segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Contemplação

Olho pra baixo, as unhas sem esmalte, os pés bem juntos. A água do chuveiro escorre morna pelas pernas e varre os dedos e contorna o chão até o ralo. Ergo a cabeça e uma gota brota na testa, contorna o nariz e amacia toda a existência. A vida não é perfeita. Só é boa. A cada cem frivolidades, uma dessas pequenas epifanias. Uma pequena pausa no dínamo dos dias. Uma inércia que suspira.

A contemplação é o maior dos milagres.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Por dentro

"[...] Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
[...] E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso"
(Caetano Veloso)

Tentei te sensibilizar, declarei o afeto depois de tudo acabar. Injustiça a tua, amor. Mesmo longe serás fogo, fogo, fogo. Coisa assim não acaba cedo, mulher. Vejo arder em ti algo que não compreendo, mulher. Eu sei que sentes tudo e estás sentindo algo inconsequentemente e violentamente agora. Não sei o quê e tudo se confunde. Tu sabes? Cadê aqueles instantes onde alucinadamente pensávamos que era tudo empatia e sincronia? Por que tão verdadeira? Por que palavras tão duras? Qual das coisas que não fiz te fez partir? Serás sempre o que quiser, mulher. Isso me ofende e me escondo, menino, nas asas da vida. Tu partes, encolho. Essa ideia de amor aprisiona. Como é que vais embora com esse coração tão leve, se dizes amar? Baixa a cabeça e cala. Não atacas, não revidas, não tentas me atingir. Segue firme. Que humildade é essa, mulher. Quero estrafego: maldizer o nosso lar, sujar teu nome, te humilhar. Só sei sentir assim. Vê de quanta atenção eu preciso, nota a ferida aberta arder e me explica de onde é que surgiu essa certeza tão grande de que não somos um par. O que é que eu faço se achei que dependia, Narciso, da tua coragem e valentia pra me ver no espelho? É outra boca? Outro corpo, outro coração? Não? Como assim não, mulher. Mas que raios, mulher! Sem me trair, sem duvidar, sem pestanejar, compreendendo tanto de mim e nada de nós. Acordaste hoje, fincaste o pé na estrada e nunca mais. Bruxa na fogueira, máscara caída, algoz da profana inquisição. O diabo suspira com o trabalho que tem a cada vez que respiras.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Impreciso


No banco ao lado e no que transpõe o corredor, as senhoras conversam sobre economia e política. Me encolho no meu banco, ombros retraídos. Parece poeira de vidro entrando pelos poros. Não era eu que queria conversar sobre coisas diferentes ao longo da vida? São oito da manhã de uma quarta-feira que ainda não decidiu se será de sol ou de nuvem cinza. Preciso mesmo dar a minha opinião? Decidir o que quero para o futuro do Brasil? Falar sobre a Dilma e os meses de um ano que usamos pra pagar os impostos, parlamentarismo e todo o mais? Ensaio o discurso que ouvi toda a vida, para agradá-las, mas não abro a boca. Não quero agradar ninguém. Na verdade, estou pensando micro. Na praticidade que quero ter para conviver sendo chefe de estado e de governo de mim. Cuidar das relações e das decisões como se fosse redutível, incansável, pragmática. Preciso ser todas essas coisas? Preciso ocupar o tempo com coisas úteis e com o bem-estar geral da nação? Preciso fazer da vida um case? O que eu gosto e o que eu finjo que gosto, porque esperam isso de mim? Quero mesmo essa beatificação dos dias? Ser canonizada porque sou uma boa menina? Estou perdendo tempo? Posso me permitir ir e voltar com a maré? Eu tô cansada. Cansada de não saber, de correr atrás do prejuízo. Dessa busca que não acaba. Não quero mais ser a melhor aluna da sala. Melhor: não quero o peso de sentir que preciso sê-lo. Preciso? Precisar, que verbo ingrato. O que eu fiz de mim, que ansiedade é essa? Estaria leve, não fosse estar sempre precisando. Desembarco e os saltos, vermelhos, sincronizam com alguma máquina usada para construção perto dali. Preciso de óculos de grau, de um notebook, de um celular menos anacrônico, para atender às demandas da vida de solteira. Preciso? Invento essas desculpas para ter algum horizonte. Para me lembrar sempre que exagero no contato com as pessoas e no desespero de compreendê-las, correspondê-las, ser correspondida. Quero ficar ali, no parado. Sem olhar para o celular que não toca, sem a pressa que atrasa os dias. Encolhida em silêncio, sem precisar de nada e de ninguém. As vitrines estão cheias de botas na promoção e, em algumas delas, já há biquínis e mini-saias, em preços exorbitantes. O tempo não para. "Você precisa disso?" - a vida exige resposta, a pergunta faz eco na minha cabeça. Que tamanho a necessidade precisa ter para que se precise? Quanto de perdão há em mim e quanto de desespero? Eu quero um beijo de amor ou um tapa na cara, que me acorde de vez? Quanto da minha vida é marketing? Quanto de repetição, requentando velhos hábitos e velhas pessoas? Quanto de desespero e quanto de atropelo? Sei o que não quero, mas quero o impreciso. Isso é um peso e um alívio.

sábado, 15 de agosto de 2015

Comichão


O que no sangue chama o pernilongo? A cor, o cheiro ou o mistério? O que por trás da pele é tão irresistível? Essa atração instintiva é extrato perfeito do enigma da cisma.
Um mosquito pica o meu dedo do pé. É uma picada minúscula e incômoda. Eu roço o pé no cobertor e é como se recuperasse a vontade de viver por uns segundos, já que nunca fui das que deixam um inseto pousar no nariz ou onde quer sem me agitar os sentidos. Afinal, mais um ser humano como tantos na face da terra: eu sinto muito, demasiado. Eu sinto tudo. E reconheço o quanto arde o que não deve arder. A manchinha rosada que aparece uns segundos depois do contato é uma vergonha ao contrário.
Dedo do pé. Quando um mosquito assim pica a gente, é sempre o meio inalcançável das costas transportado para os recantos do corpo. A gente se debate, mas não faz mais que espantá-lo ou colar o próprio sangue na parede. Abandona uma parte de si sem o mosquito consultar a gente, pedir licença ou deixar credenciais. O despertar para o tapa é sempre tardio. A picada não volta atrás. Arde o comichão, não há antídoto. Esfrego álcool, um creminho perfumado, mas ainda arde.
Eu não entendo esse comichão. Eu não entendo ou me conformo, mas reconheço a tranquilidade pela coceira que ela dá quando vai embora.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Não é você, somos nós.

Hoje eu vou escrever sobre pedra nos rins. Sim, é o segundo tema "patológico" em dois dias. Não, eu não estou com problema nos rins. O inferno astral não chega a tanto. Que eu saiba, só com gripe. Mas eu acho que o meu cérebro está com uma certa disposição pra essas metáforas ruins. Vai ser um desabafo, tá? Nada de uma pretensa vertente poética, como sempre, ou algo assim. É provável que eu leia esse texto em algumas semanas e sinta que estou dizendo a mesma coisa que ontem, mas com menos floreio. Se eu tivesse um vlog, seria uma conversa franca com a câmera. Mas eu tenho um blog. Porque é quando escrevo que sou inteira.


Há um tempo eu tive cálculo renal e é uma dor absurda. Não consigo lembrar exatamente quantos meses faz. Eu sinto necessidade de contar que essa dor surgiu do nada sempre que falo a respeito. Um dia eu acordei, manhã cedo, sentindo dor. Claro que do nada é modo de dizer. A pedra já estava lá, era produto de uma predisposição genética e do quanto de sal eu como. Como num cálculo matemático: os problemas nunca são só aquele problema específico, mas um conjunto de elementos problematizadores.
Parecia tudo bem comigo, exceto pela pedra que começou a se mover no canal. Mas então a pedra já estava lá desde antes, certo? Certo. Uma pedra assim não se forma em oito ou nove horas de sono, só que eu só me ative a ela quando perturbou. Pedra no rim dói muito. Dizem que mais que parto. A crise passou, mas eu me lembrei semanas do quanto me contorcia e do quanto era incômodo. Se me esforçasse, podia sentir o canal machucado um mês depois.
Eu gosto muito de sal. Eu acho que amo sal. Mesmo, de paixão. Borboletas no estômago. Quando eu vejo um saleiro na mesa eu fico contente (vai entender!?). Parece identificação de outras vidas. Contudo, absolutamente todos os dias depois da minha primeira crise de cólica de rim eu precisei fazer uma escolha. Porque eu amo sal, mas a minha razão sabe que eu posso criar novas pedras no rim. E que, quando resolve incomodar, pedra no rim dói pra caralho.
Quem me diz que eu preciso comer tudo insosso em nome da minha saúde não faz ideia do quanto o sal me faz falta. E quem me diz que eu devo comer sal o quanto quiser porque um dia morreremos todos não sabe o quanto dói a porcaria da crise de cólica de rim. E, todos os dias, ninguém pode fazer essa escolha por mim. Eu não acredito que deva problematizar as coisas mais do que elas já são problematizadas, mas ainda não aprendi quanto de razão e quanto de coração a gente deve empregar em cada coisa. Não acho mesmo que alguém saiba a medida ideal.

Não é você. Não sou eu. Somos nós: essa indecisão crônica a ser tomada entre o que nos machuca e sensibiliza. Essa necessidade de manter uma distância das emoções pra conseguir raciocinar. Essa necessidade de se deixar compadecer junto, pra não endurecer demais. Essa impossibilidade de apartar as dores e trancá-las, longe das expectativas. Essa dificuldade de viver o presente e não pensar no futuro, se foi o passado, o amor, o sal - e também as pedras e as dores - que nos trouxeram até aqui.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Catarro

Com toda razão, ninguém consegue falar sobre isso sem um mínimo grau de desconforto quando está à mesa. Não é algo de que os eruditos já tenham se ocupado em seus livros ou discos. Ninguém se sente apto para discursar a respeito quando o interlocutor faz cara de pena pelo nariz inchado ou de ojeriza, por todo o contexto. Mesmo quando alguém pergunta, chega a parecer falta de boas maneiras responder com sinceridade sobre o tema. A sua mãe se compadece, o pai dá tapinhas nas costas. Te levam à farmácia ou ao médico. Vai passar, querida. As amigas desejam melhoras, perguntam como você está, mas parece uma realidade paralela. Ninguém dá genuinamente a mínima para o catarro até ele aparecer na própria vida.
Todo mundo já teve catarro. A gente acorda um dia com um mal estar esquisito, sabe que algo não vai bem e, no dia seguinte, está com o nariz entupido ou tossindo os pulmões para fora. A cara deste tamanho. Lá está uma gripe daquelas e o maldito, congestionando tudo. Aos poucos, começa a soltar. A gente tosse e sente as postas amaldiçoadamente mais consistentes do que gostaríamos - nojentíssimas! - sobre a língua. Parece que as vísceras são constituídas de catarro.
Aquilo vai ter que sair dali. A gente quer cuspir tudo de uma vez, como quem faz uma limpeza à mão por dentro das vias aéreas, mas não pode, são as regras do jogo. Engole. Quer cuspir. O negócio tá ali. Só que todo mundo foi ensinado sobre o quanto isso é, digamos, antiestético. Não pega bem. Tosse de novo. Corre para o banheiro, uma coceira na garganta. Vem mais por aí. Tenho certeza que você está com cara de espanto ou de aversão por eu escrever a respeito, mas já sentiu tudo isso com a mesma impressão de nunca-mais-vai-passar que eu estou sentindo agora.
Falar sobre, de qualquer maneira, não traduz o sentimento. É por isso que a gente costuma reclamar do mal estar, das dores de cabeça, do tempo, da vida, mas não cita o catarro especificamente. Só faz sentido para quem está, naquele exato instante, passando pela experiência. Eu poderia passar horas buscando eufemismos, mas... Catarro é só aquela substância amarela, esverdeada, que vem não se sabe por quê. Ninguém lida bem com catarro. E ninguém, absolutamente ninguém, faz por merecer. O catarro nos põe à frente de algumas das maiores dificuldades da vida: deixar que o tempo passe e, neste meio tempo, lidar com o que acreditamos não merecer. Só percebemos que todo mundo passa por isso e sobrevive e que a vida não tem muito a ver com merecimento quando ele vai embora. 
Ocorre-me agora que o catarro (aquele mesmo de sempre, que sai dos nossos narizes desde crianças até a velhice) serve para nos dar a medida exata do quanto as próprias tragédias parecem grandiosas. Ou, quem sabe, para nos conectar por uma ou duas semanas ao esmagador desconforto coletivo que, por um motivo ou por outro, sentiremos todos durante a vida.