quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Bem-entendido

Mencionei o episódio na terapia uma hora antes, depois de anos, e quase não acreditei quando aquela presença indigesta se materializou em linha reta entre a minha mesa e o balcão. Quase como se ele tivesse sido convocado mentalmente pela chefe do setor de arquivos das coisas mal resolvidas da minha cabeça para um acerto de contas que possibilitasse descartar os papéis mofados pelo tempo.
Se eu não tivesse ficado tão espantada, teria rido. Eu sou perdida nessas coincidências. Fico sinceramente interessada, mais até do que deveria, no que coisas como essa têm pra me ensinar. Quero saber que ponta ficou solta como um fio desencapado dentro do meu cérebro e o que eu ainda tenho pra aprender com isso. Eu me sinto obrigada a revisar a narrativa que emprestei aos fatos de época com os olhos de agora, para tentar converter aqueles incidentes num bem-entendido dentro de mim. É como uma espécie de compromisso na resolução dos meus dramas mais antigos.
Faz parte da vida interiorana, eu sei, a gente cruza o tempo todo com gente que deixou de fazer sentido e com quem teve que deixar de fazer, por aqui. Só que coincidências acontecem por instinto, sobrepondo-se à força do hábito. Comovem pelo espanto que causam intimamente no confronto com a lógica racional. São feitas de energias que não dominamos, embora tentemos.
E é porque essa mágica acontece dentro da nossa própria cabeça que coincidências assim podem se dar no fim do mundo, em Bangkok ou em Madrid. Numa estrada de chão a caminho do sítio, levantando poeira, cantando pneu, estourando garrafa, caminhando pelo rio. Naquele filme antigo do Tom Cruise. Ou na mesa desse bar, logo depois da sessão de análise. Pra quem se dispõe a reparar na justaposição entre dois eventos aparentemente aleatórios, o mundo é sempre um ovo.
Vendo-o daqui assim sentado, meio feio, meio cheio de graça, eu revivo as nuances daquela rejeição que me pareceu enorme  porque a primeira é sempre gigante  e sem querer eu me pergunto se não teria feito o mesmo estando no lugar dele. Passado tanto tempo e tantas histórias, ao custo de todas as vezes em que eu rejeitei os que vieram antes e depois, consigo perceber que não teve a ver só comigo. Há um motivo justo para que a lógica do não-é-você-sou-eu seja universal: é verdadeira.
Será possível que a memória da gente fabrique detalhes inteiros de uma situação e os repita incansavelmente, até o convencimento? Acontece para que de alguma forma nos lembremos de nós mesmos como vítimas, e isso facilite as coisas? Ou, nesse caso, será possível que eu tenha apagado uma conversa do HD e reescrito de próprio punho como todas as coisas se passaram, por conta dos eventos de depois? Será que agora o peso dessa honestidade ou de uma cantada barata têm a graça de uma coisa totalmente nova, diante da mulher que eu me tornei? Eu não duvido. Mas não deixo de ter medo de que essa minha disposição para pensar nas coisas dessa forma volte a fazer de mim ingênua. Medo de quebrar o espelho, de usar a palavra "livramento" e de tomar outro pé na bunda igual àquele primeiro. Como é que se exige um pedido de desculpas sete anos e dois drinks depois?

Nenhum comentário: