domingo, 31 de março de 2019

De carne, de queijo ou de fruta.

Estou interessada no que acontecerá depois que eu te invadir. Eu, para variar, não admito que agora venha o tédio. Quem é você depois que eu meter o pé na porta? E por detrás desta cortina. Quem é você nu de toda esta parafernalha tecnológica e este relógio enorme no pulso? Se eu limpar até o caroço desse teu cinismo e eliminá-lo da cena. Depois de eu atravessar a beleza, a ilusão e o consumismo dos primeiros atos. Depois que não te sobrar nenhuma gota do benefício da dúvida. Quando for depois de eu me dar conta de que não és um graveto. O que a tua ilha me reserva? O que tem no fundo da tua gaveta guardado pra mim? Serás potente o suficiente para bancar a segunda rodada deste jogo? Eu quero saber se você vai sustentar a panca. Eu pago e dobro a aposta para ver a próxima jogada. Vai ser lirismo, calmaria, uma viagem a dois, o deslumbramento da experiência ou o meu gozo no ato? Deixa eu ver um pouco mais de perto se você tem futuro. Se vai me fazer soltar um foguete por dia pela tua chegada. Se quem perde sou eu se a gente não der pé, ou se não. Eu acho melhor você ter guardado um pedaço de carne, de queijo ou de fruta para o final deste prato, porque já sublimei tudo o mais que havia para resolver antes do melhor chegar.

sexta-feira, 22 de março de 2019

Anônimo


No oitavo dia, fez-se o vácuo. Um hiato que denunciava que eu não exercia mais nenhum poder sobre a minha criação. Senti um gosto estranho na boca e uma ressaca nos músculos pélvicos. Deve ser assim parir. Devolver para o mundo o que nunca deixou de ser dele, com todas as angústias e incertezas do fim da gestação. Você agora era um cara totalmente diferente, finalmente dissociado de qualquer influência minha. O que era estranho mas bonito, e pensando bem eu bem que podia colocar este episódio no meu portfólio como a magnum opus da porra toda: a vez em que eu finalmente influí no conserto de um homem, ainda que não tenha desfrutado disto.
Depois de irmos do céu para a terra e depois de eu reinventar a sua humanidade, bem no fim você desgarrou de mim. Era de se esperar. Partiu-se um cordão que tecemos por meses com agulhas grossas, e eu contemplei o que havíamos sido um para o outro com todo o vazio e o oco que agora havia, feito abismo, entre nós. Você amou de novo outra pessoa quando eu ainda era incapaz de lidar com o entulho que tinha ficado e ia se amontoando. E você nem me viu enquanto cruzou esta ponte, descalço e cego. Mas eu não vou dizer que era cedo. Não guardei desejos maléficos para depois do fim. Gastei todos neste processo. Para te ser franca, se eu pudesse, teria me desfeito de você muito antes. Antes eu só não podia.
Num exercício constelatório, pus em fila todos os meus personagens preferidos que morreram nos livros e nos filmes, sem que por isso eu ou a história houvéssemos acabado junto ou perdido o sentido. E de repente você apareceu metido entre eles. Um rosto familiar no meio dos que se foram para nunca mais. Atrás de você uma moça. Com uns cabelos cacheados e uma coisa carnavalesca em formato de coração na cabeça, deusa do amor guiando o teu caminho por outro caminho.
Francamente, o oitavo dia era o tempo perfeito. Não havia mais o que criar, recriar ou contemplar na minha cabeça. Só fui capaz de enxergar ali. Com a memória em pedaços. Vasculhei em busca de resiliência no armário, porque ainda precisava. Era um trapo velho esquecido num canto. Mas ainda me servia sob medida. Vesti. Funcionou. Não doía mais. Não fazia mais sentido nenhum estender as mãos. Era até bonito ver que eu tinha te parido melhor do que era antes, mesmo que ninguém visse nunca a minha assinatura.
Quando compreendi que a arte é maior que seu autor, te larguei anônimo no mundo e pude deixar de sentir o amargo no fundo da língua. Relaxei os músculos e soube que já era tempo de aceitar que nossos corpos haviam expelido cada pedaço sólido um do outro. Até os que tínhamos trancados no meio dos dentes, fazendo peso nas ancas, cravados como espinho entre os tecidos moles. Agora sei que eu não preciso mais fazer força. Que este ouriço está parido. E que o problema maior da ignorância é que ela é cheia de lacunas que vão se completando com a nossa imaginação, de qualquer forma. E que a nossa imaginação se expande. Como este buraco negro. Em direção ao vácuo do oitavo dia. Para o nada. Para um recanto do universo ao qual ninguém nunca teve acesso. Para nunca mais.

terça-feira, 19 de março de 2019

Dois coelhos

Nossos joelhos estão roxos por baixo das calças e só nós sabemos o por quê. É de uma intimidade muito maior do que o sexo. Quando eu olho mais para a tua boca do que para os teus cabelos, sei que estou perdida. E você talvez suspeite, porque me olha do extremo oposto do banco de trás e eu fico calma por sete segundos. Sei que estou fazendo tipo: o seu ou algum, qualquer que seja. Nem por isso a minha calma é falsa. Não é que você saiba de cor o caminho, mas você sabe fazer parecer que sim. Que tudo dará certo, que há tempo para tudo, que as coisas são como são. Simples. E aí eu te espremo e não sai nada. Eu retorço você como à metade de um limão ou de uma laranja e não sai uma gota. Será plástico? Está tudo bem. Está tudo bem, porque talvez a tua falta de suco ou de seiva me traga algum equilíbrio na busca. E a tua mão entrelaça na minha olhando as unhas miúdas e não faço a mais vaga ideia se você suspeita ou não que a do anelar da mão esquerda é postiça. Botei anteontem e torci para que ninguém percebesse. Você percebe? Não consigo adivinhar se isto é importante, porque afinal eu te espremo e ainda não sai nada. Eu conheço os animais de estimação que frequentam a casa, e aquele ímã da geladeira que parece um moai mas veio de outro lugar que não a Ilha de Páscoa, mas eu não quero voltar ao tema. Não quero me demorar, embora perceba que agora eu posso, se quiser. Que é bem possível que você venha a querer. Que querer o outro de novo, pelo menos mais uma vez, é o contato mais íntimo que se pode estabelecer. Os gelos se quebram sobre a pia da cozinha e fazem barulho. Ninguém acorda. Ninguém aparece. Pisca uma luz verde naquilo no canto da sala, que eu nunca sei se é um sensor de alarme ou uma câmera. A cozinha fica suspensa nesta possibilidade que agora somos eu e você. Compartilharemos algum destino? E, afinal, isso importa? Se os seus beijos são grandes, e nossos joelhos estão roxos por baixo das calças. E se ninguém mais suspeita que estamos aqui e algo em nós nos complementa. A gente ainda não tem certeza, mas tenta. Aproveita a intimidade. A intimidade que é este fio laranja bordado cuja cor persiste depois de lavar, e que convém admirar com cautela. Não sei o que a vida me dá quando me dá você de novo, tudo tão fácil e calmo, mas sei que quando ela nos dá dois coelhos, às vezes é melhor deixá-los soltos na garagem para ver o que acontece.

Chopin

Eu me lembro da primeira vez que vi um homem tocar violino. A mão direita subia e descia como a de um cirurgião habilidoso, com trejeitos muito típicos e uns óculos ovalados mirando o instrumento de canto. O pescoço retorcido e uma feição de êxtase e contentamento com a própria produção artística que só tem quem tem muita certeza do que faz. Eu acho até que ele chegou a fechar os olhos por alguns momentos, para sentir o que estava fazendo. A cena era linda. Já era o fim do inverno mas fazia frio e eu tinha me ajeitado na arquibancada e esquecido do celular e da hora e do desconforto, e só ouvia aquele som feito por aquele homem, encarando-o com um espanto na medida em que o concerto avançava. Como se fosse uma novidade que o som do violino saísse dali (de um violino tocando uma pessoa). Como se houvesse algum outro jeito ou espaço pequeno para que o som saísse entre as cordas e as cerdas. Como se. Como se. Como se. Pra mim, como se tudo fosse sempre um simulacro do que na verdade é. Lembro de suar um pouco na palma das mãos e na dobra dos joelhos. De nervosa. As pupilas dilatando. Um cheiro de hormônio saindo dos poros. Estava apaixonada! Devo ter ficado corada porque lembro de não conseguir, definitivamente não conseguir deslançar a mirada dele por duas horas ou menos, apesar de todos os outros instrumentos de corda que formavam um semicírculo ao redor e de toda a plateia. Enxergar o violinista em seu mister produziu em mim efeitos devastadores, e pouco importa que não tenham sido inéditos. Nunca mais pude ouvir música clássica sem lembrar daquele dia. Jamais pude pronunciar Chopin do jeito errado depois daquele episódio em que estive obcecada em puro amor e franco interesse romântico numa figura de quem não ouvi mais do que as explicações entre o prelúdio de um excerto e outro. Lembro de sair do teatro improvisado com as mãos enfiadas nos bolsos, envergonhada de que alguém pudesse reparar quanta atenção à apresentação eu havia dedicado. Desde então devoro tantos textos de psicanálise quanto me são possíveis e busco - é bem verdade, sem muito progresso - investigar o magnetismo que aquilo provocou em mim. Vou buscando um autor que já tenha se debruçado sobre o tema. Que explique o meu fascínio sobre o intangível e repasse a receita para voltá-lo - como um olhar - para dentro. Que dê a lição de que o outro não existe para que eu sacie nele o meu desejo por lirismo. Que diga que a satisfação dos próprios desejos não é coisa que se delegue.
Eu me lembro do quanto me custou, muito depois, perceber que não amei o violinista naquele fim de tarde, mas apenas a ponte entre nós formada pela arte: que, afinal, não leva a lugares muito distantes de mim.

sábado, 9 de março de 2019

Take me to church


Na quarta de cinzas, rezei para desquerer a nossa química, desenviar aquela mensagem e dessentir a correnteza desse frio na barriga me levando de novo para o centro do furacão, mesmo sabendo que certos verbos e feitiços não admitem ser desfeitos. E nem combina comigo tentar, porque sei que eu não posso contra a força avassaladora da ação e de como me sinto quando encontro Deus nos detalhes. Dobrei os braços e sobrepus as mãos torcendo para que a luz do mesmo sol que te guiou pelas esquinas de Los Angeles em direção à tua melhor epifania também me ensinasse a lidar com o carnaval do nosso encontro. Com o que viesse ou não viesse depois.
Você ainda não sabe, mas eu só acredito nesse Deus de coincidências. Arquitetadas coincidências, como a nossa. Eu passo meses cega, e de repente sou capaz de enxergá-lo na areia, na cor do céu e nos pássaros do fim de tarde. Na figura de capuz das tuas costas. No pé magro que carimba pegadas no mundo. Naquela mesa para quatro em que só havia nós. No cachorro preto lustroso abanando o rabo. Eu só congrego na fé dos encontros marcados. Quase posso sentir palpável girando no ar o milagre da sincronicidade quando descubro que você também vive querendo saber quanto do mundo é acaso e o quanto é livre-arbítrio.
Ensina-me com bondade e paciência sobre a existência de um passo adiante do karma yoga. Sou toda ouvidos. Não há poro meu que não implore por semelhante aprendizado. Ensina-me a conversar sobre os livros que eu ainda não li, e a lê-los. A imaginar sequoias com uivos de vento em lugares magnânimos em que eu nunca estive. E, de repente, a estar um pouco neles pelo brilho nos teus olhos. Faça as contas: não é pedir demais. A gente sabe que os miseráveis da mesa ao lado jamais suspeitarão como é sentir nada semelhante. Que não são capazes de imaginar como o mundo está girando aqui agora. Que nem a sua mãe conhece estes pequenos defeitos na voltinha do teu nariz que eu acabei de descobrir e decorar sem fazer esforço nenhum. A gente não precisa dizer em voz alta que essa rachadura na minha xícara foi feita para caber a cordinha do chá. A gente sabe. De tão intuitivo, é anti-intuitivo. Você sabe, você sabe e eu tenho certeza de que só encontros assim nos curam de nós e de nossas solidões.
Ensina-me a deixar fluir com toda a força. Aprende comigo a deixar correr, como correm a vida nos trilhos e o sangue nas veias. Atua como este poderoso instrumento. Abre as portas. Deixa atravessar a Lagoa, e o mar, e o mundo. E enxerga a virtude nessa minha obsessão. Conserva com algum espanto essa tua tez de quem apetita que Nietzsche regresse. Ensina-me a ser eu como eu venho querendo ser há muito e nem me percebia. Caminha comigo. Mancha o dínamo do meu entusiasmo com a tinta da tua pele, feito combustível. Take me to church. Ou só ilumina a porta de entrada. Em ti aceito, de novo, sem saber por quê, qualquer coisa entre o profano e o sagrado.