segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Bem menos ingênuos

Ele acaba de entrar às pressas aqui no laboratório sem enxergar o totem das senhas, sem se dar conta de que os atendentes estão atendendo, sem perceber ninguém aqui que espera. Interrompeu tudo ao redor com uma urgência absoluta e sem máscara pra perguntar em alto e bom som: "aqui faz exame de DNA?" 
Enquanto espero a cotonetada no nariz neste canto pouco isolado do resto da sala e guardo o espaço de duas cadeiras do meu coleguinha do lado - esse ruivo cabeludo que tosse bastante e não sei por que diabos mantém os óculos de sol na cara mesmo num ambiente fechado - eu começo a suspeitar que ele entrou aqui querendo o oposto de mim. Ele quer um positivo. Uma confirmação. E precisa ser logo, ou ele não vai mais aguentar a pata de elefante pesando no peito.
Gabriela, acho que esse cara quer muito ser o teu pai. Tua mãe entrou depois pela porta (depois de o atendente obrigar ele a voltar no carro pegar a máscara, depois de uns 15min e muitas sapateadas, depois de uma brava explicação de que a máscara tinha ficado pra trás porque te buscar na maternidade e fazer o teste logo era fundamental). Aí vem tua mãe. Recém parida. A cesárea por cicatrizar e um caminhar lento e doloroso. Tu nos braços. 
Ainda não te furaram a orelha, mas sei que tu és uma menina porque o cueiro que te envolve é cor de rosa. Suspeito que ainda não compraram fraldas suficientes pra semana, mas sei que o teu nome será Gabriela porque tua mãe, já com mais de 40, parece viver à moda da geração passada em todos os detalhes. Bebeu daquelas referências. E agora perfoma, junto com o teu pretenso pai, uma quase-tragédia corriqueira. Vocês estão aí sem perceber que ao redor todas as atenções se voltam pra ti e pra eles. Ou percebendo, mas tendo muito mais com que se preocupar que com a opinião do povo do laboratório onde farão o exame que talvez dite o rumo da tua vida.
A tua mãe está aérea, com aquela loucura hormonal que distorce a realidade. Acho que tentou parir sozinha mas o médico do plantão disse qualquer coisa sobre o cordão estar enrolado no teu pescoço e ela acreditou. Cortaram muitas camadas da barriga dela dois dias atrás pra te trazer ao mundo e, também por isso, ela agora tem um olhar parado, mórbido e vago de quem quer que uma parte do suplício que acompanhou vocês nos últimos meses finalmente acabe, o quanto antes.
Daqui a pouco outra mãe do recinto vai sugerir que o pessoal ceda a vocês uma sala apartada. É pra não pegares a peste tão nova, pois nada aqui soa seguro ultimamente. O mundo é mesmo um lugar muito inseguro, Gabi. Tem essa doença nova. Tem, por exemplo, esse maluco de óculos de sol do nosso lado, tossindo. Na verdade, tem doido por aí a dar com pau. Tem patricinha que não enxerga privilégio brincando de Peter Pan. Tem otário fazendo o cão arrependido e pondo a conta na mitomania, que é esse nome bonito que inventaram agora pra falta de escrúpulo. Tem gente cheirando porque se sente só. Tem mania de grandeza. Tem tonto falando mal de vacina. E tem nós, que podemos resistir a muito custo e não enlouquecer, nos agarrando no que realmente presta e deixando pra lá.
Queria te alertar e proteger dessas e outras coisas enquanto fico vidrada em ti, tão pequena. E nesta dinâmica toda. Na tua mãe que talvez tenha conhecido esse homem tarde demais, já com a regra atrasada, por isso sabe bem que esse capricho dele de vir até aqui é só um capricho. Ou que talvez torça um pouco para teres vindo prematura, contrariando o médico, os exames e a DPP e apesar dos 53cm e dos 3,2kg, pra fazer daquela traição dela menos real.
A verdade, porém, é que qualquer destes alertas seria só uma projeção da minha história aplicada sobre ti. A vida tem gente fazendo DNA e teste de covid no mesmo lugar o tempo inteiro. E o que há de mais bonito é sempre tudo que haverá depois desse momento. Então tem um tanto de otimismo no que eu vejo daqui: tem um cara que parece querer muito ser o teu pai tentando te embalar sem jeito enquanto a tua mãe se levanta bem devagar.
Vou soprar ao vento este otimismo, pra que ele te alcance. Pra que o resto você descubra com o mínimo de dor além da picada da enfermeira que logo vai coletar a amostra de sangue do teu corpinho pequeno.
Quando eu sair daqui vou me lembrar que todo amor carrega uma dose de culpa. Uma culpa por tudo que o precedeu. Pelo que nem foi. Uma culpa de existir em condições que fogem do nosso controle. Aquela culpa de não merecer tanto. E aquela outra culpa de perder a razão de vez em quando. Uma culpa de se saber bem menos ingênuos do que gostaríamos. E, ainda assim, desejar saber. E pagar pra ver. E amar.