea, com aquela loucura hormonal que distorce a realidade. Acho que tentou parir sozinha mas o médico do plantão disse qualquer coisa sobre o cordão estar enrolado no teu pescoço e ela acreditou. Cortaram muitas camadas da barriga dela dois dias atrás pra te trazer ao mundo e, também por isso, ela agora tem um olhar parado, mórbido e vago de quem quer que uma parte do suplício que acompanhou vocês nos últimos meses finalmente acabe, o quanto antes.
Daqui a pouco outra mãe do recinto vai sugerir que o pessoal ceda a vocês uma sala apartada. É pra não pegares a peste tão nova, pois nada aqui soa seguro ultimamente. O mundo é mesmo um lugar muito inseguro, Gabi. Tem essa doença nova. Tem, por exemplo, esse maluco de óculos de sol do nosso lado, tossindo. Na verdade, tem doido por aí a dar com pau. Tem patricinha que não enxerga privilégio brincando de Peter Pan. Tem otário fazendo o cão arrependido e pondo a conta na mitomania, que é esse nome bonito que inventaram agora pra falta de escrúpulo. Tem gente cheirando porque se sente só. Tem mania de grandeza. Tem tonto falando mal de vacina. E tem nós, que podemos resistir a muito custo e não enlouquecer, nos agarrando no que realmente presta e deixando pra lá.
Queria te alertar e proteger dessas e outras coisas enquanto fico vidrada em ti, tão pequena. E nesta dinâmica toda. Na tua mãe que talvez tenha conhecido esse homem tarde demais, já com a regra atrasada, por isso sabe bem que esse capricho dele de vir até aqui é só um capricho. Ou que talvez torça um pouco para teres vindo prematura, contrariando o médico, os exames e a DPP e apesar dos 53cm e dos 3,2kg, pra fazer daquela traição dela menos real.
A verdade, porém, é que qualquer destes alertas seria só uma projeção da minha história aplicada sobre ti. A vida tem gente fazendo DNA e teste de covid no mesmo lugar o tempo inteiro. E o que há de mais bonito é sempre tudo que haverá depois desse momento. Então tem um tanto de otimismo no que eu vejo daqui: tem um cara que parece querer muito ser o teu pai tentando te embalar sem jeito enquanto a tua mãe se levanta bem devagar.
Vou soprar ao vento este otimismo, pra que ele te alcance. Pra que o resto você descubra com o mínimo de dor além da picada da enfermeira que logo vai coletar a amostra de sangue do teu corpinho pequeno.
Quando eu sair daqui vou me lembrar que todo amor carrega uma dose de culpa. Uma culpa por tudo que o precedeu. Pelo que nem foi. Uma culpa de existir em condições que fogem do nosso controle. Aquela culpa de não merecer tanto. E aquela outra culpa de perder a razão de vez em quando. Uma culpa de se saber bem menos ingênuos do que gostaríamos. E, ainda assim, desejar saber. E pagar pra ver. E amar.