quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Elementar

Embora ame a ventania de antes da chuva, andando contra muito vento eu não respiro direito. Nem só pela concentração que é exigida do corpo, que precisa impor seus 52kg de ossos, carnes, anseios e frustrações contra as forças arrebatadoras da natureza e parece sempre que não vai conseguir, demorado como esta frase, mas também pelo excesso de informação e estímulo em toda parte da derme que, penso, deve causar algum bloqueio às minhas narinas. Só lembrar da circunstância já me faz faltar o fôlego. O elemento ar transita ligeiro e com tanta violência nas esquinas do mundo nessas ocasiões que, posso imaginar, por isso mesmo não encontra o caminho das minhas vias aéreas.
Que sensação confusa quando o excesso de quem me traz vida também é capaz de me sufocar.

Dizem sempre, sobre o risco de despressurização e a falta de ar: ponha primeiro a sua máscara e depois se preocupe com o passageiro ao seu lado. Que bom que nos ensinam todo voo sobre a dose necessária de egoísmo para a sobrevivência. Só esqueceram de nos contar que, num desastre aéreo, apenas se pode salvar alguém da falta de oxigênio, jamais de uma insuficiência respiratória voluntária.

É importante saber por a máscara. O elementar é querer respirar.
O atrito de um corpo contra o vento torna a respiração muito mais difícil.
O atrito do ideal contra a vontade torna a sobrevivência de qualquer amor impossível.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Festa da alteridade

Hoje ficou claro até mais tarde. É o primeiro dia útil do horário de verão. Nesta brincadeira, perdi uma hora em São Paulo. Mas, para ser justa, também ganhei o feriado inteiro. Ganhei o espanto aliceano (beirando cinematográfico) da maravilha de encontrar o terraço do Centro Cultural pela primeira vez. Coisa de uma magnitude rara até para mim, que me deslumbro fácil. A liberdade distópica do homem nu da Nossacasa, balançando ao som de Transa do Caetano como se todo mundo nascesse nu e de uma nudez. O cheiro poluído da maior metrópole da América Latina que lentamente confunde o olfato, uma espécie de droga queimando debaixo de sol quente, inebriando e viciando qualquer transeunte. A Catedral da Sé, de fora pontuda e de dentro altíssima, anunciando que vai tardar para que o mundo se livre da culpa cristã. Ganhei ainda, não me permito esquecer, a garoa fina batendo na nuca, depois de me deparar com a primeira rua arborizada do Centro ziguezagueando antes de chegar à Biblioteca Mário de Andrade. E depois batendo na calçada geométrica janela da padoca afora. Brilhando no asfalto do fim do dia com as luzes dos faróis e penetrando afrontosa no terno dos desafortunados amantes de leis e cifras. Como eu. Deu vontade de contar a eles em tom de segredo, como uma boa amiga, quanta vida eu vi das portas do escritório pra fora. Tanta. Uma vida pulsante. Multifacetada. Nanaíra. Há tantos mundos para redesbravar na selva de pedra! Tanta Luz, como na estação. Tantos mundos quanto no resto do mundo. Não conheci nem metade do que se ofereceu para mim num fim de semana prolongado. São Paulo é mesmo uma festa da alteridade. Sonora e anti-intuitiva como a palavra pi-na-co-te-ca. Acolhe qualquer um. É bem verdade, e não deixo de lembrar, a capital paulista nem sempre tem olhos caridosos. Que o diga a exposição do Sesc 24 de Maio. E então, de quando em quando, caminhando nos vãos entre os arranha-céus mais antigos do país, aos quais chamamos ruas de São Paulo, a miséria deste mesmo país nos olhará no fundo dos olhos de turista e comunicará no idioma universal de uma mão estendida que ainda há muito para caminhar. E tocará o coração, tão piegas e conservador quanto foi forjado no interior do Sul, para que esqueça a indiferença costumeira do deparar-se com as misérias cotidianas e comungue o pastel de feira com um homem de pé descalço e barba por fazer. Honrando sozinha a memória das lutas que já lutaram antes de nós, sejamos gratos por elas ou não. O pedinte compra uma Coca-Cola com as próprias moedas e eu sorrio de contente, fazendo jus aos privilégios que me trouxeram ali. Quem dera todo mundo tivesse este luxo e esta dignidade. Com sorte, no meu domingo sempre haverá pastel de feira. E Coca-Cola com as próprias moedas. Quem dera São Paulo integrasse tão bem as almas humanas quanto integra as linhas coloridas do metrô. Quem dera o contraste não nos tirasse a sensibilidade mais que o necessário para uma vida sem muito sofrimento. Mas em São Paulo todo mundo é estranho. Mais estranho ainda é perceber que isto pode ser uma bênção e um alívio. Eleva a solidão da condição humana à enésima potência, e ao mesmo tempo também lembra que a vida, como alertou Vinicius, pode mesmo ser a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida. Em São Paulo, procura-se um rosto conhecido em cada desconhecido. Nem por isso a cidade deixa de te acolher à sua maneira. Nesse particular, me disse muito a antiguidade boho da Balsa, onde todo mundo pode se sentir moderno e cool, por exemplo. Afinal, que sabemos nós de quem será vanguarda quando o tempo do futuro chegar!? Deve ser por isso que São Paulo não reprova as vestes de ninguém. Uma espécie de respeito ao tempo vindouro, que anda rápido por seus trilhos, nunca dorme e não bota reparo na juventude com ar de censura. E eu, que ainda não tenho a ambição de morar em São Paulo depois desta visita, ganhei a bandeira hasteada no alto do prédio famoso, que me foge o nome, finalmente entendendo a paixão instantânea do interiorano sonhador e recém-chegado. Por mais provincianos que nos sintamos, São Paulo é imensa e cortante e penetra o imaginário da gente com a certeza de que nenhum lugar jamais será inteiramente conhecido de passagem. Sei porque, por quatro dias, eu também quis me confundir à cidade grande, camuflada, e crescer todos os dias, para todos os lados. Quem sabe eu possa. Quem sabe só de regresso. Para me valer de uma última referência, para um celebrar de bodas da razão com o coração, como ensinou Galeano.

Finalmente escurece. Para ser franca tanto quanto possível, agora odeio um pouco São Paulo. Por me dar a medida de minha pequeneza de nascença. Por ser tão distante. Por me deixar na boca um gosto de manjericão que não vinga no nosso quintal. Por não fazer pesar contra minhas costas o fardo da fermata que finca o acorde na linha reta, ajudando a gravidade.

Chorei um pouco às 17h em ponto, ouvindo a música nos fones quando o avião começou a manobra para decolar de volta para casa. Lembrei que tinha perdido uma hora inteira de vida no tempo do relógio. E que São Paulo seria capaz de provocar uma saudade flutuante que só quem se permite pode sentir.

Como foi São Paulo? São Paulo, tantos mil pés lá embaixo, continua sendo. Transformada, hei de continuar também.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

De novo isso

"De novo isso? Tu não tens mais sossego. Parece até que tá desesperada pra achar algo no mundo!"
A reação da minha mãe à próxima viagem, exatamente com estas palavras meio hostis, meio preocupadas, primeiro me enfureceu. Depois me fez pensar. Por fim me fez rir.

Porque pensei, primeiro, que dizia mais sobre ela do que sobre mim.

Sou filha única. Esta é a biografia do meu Twitter há meses e a minha biografia de vida há duas dúzias de anos, pelo menos. Fui mimada, embora negue. Superprotegida, embora às vezes não pareça. E, por necessidade, desenvolvi uma independência com as coisas práticas da vida (como arrumar emprego, organizar as finanças e fazer amigos) que nem todo filho único tem. Mas há um elo de dependência emocional da aprovação dos meus pais do qual dificilmente me desvencilharei por completo, porque me ancora. Não sei se isso é por si só bom ou ruim. Há dias em que quero cantar a eles Filho Único, do Erasmo Carlos, sem tirar nem por. Inclusa a parte "Você já fez a sua parte, me pondo no mundo / Que agora é meu dono, mãe, e nos seus planos não está você" - embora meio dura demais, esta última. Noutros, preciso do colo da velha e do velho, nem que seja com um aceno que assente com a cabeça num segundo. Um reforço positivo. Uma afirmação de que estou no caminho certo e aprovado pelo Ministério da Saúde dos Pais de Filhos Únicos. E não há meio melhor de conseguir essa aprovação do que seguir à risca a cartilha do jugo paterno e materno, renunciando às próprias vontades.
As lições dos meus pais, preciso admitir, já me livraram de centenas de enrascadas. Mas a verdade é que tenho me percebido mais independente do que antes, em coisas pequenas e grandes. Como se eles tivessem lapidado a matéria bruta e coubesse a mim - só a mim - os acabamentos miúdos da obra de mim mesma. E isso diz respeito, principalmente, a sentir menos o temor reverencial que fui ensinada a nutrir sem titubear, embora obviamente os respeite e admire mais do que nunca.
Talvez eles também tenham percebido. Talvez tenha demorado mais do que imaginamos, um dia, nos melhores prognósticos, que estas coisas demorariam. Mas chegou. Está chegando, eu sinto. E acho que lhes é bastante incômodo sentir a pressão das minhas asas crescendo e rompendo os limites que enxergava - e respeitava, sempre sem contestar - debaixo das asas deles.
Crescer em outras direções, que não aquelas que os meus pais idealizaram pra mim, não raro provoca um sentimento de traição para com a criação e o amor que me foram dedicados. É como trair o modelo, a matriz ideal... Mas não, não vou sossegar em casa, como desejaria minha mãe. E não, não vou viajar na companhia de um futuro marido trabalhador e protetor, como acho que pretendia meu pai. Tenho cada vez mais certeza. E estes conflitos em que não cedo e essas certezas do que não abro mão são tão recentes e inusitados que ainda não sei resolver, mas sinto que temos aprendido muito, aos poucos.

Porque por fim pensei, sorrindo, que as mães sabem sobre nós o mesmo tanto que sabemos sobre elas.

Cada viagem que decido fazer agora, por exemplo, é um pequeno band-aid que precisa ser tirado do corpo da nossa relação de pais e filha única. Para deixar aquele pequeno machucado respirar e cicatrizar entre nós, de uma vez por todas e sem maiores delongas ou dramas.
Outro dia pensei em outra analogia, que me parece ainda melhor.
Comprei meu primeiro carro há uns sete meses e, nas primeiras semanas, programei um limite de velocidade de 80km/h. Para lembrar de trocar as marchas e redobrar a atenção antes de chegar a, sei lá, o absurdo de velocidade que me pareciam os 100km/h. Era um bipbipbip chato pra danar, mas necessário pra que eu me condicionasse a ser uma boa motorista.
Há um mês, quando fiz minha primeira viagem de mais de 300km ininterruptos sozinha (sem eles), resolvi finalmente tirar aquele alarme. Um pequeno grande ato de coragem, porque dirigir me faz lembrar o quanto eu sou corajosa. E o quanto esperei para ser.
Em resumo, todas as vezes em que alcancei os necessários 100km/h naquela viagem, já na quinta marcha, eu me lembrei dos meus pais. Da preocupação que sempre tiveram com o trânsito. De como alguns hábitos podem ser mudados, porque é saudável que os filhos tenham suas próprias personalidades e escolham seus destinos. E, ao mesmo tempo, do quanto os ensinamentos deles ficarão (quaaaase todos) saudavelmente marcados em minha memória e na minha constituição como indivíduo... Embora eu desative os alarmes mais importunos, para o bem da minha sanidade mental. Enquanto aprendo a ser filha. Única, porque calhou de ser. E eles aprendem a ser pais. Como aprenderam a me ninar bebê. Como aprenderam a me suportar adolescente. E como aprendemos juntos, agora, a respeitar os adultos que somos.

De novo isso, mãe. Não tenho tido sossego. Não é um desespero. É, ao contrário, uma calmaria e uma excitação oscilantes. E uma experiência que o tempo vem me trazendo. Que enxergo bem viva e não encontro palavras para descrever. Uma fase, quem sabe? Esta agora sou eu!?
Estou mesmo buscando. Procurando achar algo no mundo. O que é, ainda não sei. Encontrando, volto pro teu colo para te mostrar.

domingo, 24 de setembro de 2017

Eco [12]

Eu lembro da primeira ocasião em que demonstrei interesse pela Laura. Na minha cabeça, tudo que aconteceu era algo lógico, quase matemático: ela caiu matando, eu fiquei assustado, precisei raciocinar, pareci rejeitá-la, até que confiei que poderia mostrar a ela a minha versão mais frágil e, digamos, suscetível para o que estava acontecendo. Acontece que as mulheres não funcionam como os homens. Não importa o quanto você seja inseguro ou simplesmente não esteja a fim, coisa que também pode acontecer, as mulheres sempre acreditarão que o problema é com elas.
Mulheres como a Laura muitas vezes sabem, bem no fundo, que o problema não é com elas - ou que os problemas que são com elas são menores que os problemas que são conosco -, mas encaram tudo como um desafio particular. Determinadíssimas, elas querem ver a gente abrir a guarda para um soco de euforia com o sentimento que são capazes de provocar. Querem nos fazer provar de seu veneno como se fosse remédio. Como se fosse, não. Como de fato é. Quando surge na vida delas um cara como eu, é como se o Universo lhes tivesse brindado com o problemático da vez numa oportunidade ímpar de revirar sua condição humana, testando seus limites. Descortinando os grandes mistérios da humanidade.
Foi surpreendente vê-la vibrar, bruxa e santa, com o fato de que, naquele começo, vertiginosamente eu me derretia pela tempestuosidade macia da sua presença inusitada na minha vida. Foi revelador perceber que ela enxergava em mim tudo aquilo que eu me esforçava para não parecer ser (e achava que conseguia, porque ninguém mais parecia se importar). Vê-la sorrir de canto, finalmente entendendo que uma das minhas pequenas batalhas internas estava sendo vencida naquele instante, era como um gozo prolongado. Como quando se chega aos quatro minutos e dez de Shine on you crazy diamond pela primeira vez. E eu era o alvo de interesse da Laura. Logo eu, um desgraçado da cabeça. Ela sabia disso. Ela via. Para ela, era evidente. E, de maneira inexplicável, encarava meu desgraçamento no fundo dos olhos, feito um presente.
Laura sem dúvida concorda com Jodorowsky quando afirma que somos irresistivelmente atraídos por quem nos trará problemas necessários para nossa própria evolução. Ela evolui o tempo todo. Você jamais a verá apaixonada por alguém fácil. Jamais. Decididamente, a Laura nunca quis a sorte de um amor tranquilo. É como se o desejo dela só aparecesse diante de situações que se assemelham à resolução de uma equação de vigésimo grau. Acho que os desajustados provocam na Laura aquele sentimento de quebra-cabeças de trocentas peças que, feito criança pequena, ela quer ver montado, peça por peça. Até enjoar de brincar.
Comunista? Crente? Introspectivo? Mora longe? Tem fama de desapegado? Possui algum vício incurável? Se as respostas forem afirmativas, para estas ou outras perguntas de semelhante calibre, há grandes chances da Laura se interessar por você e lentamente virar sua vida do avesso. Ela chega sem saber que o brilho intenso que resplandece é capaz de iluminar de longe os momentos mais obscuros da sua existência, e vai embora sem notar que você já tem uma expectativa sincera de que ela continue lhe fazendo companhia pelo máximo de tempo possível.
A própria causa da perda de interesse da Laura é para mim um mistério. Se já fui capaz de identificar seu padrão de comportamento para que a atração nasça, não sei dizer a razão pela qual ela vai embora. Será que é um cansaço? Que ela exaure rápido a disposição para lidar com aqueles problemas específicos? Quem sabe ela tenha me largado porque já me ensinou o suficiente. Para se desafiar de outra forma, logo ali em frente. Será que ela não tem a força descomunal que se enxerga nela? Será que ela enjoa dos dilemas de quem fez os dilemas dela parecerem pequenos, lá no início?
Talvez só a psicanálise seja capaz de, um dia, desvendá-la. Talvez minha primeira demonstração de interesse tenha sido o começo do fim. Mas como é cruel pensar assim, prefiro crer que ela também não sabe a razão. Do que tenho certeza é que preferirá para sempre as águas mais profundas, porque absolutamente nada que é raso e superficial lhe detém. E emergirá de quando em quando num impulso, sorrindo numa plenitude solitária, tomando fôlego para o próximo mergulho.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Eco [11]

No dia em que a Laura partiu, meu peito parecia o trânsito da Índia. Os sentimentos se misturavam num caos apavorante. Numa confusão fenomenal. Havia lamentos pela partida indo e vindo de todas as direções, sem semáforo. Havia uma saudade antecipada buzinando impaciente em algum lugar, ensurdecedora. Uma tensão de não poder errar, descuidar, espirrar fechando os olhos ao fazer uma curva muito fechada. Os sinais amarelos exigindo atenção redobrada para não colidir com a minha vontade de gritar ao mundo que eu queria ela no banco do carona da minha vida para toda e qualquer viagem. E depois vermelhos, em um grande, sonoro e universal: não, não vá por aí, é melhor administrar este vaivém quando a cabeça estiver minimamente em ordem. E depois verdes, exigindo destreza para ir para onde eu queria chegar sem atrapalhar quem vinha vindo depois dela. Tinha também um óleo de gratidão, lubrificando as engrenagens.
E eu ali. Guiando o coração, um tuk-tuk precário no qual já couberam tantos passageiros ao mesmo tempo ou na sequência. Tentando reaprender a direção defensiva. Tentando assentar o pé esquerdo na embreagem, e o direito alternando entre o freio e o acelerador. Mirando o retrovisor de relance, pasmo com o fato de que o tráfego seguia, como a vida, absolutamente encadeado. Como se a desordem generalizada fosse, na verdade, a ordem natural das coisas, bastando compreender a dinâmica. Aceitar. Para sobreviver nem mais forte, nem mais inteligente, mas com a rapidez de adaptação atribuída a Charles Darwin. E portanto tocar adiante, da melhor forma que me parecesse possível.
No dia em que a Laura partiu, como é natural que me aconteça, romantizei os efeitos daquela paixão quando ela começou a surgir. Quando tudo parecia em perfeita sintonia. Quando os carros me davam passagem em dia de chuva, no engarrafamento, numa solidariedade insuspeitada. Numa conexão com o universo que só consegue compreender quem já esteve apaixonado. Eu intuía as lombadas das estradas pelas quais não costumo passar, e reduzia a velocidade no momento certo, como que por milagre. E chegava ao destino, maravilhado. Sortudo. Afortunado. Época em que descobri os faróis de milha, para iluminar o caminho adiante, muito mais longe. Ocasião em que eu aprendi a reclinar o banco do carro para a posição exata em que meus braços podiam envolvê-la sem desconforto algum. Romantizei desejando, tão fundo, que aquilo que vivemos tivesse durado um pouco mais. Quem sabe para sempre.
Tolice. Eu jamais poderia ter controle de nada. E a confusão de uma partida talvez seja, em resumo, muito semelhante à confusão de uma chegada. A necessidade de reorganizar a vida quando ela foi avassaladoramente e de súbito bagunçada é idêntica, tanto quando uma paixão começa, quanto quando o contato cessa.
Só muito mais tarde entendi como e por que o trânsito da Índia flui, apesar de tão caótico: cordialidade, compreensão e bom senso. Para a bagunça funcionar, é preciso respeitar a lógica instituída. É necessário haver um senso de cooperação mútua entre todos que participam da intrincada movimentação urbana. Senão, desanda. Porém ordem, ordem mesmo, tudo direitinho, só na monotonia. E eu sempre me recusei a estacionar. Por alguma razão, eu não queria ou seria capaz de enxergar a Laura, no início, durante ou depois dela partir, senão sob a ótica da baderna - desregrada, sacudindo tudo, deliciosa - que ela conseguiu trazer para a minha vida.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Refreia

O padrão é branco,
liso e básico.
Discreto
combina com todos
Com tudo

Caibo nele.

Engana-se, porém
quem supõe
que o padrão
não dá trabalho.
É quase só o que ele dá.

O padrão fala baixinho
Não atrai
o olhar de esguelho
Não responde processo
Não é abordado pela polícia
Não chama
Atenção:
o padrão não muda
o mundo
Para além da convenção

O padrão é um jeans apertado
que dá cintura
Magra e fina
mas dificulta a respiração

Refreia o instinto
A língua
Interrompe a escala

Mas é preciso mantê-lo
Porque, enfim, não dói
Não arde
Não cura
Não sente o dissabor
de uma vida padronizada

terça-feira, 25 de julho de 2017

Você me desperdiça

Queimei o céu da boca com a parte rala da sopa da Elaini. Terminei a refeição e escovei os dentes cuidadosamente, mais por fora do que por dentro, para que as cerdas duras não me arrancassem desavisadamente a pele frágil e áspera - este fenômeno paradoxo que só as queimaduras conseguem produzir.
No enxágue, quase um gozo de alívio: a água gelada sorvida da mão esquerda para a boca, consolando a queimadura como quem a cura. A água na temperatura certa, quem diria, um analgésico poderoso, interrompendo as vias de transmissão nervosa entre o meu ferimento e o meu cérebro, tão viciado em sentir fogo (e, agora, também água) tão poderosamente.
Encarei o espelho do banheiro e sorri, enquanto abaixava a cabeça e cuspia. Era assim, então, que eu devia encarar o ocorrido. Com uma espécie de gratidão pelo instante de coragem louca para iniciar a escovação dos dentes, um ato que me pareceu absolutamente necessário e quase instintivo, apesar do perigo. Com uma certeza de que manter a água gelada na boca por mais tempo do que é costume faria dela fria e depois morna e depois quente como um fogo brando que me queimaria um pouco mais, ou pelo menos não faria diferença positivamente.
Confesso: eu me preparei para recebê-la. Ao contrário do que pretendo fazer crer - de que o bom mesmo é só o susto, e de que pensando com calma a vontade e a potência daquele alívio se esvaem - no fundo eu sei que não se engole a espuma da escovação de dentes a seco sem um certo desconforto. Então a água, em alguma medida, é necessária. A água é literalmente elementar para quem estou sendo depois de experimentá-la numa circunstância tão incomum.
E, no íntimo, eu desejei tê-la ali antes de saber que me estancaria a dor. Se afirmo que não se pode prolongar algo para além do que deve durar por uma questão de funcionalidade, na prática eu quis tê-la mais comigo. Bochechar. Gargarejar. Deixar escorrer pelo pescoço. Fazer com que o prazer durasse, exponenciado. Eu quis e eu quero, se me detiver no assunto, beber litros e litros de água ainda nesta semana. Até passar a língua no céu da boca recém aguado e sentir que tudo está como antes ou mais hidratado. Eu quis e eu quero que não fosse ou seja mais possível retroceder ou desperdiçar água nenhuma neste mundo.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Lamento sertanejo

Construí sobre a areia movediça uma tapera, e dela fiz uma mansão. Levantei parede, varri bem o chão. O pó eu tirava todo dia. Como eu amei a minha casinha de improviso! A minha casinha querida que me acolhia como se fosse um palácio de um rei importante. Eu ia chegando e a porta abria, a tramela velha girava inteira pra minha vontade de morar no que fosse meu, no que ninguém mais pudesse destrancar que não eu. O sol entrava manso na fresta da janela fim de tarde. Eu botava a cadeira de palha na varanda e olhava longe, tudo tranquilo, e numa hora dessa tudo ficava tão lindo que a vista não alcançava fim praquele susto de felicidade que a minha casinha me dava. Nos cafundós de uma terra onde não se podia plantar quase nada, num sertão onde só chovia depois de muita reza, eu rezava. E daí dava goteira, que quando chove casa de pobre é assim mesmo. Tratava de me conformar. O chão batido inundava todo, lá ia eu com o rodo. A chuva lavou, tá novo. E punha as roupas pra secar. E punha a alma, calejada, pra quarar. É aqui, e ninguém mais, que eu escolhi morar, é aqui que a chuva vai chover e eu vou regar. Feito árvore sem semeadura, criei raiz e fui ficando. Flori um verão. Depois mais outro. No frio comprei coberta, que em casa minha, calor é que não ia faltar.
Foi ali naquela moradinha pequena que planejei um filho só, que não cheguei a ter, que nunca dei à luz talvez por falta de sorte, talvez por sobra, que nessa época a parteira ainda nem tava por chegar. Eu decorei tudo como manda o figurino, pra bem de esperar o tempo certo se aprumar. Comprei estante de madeira, e até queria ter um sofá. Quando a noite chegava, a lâmpada comprida e branca demorava um pouco, ligava e acendia fazendo barulho pra danar, mas não fazia mal, alumiando é o que conta. Panela também tinha. Comprei vermelha, como era moda. E barata. Barata tinha de monte. Que me importava? A casa da gente é a casa da gente. Dá gosto de ver a luz na casa da gente, a água saindo da torneira, o cheiro de comida impregnando a cama do conjugado. Era uma alegria humilde, mas eu gostava muito de levar a vida na minha tapera porque a minha tapera era minha. Ou eu achava que era. Aquela ideia de ter teto tava pronta e acabada.
Até que um dia a natureza buscou de volta a casa toda de uma vez. Não sobrou madeira nem sapê nem nada pra contar história. Até o pano de louça de inicial bordada, presente da madrinha, junto com o resto do enxoval, foi pro brejo. A terra me engoliu o cofrinho de moeda, a cama mole, o ventilador mequetrefe, o travesseiro velho, o espelhão redondo do banheiro, meu único luxo. Até o globo terrestre que ficava em cima do bidê - onde eu não achava, no mundo inteiro, lugar melhor que a minha casinha, a terra engoliu. Sem deixar rastro. Sem chance de reclamo ou apelo. O chão puxou pela última ponta a raiz daquela planta que reguei dia e noite pra ver se vingava, tão ligeiro que parecia feitiço. A luz foi se apagando por baixo da terra como se nunca tivesse tido luz. Direto pro inferno, de certo. Nunca mais minha casinha. Fui tão feliz que quase que me esqueço da areia movediça sobre a qual eu levantei a fortaleza. Não fosse essa peça que o destino me pregou, tinha esquecido mesmo. Mas agora já não podia. A mão na cabeça, tremendo que nem vara verde de um apavoro feito o que bate com notícia de morte de parente, eu reparei que fingi tempo demais que não via que a minha casinha já foi levantada caindo aos pedaços. Eu fui feliz e não me avisaram de novo que areia movediça engole casa. O desaviso me custou uma nota de coisa que, cê deve de saber, não há dinheiro que pague. Perdi a minha ignorância, de sopetão, feito um tiro que tira a vida de quem não honra a conta da venda na mão do Setembrino. Defendo a honra, mas nem preciso, chorando na frente da ruína da minha tapera. Com esse lamento sertanejo que vai a São Paulo e volta. E não dá mais conta de esquecer que sem chão firme não há casa que fique de pé.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Eco [10]

Eu estou farto de selfies e stories para tentar chamar a tua atenção. Estou farto de ser refém das minhas próprias sentenças. Eu me cansei de ouvir as músicas que aprendi a gostar contigo para extrair qualquer seiva da tua persona que fosse capaz de me alimentar. Cansei da pose de vencedor por cima da carne seca com esse abismo inteiro que carne seca ou úmida nenhuma preenche. Eu sou um pobre cão raivoso. Já não tenho saúde para as amêndoas amargas, que me embrulham o estômago mas não funcionam como veneno letal. Me sobraram nesta vida, como sobram sempre aos loucos de todo gênero, somente os nossos dois amores contrariados. Cada qual num peito como se fosse inteiro, cada qual num peito parecendo desconexos entre si, não mais uma coisa só. Laura eu não voltei bar em bar desmentir aos trôpegos que me faziam companhia no balcão que você não vale nada eu não fui ao confessionário dizer que quanto às juras de amor eterno era falso o meu testemunho mas eu rezei eu rezei eu rezei como rezam os pobres contando o rosário com tom de voz de ladainha para que não lhes falte o pão nosso de cada dia eu rezei afoito e eu rezei sem vírgulas e sem fôlego nenhum para que os anjos e santos e entidades soubessem que o fim do nosso amor me bota louco ainda e um pouco mais todo dia eu rezei pelo teu perdão e pelos pecados que eu não acho que cometi eu rezei implorando misericórdia por me render aos corpos de mulheres que eu não amei porque não te via. Perdi o juízo, a sobriedade, a compostura, os bons modos e o bom senso. Eu só não perdi a vontade de te matar de amor, Laura, de sufocar nas tuas angústias como se fossem minhas, como se fosse teu pai, como se os teus vícios fossem meus também, como se eles não importassem, como se eu não estivesse constantemente ocupado demais para que não me sobrasse tempo para pensar em ti e lamentar e chorar para dentro e pensar que no fundo deste poço tanto faz a compatibilidade formal entre duas pessoas. Eu fiz ensaios inteiros sobre a autoajuda que eu não consegui me dar de verdade, depois devaneei sobre como era rápido e fácil seguir adiante, depois me senti feliz por dois segundos com beijos e carícias horríveis antes de submergir de novo neste mar de angústia, de dúvida, de tédio e de peso morto que é a solidão. Tudo me toca fundo para que as palavras saiam conexas. Tudo já foi dito e repetido para que agora haja remédio ou remendo mas há essa vontade absurda de estar aqui, agora, para dizer que só estou. Estou na tua porta como se fosse novo. Como se fosse outro. Como se não fosse o que era mas ainda sendo. Como se houvesse uma esperança inquebrantável de que só por estar na tua presença só por te ver só por ser ouvido só por não deixar que esmaeça o contraste indisfarçável das nossas cores o meu peito consiga doer um pouco menos. Não é de Deus, mulher, o quanto tu me dói.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

A capivara

No fim, bastaria apenas reproduzir o adágio: o que não tem remédio, remediado está. Como em todas as estórias que já nos contaram, a moral da história, dita de antemão, nua e crua, economiza o falatório. Mas hoje eu quero contar a fábula inteira em detalhes.
Há quatro semanas, mais ou menos, indo para o trabalho eu avistei uma capivara morta na beira da rodovia. Quando passei de carro por aquele trecho, oito e tanto da manhã, o sangue vermelho vivo tingindo o asfalto no dia claro fazia crer que o atropelamento tinha acontecido poucas horas antes.
É uma coisa relativamente simples de acontecer, para quem mora no interior, mas à primeira vista a cena era chocante. Pegava a gente desprevenido. Primeiro porque eu já atropelei uma capivara antes e sei o estrago e o susto que elas causam. Digo, atropelei não propriamente, mas já estive no banco da frente de um carro que atropelou uma capivara, e o baque do corpo gordo contra o para-choque mesmo estando de carona é uma experiência horrível que não desejo a ninguém. Segundo porque era um bicho morto. Por mais irracionais que me pareçam as capivaras, era um animalzinho que há pouco estava feliz da vida com suas quatro patas fincadas na barranca do rio comendo grama ou fruta - eu nem sei o que as capivaras comem - e agora jazia ali, para todo o sempre. O ocorrido despertava uma sensação de compaixão até para a menor das ativistas dos direitos dos animais, como eu.
Naquele primeiro dia, há umas quatro semanas, a viagem até chegar no escritório pareceu muito mais longa que o habitual. Esbravejei indignada pensando que era uma irresponsabilidade alguém tê-la atropelado e deixado ali. Dado causa ao fatídico acidente sem prestar os primeiros socorros e, agora, seguido a vida normalmente, como se nada tivesse acontecido.
Mas minha indignação era, notei depois, um absurdo. Ninguém atropela uma capivara por querer transitando na BR. Mesmo prestados socorros, talvez não tenha dado tempo de chamar um veterinário. Ou já não havia mais o que fazer. Ninguém deseja o prejuízo material e o espanto de um evento desta magnitude. Também não há, reparo agora, um jeito digno de velar um animal selvagem. Não é um humano, não há família a quem indenizar ou pedir perdão. Não há mesmo maneira correta de enterrar uma capivara morta por acidente na beira da rodovia. O que eu queria, afinal!? Que o condutor a enterrasse ali mesmo, em terras de estranhos? Que botasse no porta-malas e enterrasse no quintal de casa? Levasse para o trabalho e tomasse providência no final do dia? E o bicho fedendo de morte e impregnando tudo ao redor. Não, não, não há maneira de seguir, objetivamente, carregando aquele peso estrada afora. Então, poucos dias mais tarde, eu me dei conta de que se fosse eu mesma a atropelá-la, não seria capaz de demovê-la um centímetro sequer imediatamente, ainda que quisesse. Pior do que isso, eu nem sabia o quanto aquilo tinha afetado intimamente o causador do atropelamento. Desse modo, mesmo culpado, o motorista haveria de ser perdoado por seguir adiante e deixá-la ali.
Conforme os dias foram passando, eu fui alternando entre o sentimento de culpa (veja você: eu já sabia que não tinha forças para arrastá-la nem se quisesse, que não era comigo, mas ainda assim me sentia culpada por não poder fazer nada, o que consumia uma energia enorme) e o sentimento de piedade, fazendo um esforço mental para deixar para lá (que às vezes me custava forças que eu pensava que não tinha para controlar meus próprios pensamentos).
No quarto dia, tivemos uma chuva torrencial na região. E no meio de um afazer cotidiano, ouvindo os trovões, pensei: pobre capivara estatelada, vivendo este temporal e o sol de rachar no frio deste inverno, ao relento, sem cerimônias.
Nessa parte da história, imagino, você pensará: é bobagem, é só uma capivara, isso acontece toda hora. Embora de maneira geral eu concorde, esta é uma daquelas circunstâncias em que não se explica o quanto o inevitável é capaz de tocar fundo na alma da gente. A capivara atropelada se tornou a insígnia dos meus problemas. Em muito se assemelhava e assemelha com a minha necessidade de digerir e sofrer o irremediável da minha vida.
Vida que segue.
Ontem, tarde da noite, voltei para casa e já era escuro. Não pude vê-la, nem de longe e nem rapidamente, mas sabia que estava ali. A gente sabe ou pressente o óbvio. Ultimamente, quando passo ao seu lado, dou apenas uma espiadinha sem demora, para conferir a carcaça magra e pálida.
Agora, fazendo um exercício de memória, lembrei do dia em que, no exato momento em que passei por aquele trecho da estrada, já meio distraída, havia um urubu devorando suas tripas. Para minha querida amiga, então, já não havia remédio. Foi como se eu me desse conta, inteiramente e outra vez, de que estava tudo acabado, dada a sequência na cadeia alimentar. O curso do tempo estava operando seu milagroso trabalho. O que é ótimo. Mas se me lembro, ainda me dói como da primeira vez.

Às vezes me dá muito trabalho aceitar o que é fatal.
O que não tem remédio, remediado está.
Ou: viver bem demanda aprender a lidar com as capivaras, sonhos e planos que morrem pelo caminho.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Desta água beberei mil vezes

Bem depois de cruzar o deserto e o calvário. Depois das ressacas. Depois de deixar de crer que é só dela que preciso desesperadamente para saciar todas as minhas sedes: desta água, preciso confessar, eu sei que beberei mil vezes. Mas só quando abandonar a ideia confusa de que pode ser carência, sem critério. Quando aceitar, um pouco mais em paz, que nasci com este cansaço de estar solta no mundo. Quando eu for mais a minha luz que o teu reflexo. Quando voltar a ver poesia, e não desespero, nessa dependência vital do que compõe a grande parcela dos nossos corpos, dos nossos íntimos, da nossa alegria em estar vivo. Só então, e finalmente, desta água beberei mil vezes. Porque então serei livre e inteira como na melhor das teorias a respeito.
Não me arrependo e nunca vou negacear. Resignada, eu me conheço: desta água eu beberei mil vezes, sem medo. Mas por respeito às minhas cicatrizes e por respeito, como um fim em si mesmo, quando o destino chegar já não me encontrará cavando um poço fundo no quintal.

Mesmo assim, disposta a sorver do amor até a última gota.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Eco [9]

Laura, eu não sei tu, mas eu detesto com veemência a ideia de ter "contatinhos". Que praga é essa que foram inventar? Pelo amor da Santa Madre Igreja, Laura. Isso é liquidez na forma mais difícil de digerir. Minha pior bronca com a vida de solteiro. Eu não gostaria de ter que espalhar meu afeto, grão em grão, no tempo de meia dúzia de mulheres com a porcaria de um papo fraco de "você-é-lindo,-lindo!", Laura. Que raio.
Eu ainda odeio essa promiscuidade sentimental paliativa do tédio, embora já tenha reaprendido a flertar e o faça bem. Para mim, essa pulverização do desejo instensifica uma sensação de rejeição abominável. Talvez tu ainda lembres o quanto eu odeio ser rejeitado. Ainda que minimamente, por dois minutos. Ainda que por falta de olhar. A rejeição, que chega a galope, e o desinteresse, que é meio concomitante com a excitação de um novo nome na agenda, são a expressão máxima do que é ser e ter "con-ta-tinhos". Uma parte para cada passinho para trás que eu dou quando dizem essa palavra na mesa do bar. 
Às favas essa gente toda que diz por aí com tanta ênfase que quer um amor pra vida inteira (mas não cultiva direito nem um pé de cacto, Laura!), eu sei bem que esse desespero vem porque só o que eles aprenderam a ter é contatinhos. A gente sabe que quem muito quer, nada tem. Quem nada tem, muito quer. E esse ciclo que nunca acaba. Mal começou e eu estou farto de não poder conhecer o âmago de ninguém porque estão todos ocupados demais repetindo as perguntas e respostas do Questionário Oficial dos Contatinhos uns aos outros.
Não sou mais homem de uma mulher só, Laura, mas definitivamente sou homem de uma paixão só. Várias na vida, sabemos, mas uma por vez. E bem intensa. Que o contrário eu já te contei que me causou muita dor de cabeça - é coisa pra quando a gente tem dezesseis anos.
Quem sabe seja isso, então: uma espécie de maturidade. Ou uma velhice precoce. Quem sabe a idade e o tempo me impossibilitaram dessa coisa volátil própria dos que são mais jovens. Trouxeram-me uma responsabilidade emocional, fiel e senil, que me pesa no mais fundo da personalidade, sobrecarregando as articulações. Como dores nas juntas ou hérnias de disco. E, então, apodera-se de mim uma preguiça incalculável de ter contatinhos. Que me dificulta muito essa sedução indiscriminada de qualquer par de peitos que se me apresentem.
Porque são só peitos e hálitos luminosos de chiclete recém posto na boca, Laura. E eu sou piegas demais para não desejar sempre o bafinho de bom dia do domingo.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

O deslumbre da coincidência

No décimo segundo dia, meu instinto de se aninhar finalmente descansou, contemplando assustadíssimo sua criação. Estava mesmo farto da labuta de forjar esse conforto. Quase cansado da expectativa dessas jornadas e trocas e renúncias que se emendam, incessantes, uma na outra. Cinco dias de atraso em relação à obra divina, demonstrando sua frágil e carente humanidade. Tudo pronto e acabado.
De repente, foi feito um fôlego. Um vácuo. Uma lufada bem-vinda, porém ardida, de consciência. Um suspiro embaixo d'água. Seria, quem sabe finalmente, um cessar fogo definitivo das satisfações no fim do dia? Ou, pelo menos, um momento suficiente para a constatação do que há de apavorante nessas entregas de corpo e alma desde o princípio?
Agradeci a Deus três vezes de olhos fechados por aquela pausa - toda providência tende a ser divina para os que creem -, enquanto sussurrava: agora eu vou crescer pra dentro. Não ao lado, não, não ao lado. E chacoalhava a cabeça: agora eu vou crescer pra dentro. Agora eu vou ganhar musculatura emocional.
Os olhos do meu instinto continuaram bem abertos e se enxergando, apavorados. Eram dois buracos profundíssimos, percebendo que ainda não conheciam o limite dessa entrega sem padecer de angústia. Era o meu instinto, quem sabe finalmente, parando de operar e, quem sabe finalmente, fazendo com que eu parasse de ignorar o cenário para prestigiar personagens.
O bicho indomado que há em mim precisa desnudar suas asas pra fora, sem esse instinto. Eu só não quero - eu rezo ao Pai, Deus me ajude!, eu rezo ao Pai - eu só não quero perder o deslumbre vívido e intenso das coincidências.

terça-feira, 2 de maio de 2017

A mulher do outro lado

De repente aconteceu. Eu vi chegar ao longe o morno desespero d'A Viajante de Rubem Braga. Vinha a passos lentos, onde quer que eu estivesse. Como uma neblina, inconfundível, apoderando-se de tudo que era nítido do horizonte pra cá. Da janela do carro, da rua irregular, do pôr do sol no mar aberto. Vindo, vindo. Impedindo de saber onde se põe as mãos para conter. Como um abraço de braços largos de incerteza que docemente e em alguma medida me acolhessem, mas firmes demais pra que eu não fizesse um gemido de incômodo.
Não era uma saudade, longe disso, definitivamente não era uma saudade, mas ainda assim quase me cegou. Era uma dúvida. Um desconforto. Um não saber. Era um não enxergar de caminho, caminhando mesmo assim. Mover-se. Ir andando que atrás vem gente, como diria minha avó. Era um: quem estou me preparando para ser? Quem quero ser, quem vem chegando? Que mulher me espera desse outro lado do que ainda não sou? Passada a hesitação, hei de aprender.
Conheço e prefiro o que vem depois dessa névoa baixa e fechada. A sensação de quando olhamos para as paredes de um bar e nos vimos pertencer àquele instante inteiro de serenidade e completude. Finalmente sem querer estar noutro lugar. Com o contentamento leve de pensar em si como alguém que não, não morrerá de solidão, ainda que já não encontre o futuro que esperava. Alguém que dobrará as curvas desse caminho e, sempre inesperadamente, perceberá que para qualquer direção haverá um mar, surpreendentemente belo. Um chão. Surpreendentemente firme. E um firmamento, para sonhar de novo.
Há algo de necessário e bonito nos períodos obscuros da vida, como bem se enxerga com essa paz que chega só depois.

domingo, 16 de abril de 2017

Eco [8]

Quando procurei a Laura pela primeira vez depois do término, eu receava que ela não fosse me responder. Foi apenas dois dias depois, numa terça, final de tarde. Havia tanta coisa mal resolvida em mim. A minha rotina havia mudado tanto em tão pouco tempo. E eu ainda tinha um carinho e uma esperança tão grandes.
Mandei mensagem perguntando a ela como foi o dia. É, pois é. Havia tanta, tanta, tanta coisa para ser dita, perguntada e ouvida, mas a única coisa que me saiu com naturalidade foi essa pergunta boba e trivial, para introduzir o assunto. Como quem ainda faz parte do cotidiano.
Veja bem! Dois dias antes, levei o resto do domingo para que a ficha caísse. Chorando e sem entender nada, como um bebê em cólicas (minto, minto, a ficha demorou muito mais que umas horas para cair, talvez ela não tenha caído direito até hoje ou caia um pouco mais e eu volto a ser esse bebê a cada vez que eu olho de relance o canto em que ela deixava os sapatos de salto assim que chegava do trabalho e eles não estão mais lá).
Na segunda-feira, depois de não ter rendido absolutamente nada no trabalho, tomei um porre homérico. No balcão de um bar no qual eu nunca havia entrado. Sem companhia. Pedi só que um amigo confiscasse meu celular até o dia seguinte, o que ele fez sem perguntas. Torci para que aquilo antecipasse a recuperação e me fizesse sentir menos, ou me desse uma nesga de consciência de como devia agir: ficar quieto, na minha, digerindo. Cheguei em casa três da manhã, sem saber como. Dormi bem naquela noite, ao contrário da anterior.
Na terça, eu estava um caco. O mesmo caco que continuou não rendendo nada no trabalho e nas interações humanas de modo geral, mas dessa vez com uma dor de cabeça e um remorso assombrosos. Eu precisava saber da Laura. Ver como é que tinha passado as últimas quarenta e oito horas a rainha da minha ruína. Eu não podia mais negligenciar aquela vontade profunda de discutir o término. Exclamar um pouco as interrogações. Berrar qualquer coisa em voz baixa, do coração para fora. Eu não podia mais perpetuar aquela atitude anti-natural de não interagir.

Foi então que mandei a mensagem.
Uma hora e trinta e sete minutos depois, ela respondeu. Não é que eu tenha cronometrado, até porque me ocupei tomando uns oito cafés nesse meio tempo, é só porque à noite, mais tarde, abri o aplicativo para reler tudo tantas vezes que acabei fazendo o cálculo e guardando a informação.
Ela respondeu. Fez um relatório em pormenores do que havia feito no dia até ali. Foi disparando minúcias dessas que a gente enfrenta todos os dias, sem esperar que eu respondesse. Que tinha saído a pé para o almoço e, quando voltou, o mundo desabou em água, ela sem guarda-chuva, aquela coisa toda. Que almoçou isso, fez aquilo, passou no banco, deixou roupa batendo, tinha ligado para o fulano para resolver tal situação. Contava tudo como num dia normal do nosso namoro, exceto pelo fato de que ela havia terminado comigo e eu não conseguia pensar em mais nada além de me concentrar em respirar e não morrer.
No final da sequência de mensagens, completou com um nada sutil "...e senti sua falta!".
Como assim sentiu minha falta, tá doida? Digitei mas não enviei. A minha cabeça fervia de alegria e confusão. E de raiva. E de ansiedade. E de ressaca. E da falta assustadora que eu sentia dela. Tudo muito misturado, mas quando vi a notificação, sorri.
Embora eu soubesse que um relacionamento não acaba indolor para alguém tão sensível, eu não esperava uma Laura tão receptiva e honesta. Que confessasse que também vinha tendo que se concentrar em respirar e não morrer. Eu esperava uma Laura linha-dura, como a de domingo. Sem chorar. Sem titubear. Eu esperava uma Laura que não me respondesse, ou me mandasse à merda, ou já tivesse até me bloqueado. Quem sabe isso facilitasse as coisas.
Ao contrário, descobri que ela também tinha tido uma espécie de ataque de pânico do primeiro para o segundo dia daquela semana, que tinha chorado horrores depois, e que não confessou porque não sabia como eu reagiria. Exatamente como eu, só que com o adicional gosto amargo de quem não pode dar o braço a torcer para não fazer o outro sofrer ainda mais. Ou para tentar não fazer.
Descobri que ela também estava confusa - infelizmente não o suficiente para voltarmos. Como será que as pessoas precisam estar se sentindo para permanecerem juntas? Mesmo passado o nosso carnaval, eu ainda me pergunto isso de vez em quando.

Naquele domingo, Laura pôs uma luz intensa no que havia de mais obscuro nos seus maus sentimentos em relação a mim. Minhas pupilas dilatadas não enxergaram nada direito. Em seu íntimo, a Laura via com nitidez coisas que eu não suspeitava sobre nós.
Naquela terça, Laura me deu a medida de quanto tempo aquilo foi remoído nas trevas de suas entranhas até se tornar tão definitivo. E então, subitamente, tudo me doía ainda mais. Saber que a Laura estava sentindo tudo tanto quanto eu - ou mais, ou há mais tempo -, apesar de ter terminado comigo, não me ajudava em nada. Não esclarecia nada. Era de uma dureza tão grande comigo. Conosco. Eu tenho certeza de que objetivamente chorávamos as mágoas mais fundas naquelas mensagens, embora tudo parecesse conforto.
Muitas terças mais tarde, depois de experimentar um sem-fim de conversas amenas ou viscerais, francas ou mal interpretadas, e de termos nos acalentado e ferido sempre mais, lembrei do óbvio sobre relacionamentos e seus finais: a Laura não poderia me ajudar a fechar as feridas que tinha me feito. O contato era nocivo. Suas mãos eram tóxicas. Seus abraços, mais ainda. Lê-la me fazia sangrar. Procurar seus vestígios virtuais me infeccionava todo.

A cada vez que eu procurei a Laura depois do término para contar a ela como me sentia e para ouvir como ela se sentia, eu mantive uma esperança incontrolável. Eu pedi e esperei satisfações. E receei a chegada do momento em que ela não me respondesse mais. Porque o silêncio significaria o temido novo amor, ou uma festa incrível, uma terapia bem sucedida, um esquecimento, a consumação dos meus presságios sobre o término. O silêncio significaria que ela decidiu que era melhor seguir do que olhar pra trás. O silêncio significaria a mais absoluta das desistências. Uma vontade de paz, como a que tivemos juntos. Sobretudo, significaria não haver mais nada que pudesse ser dito para remendar o nosso amor imediatamente, quer a gente ainda se amasse ou não.

Um dia o dia chegou. Não nos falamos mais. Eu não soube se a Laura ainda me amava ou não, quando se calou. Se fazia só por ela ou se fazia aquilo por nós dois. A partir de então, conjecturei muitos significados. O maior deles acabou sendo o de que os silêncios apaziguam os amores grandes demais para as palavras que sobram depois do fim.