domingo, 2 de agosto de 2020

Um copo d'água ou dois

Uma parte importante do que eu sei sobre mim saiu da boca dos meus amigos. Dou a cada um o direito de tentarem me explicar pra mim mesma por me observarem de perto e, com que sorte, na maioria das vezes com muito mais delicadeza do que me observo. Às vezes discordo deles, o que acho até bastante natural, mas ainda assim guardo o que ouvi ou li para pensar depois, como que com um respeito pelo fato de terem observado algo atentamente e se disposto a me dizer, para o bem ou como crítica, já que o que me soa como crítica também pode significar para o bem, no acerto final das contas e balanços mentais que serão realizados depois.
Tempo atrás ouvi um deles dizer que eu sou "essa pessoa que adora museus e galerias de arte em viagens". Desde então, e isso já tem alguns anos, não pude mais me esquecer que sou mesmo uma pessoa que adora museus. Na verdade, desde ouvir a constatação não pude mais me esquecer que adoro o que eu não entendo, que adoro o que veio antes de mim, que adoro a beleza trancada a sete chaves e de portas abertas e entrada franca desses lugares, que adoro coisas aparentemente negligenciadas como Getúlio Vargas escolhendo justo aquele pijama, que devia ser o seu preferido, para ficar manchado de sangue dentro de uma redoma de vidro. É nisso que me detenho quando entro num museu ou numa galeria de arte. E acho que meus amigos sabem: adoro os pequenos mistérios do mundo. Adoro o tempo em que as pessoas se dedicavam a pintar e esculpir e escrever coisas que expressassem o que sentiam ou o que queriam dizer, embora talvez isso nem seja propriamente um tempo, e sim um estado de espírito. Adoro este estado de espírito que a rotina consegue esmagar se não estou em uma viagem, mas uma viagem sabe reacender. E adoro, mais do que todas as outras coisas que já disse até aqui, que este seja um traço distinto da minha personalidade, custe o que me custe.
Por isso quando entro num museu, numa igreja antiga ou numa galeria de arte faço-o sempre de maneira respeitosa, com o coração aberto, sempre com o pé direito, sempre ansiosa pra que aquilo converse comigo em tom de confidência. Pra que eu saiba ouvir o que aquilo tem pra me dizer como eu ouço os meus amigos. Embora saiba que ao fazê-lo - digo, ao entrar num museu ou numa galeria de arte ou ouvindo a um amigo falar qualquer coisa assim sobre mim - eu corra sempre o risco de ouvir algo como um disparo que me faz correr, em círculos, ao mesmo tempo fugindo e perseguindo a mim mesma enquanto me relaciono com o que está fora, que é o mundo, que veio antes, que me percebe, que eventualmente se transformará novamente no que o outro enxerga sobre mim e me diz. Também não entendo nada disso muito bem ou com nitidez o bastante, mas é a melhor metáfora que me ocorre sobre me deter tanto em mim, nos pensamentos e quando escrevo. Por isso escrevo.
Estou mais perdida do que nunca. Os meus amigos estão vendo, mas ainda me enxergam com gentileza, o que é um privilégio. Acho que eles também estão perdidos. E acho que a gentileza com que os enxergo retroalimenta nossa amizade. Queria saber dizer sobre eles coisas tão bonitas como: vocês são do tipo que curte museus e galerias de arte em viagens, ou coisas do gênero. Queria ter a capacidade de formular observações que acendessem neles uma certeza boa sobre o que são e o que representam, ou pelo menos como eu os enxergo. Mas só o que tenho conseguido fazer é espremer um pouco as situações para fazer sair delas uma gota de otimismo. Ou qualquer sinal de que, daqui por diante, tende a melhorar. Acho que a maior sorte que já tive são as pessoas que atraí para perto sem perceber que o fazia. As que ficaram. Eu gosto muito de quem ficou. Os olhos e as virtudes dos meus amigos validam o que existe de bom em mim, e isso é raro. É possível que tê-los e mantê-los perto constitua a parte mais certa e mais doce da minha capacidade de ser amada. De poder às vezes me cansar de correr. Ter amigos como os meus é ter certeza de que, no meio das minhas maratonas, eu vou receber um copo d'água ou dois.

Nenhum comentário: