domingo, 14 de junho de 2020

Depois do caos a lucidez

De repente, sempre me invade a lucidez que é precedida de um grande desatino. Chega sem aviso esse momento de por tudo de volta no lugar. Prendo os cabelos num coque e estalo o pescoço, disposta. Começo sempre pela louça. Com os guardanapos de dentro dos pratos, tiro cuidadosamente os restos de comida direto na lixeira da pia, descartando as sujeiras maiores. Aproveito as mãos ainda secas e dou play num álbum deprê para dar trilha sonora à trama. Mas não consigo chorar, apesar da insistência dramática e conhecida nessa necessidade. É assim que descubro que chegou de novo a inadiável ocasião de me reorganizar: me vem sem aviso uma praticidade serena que ocupa o corpo e desocupa a cabeça. Que me faz limpar cada canto da casa para que o lado de fora reflita o de dentro de um jeito limpo e claro, e vice-versa.
Domingo é o dia ideal para uma faxina porque é o primeiro dia da semana, embora nos esqueçamos sempre disso, envoltos numa nuvem de ressaca ou de melancolia porque trabalhamos no dia seguinte. Por sorte, hoje é um domingo completamente sóbrio. Portanto um recomeço. Aproveito para agrupar todos os pratos por tamanho, no meu método. E os talheres já estão mesmo juntos e na água. Adio sempre o momento, mas conservo alguns hábitos mecânicos que facilitam o início da limpeza, quando a vontade chega. Porque sei que, na maioria das vezes, a única parte difícil de uma faxina é começá-la.
Ensaboo primeiro as taças. Fatalmente me lembro de cada gole de vinho. E me perguntando se desejo mais consumir as coisas ou ser consumida por elas, lembro também da mancha no banquinho vintage, da qual não vou me livrar tão cedo. Mas sei que não se limpa nada, dentro ou fora, sem essa disposição de tocar no que está sujo. E há também o que é novo: tiro as etiquetas das duas taças de cima da bancada porque quero poder começar a usá-las logo. Lembro que fazem par com a maior e sorrio, me dando conta de que talvez o que é antigo se quebre para dar lugar a coisa melhor.
Então fervo uma água. E vou ensaboando e enxaguando cada copo, depois cada talher, depois cada prato, depois a panela de cima do fogão e o escorredor. Conheço os procedimentos de uma assepsia completa, até secar a última gota de água de cima da pia, que agora reluz. E aí é a vez da roupa. É mesmo curioso que eu faça sempre acontecer, sem pensar muito, para sujar tudo isso dia após dia, e na sequência me venha um momento como este domingo, instintivo e fatal, no qual eu tenha de lidar com a minha própria bagunça.
Lá fora, já há dias, está fazendo um tempo feio e muito úmido pra quem quer lavar a roupa. Por isso, eu sei que vai ser difícil que essas peças sequem direito. Mas sei que hoje não vou conseguir sossegar no sofá enquanto não me livrar desse amontoado de camisas e jeans dentro de um saco plástico no chão da lavação. Além disso, daqui a pouco não teremos mais panos de louça ou toalhas de banho para usar. Então insisto, apesar de toda adversidade. Sei que é preciso um pouco de coragem e muito de disposição se a gente quer ter tudo limpo de novo.
Enquanto as peças, submersas, giram pra lá e pra cá mecanicamente, eu tiro o lixo do banheiro. Depois começo a encontrar o que passou da validade dentro da geladeira. Que coisa genial é identificar prazos de validade. Girar bem o produto, depois abrir a tampa, aspirar fundo e saber que é justamente o cheiro que denuncia que a intuição estampada no rótulo estava certa. Vou para a sacada tomar um ar depois do desespero que me dá essa epifania, em paralelo. E qual não é a minha surpresa: depois de dias sem a minha presença, a pequena horta do apartamento agora tem ervas daninhas. Arranco logo os trevos de três folhas, que são abundantes, e outras centenas de outra espécie de plantinha que eu não plantei ali. Em outros dias, eu me demoraria na ideia poética de que os passarinhos podem ter trazido estas sementes para germinarem perto de mim e que por isso é lindo deixá-las viver. Mas não hoje. Hoje é dia de faxina.
E então é hora de abrir as portas do armário, porque a roupa molhada só vai poder ir pro varal se a roupa antiga vier para o guarda-roupa. Dobro e separo todas as peças, e algumas delas terei que passar novamente pelo amaciante, por causa do mau tempo. Detida neste pensamento, me encaminho para guardar as calcinhas e meias. E vejo correr sobre as que já estão guardadas uma barata. O horror. O horror. Não há nada mais significativo acerca da necessidade de uma faxina completa do que se deparar com uma barata num lugar em que ela não deveria estar. Se é que as baratas deveriam estar em algum lugar.
Com esforço e muita batalha envolvida, mato a infeliz com duas chineladas. O nojo ainda é imenso, de qualquer modo, enquanto removo o corpo caído ao lado do tapete com um papel higiênico e atiro privada abaixo. Descarga demorada. Ainda estou incrédula. Corro para a cozinha. Vou tirar cada calcinha e sutiã da gaveta com o pegador de salada de cabo mais comprido que tiver, para o caso de haver irmãs. Peça por peça, tudo para a máquina de lavar. Era filha única. Encontro no fundo da gaveta um sabonete de kiwi muito antigo, que estava ali justamente pra perfumar o lugar, mas me ocorre que pode ter sido ele quem atraiu o monstrinho de muitas patas. Direto para a lixeira. E depois um pano com álcool, muitos panos e muito álcool, dedetizando tudo, em cada prateleira e em cada vão pelo qual outro inseto semelhantemente hostil possa transitar. É engraçado que às vezes a gente tenha que se deparar com um extremo tão grande quanto uma barata para se por atrás da causa de sua chegada. Como é que a gente faz tanta sujeira no piloto automático? Como é que a gente desorganiza a louça, a roupa, o armário e a vida, tudo sem notar? É normal, mas ainda é estranho.
Depois de tudo um banho quente e demorado, que é para ter certeza que também eu estou limpa depois da empreitada e da ojeriza. Hoje foi dia de faxina. Hoje é domingo e eu não vi - e nem quero ver - o vermelho ao redor de Marte no céu. Tudo está em paz. Hoje não há força alguma no que podia ter sido, só no que eu gostaria que fosse e no que foi. Hoje descobri o que eu vinha encobrindo. Hoje não há interpretações desmedidas no aperto da mão causado por um espasmo do sono. Hoje estou aceitando meu caos sem glamourizá-lo. Pelo contrário, hoje eu quis por fim a ele de um jeito decisivo. Hoje estamos limpas, a casa e eu. Estamos nítidas. Estamos lúcidas. Diria livres. De repente, sempre me invade a lucidez que é precedida de um grande desatino.

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