terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Dama e vagabundo

Hoje tomei banho no escuro. Aprendi com um amigo, e guardei o truque para momentos críticos. Eu precisava tirar o cheiro de salgadinho barato de baixo das unhas. Quando terminei, desistindo de conseguir, virei para desligar o registro e vi um ponto claro do tamanho de uma moeda na parede. Shampoo, só pode. É muito difícil acertar os frascos no escuro. Joguei água com a mão. Não saía. Joguei mais água com a mão. Deve ser shampoo do banho passado. Depois, quando aproximei a mão pela terceira vez, sumiu. Vi que era um raio de luz. Era a luz do poste refletindo através da janela, mais claro em um único lugar. Sorri. Quando a gente percebe a luz, não tem mais como achar que é shampoo. Mas e quando a gente não percebe? Quantas centenas de vezes jogaremos água em cima da luz achando que é shampoo que vai escorrer parede abaixo até o ralo, até que a descoberta pareça óbvia demais? Quantas vezes a vida vai nos permitir repetir um padrão exaustivamente? Quando vou me dar conta do que este arranjo tão inesperado tem para me ensinar? Qual a menor distância entre o que a gente já foi e sofreu sendo e o que a gente quer ser, depois, para não incorrer no mesmo erro? Para superar. Para dar o próximo passo. Qual é o ponto que liga a dama ao vagabundo, meu senhor? E o que é uma dama? E o que representa para a dama um vagabundo. E o que representa para a dama o vagabundo deixar muito claro que gosta e não quer deixar de ser vagabundo. Esta reflexão é sobre poder ou sobre liberdade? Preciso aprender a parar ou a parar de resistir? Quanto tempo vai levar pras gêmeas da minha personalidade fazerem as pazes, depois que se partiram? As duas puxam o cabo de guerra do excesso na direção contrária só pra ver quem vence. Perco eu. Porque ou me entrego para a arte - e fico louca - ou vivo lentificada pelo que rende, rangendo os dentes. Esse barulho de concha zunindo no ouvido esquerdo, que não sara em silêncio. O preço do equilíbrio é o equilibrismo. Eu sou um bardo morrendo, desidratado, numa terra em que ninguém mais canta. Tristeza que não deságua. Que não deságua mais. Poeira. Uma de mim é iludida pelo mar, a outra desiludida com a busca pelo horizonte. Não há nada que não soe mal entre ser iludida ou desiludida. Ilusionismo é entretenimento. Sempre acaba mal, a menos que ninguém perceba. Quanto tempo vai levar pra essa ressaca depois de cada momento feliz passar? Uma de mim disseca cada não e a outra tenta deixar passar com muita violência. Não se respeita. Não respeita a própria dor. Finge. Uiva pra um canto qualquer que não seja a lua. Uma pertence à outra. Uma não existiria sem a outra. Uma comprou um carro e a outra vendeu a alma. A pior não encara ninguém nos olhos e a melhorzinha prefere sempre o que imagina. Uma quer alguém que se curve às suas regras e a outra alguém que viva o que ela não tem coragem. Esse é sobre mim e vocês. Nenhuma das duas existiria tão inteiramente se a gente não tivesse me quebrado ao meio.