terça-feira, 30 de maio de 2017

Desta água beberei mil vezes

Bem depois de cruzar o deserto e o calvário. Depois das ressacas. Depois de deixar de crer que é só dela que preciso desesperadamente para saciar todas as minhas sedes: desta água, preciso confessar, eu sei que beberei mil vezes. Mas só quando abandonar a ideia confusa de que pode ser carência, sem critério. Quando aceitar, um pouco mais em paz, que nasci com este cansaço de estar solta no mundo. Quando eu for mais a minha luz que o teu reflexo. Quando voltar a ver poesia, e não desespero, nessa dependência vital do que compõe a grande parcela dos nossos corpos, dos nossos íntimos, da nossa alegria em estar vivo. Só então, e finalmente, desta água beberei mil vezes. Porque então serei livre e inteira como na melhor das teorias a respeito.
Não me arrependo e nunca vou negacear. Resignada, eu me conheço: desta água eu beberei mil vezes, sem medo. Mas por respeito às minhas cicatrizes e por respeito, como um fim em si mesmo, quando o destino chegar já não me encontrará cavando um poço fundo no quintal.

Mesmo assim, disposta a sorver do amor até a última gota.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Eco [9]

Laura, eu não sei tu, mas eu detesto com veemência a ideia de ter "contatinhos". Que praga é essa que foram inventar? Pelo amor da Santa Madre Igreja, Laura. Isso é liquidez na forma mais difícil de digerir. Minha pior bronca com a vida de solteiro. Eu não gostaria de ter que espalhar meu afeto, grão em grão, no tempo de meia dúzia de mulheres com a porcaria de um papo fraco de "você-é-lindo,-lindo!", Laura. Que raio.
Eu ainda odeio essa promiscuidade sentimental paliativa do tédio, embora já tenha reaprendido a flertar e o faça bem. Para mim, essa pulverização do desejo instensifica uma sensação de rejeição abominável. Talvez tu ainda lembres o quanto eu odeio ser rejeitado. Ainda que minimamente, por dois minutos. Ainda que por falta de olhar. A rejeição, que chega a galope, e o desinteresse, que é meio concomitante com a excitação de um novo nome na agenda, são a expressão máxima do que é ser e ter "con-ta-tinhos". Uma parte para cada passinho para trás que eu dou quando dizem essa palavra na mesa do bar. 
Às favas essa gente toda que diz por aí com tanta ênfase que quer um amor pra vida inteira (mas não cultiva direito nem um pé de cacto, Laura!), eu sei bem que esse desespero vem porque só o que eles aprenderam a ter é contatinhos. A gente sabe que quem muito quer, nada tem. Quem nada tem, muito quer. E esse ciclo que nunca acaba. Mal começou e eu estou farto de não poder conhecer o âmago de ninguém porque estão todos ocupados demais repetindo as perguntas e respostas do Questionário Oficial dos Contatinhos uns aos outros.
Não sou mais homem de uma mulher só, Laura, mas definitivamente sou homem de uma paixão só. Várias na vida, sabemos, mas uma por vez. E bem intensa. Que o contrário eu já te contei que me causou muita dor de cabeça - é coisa pra quando a gente tem dezesseis anos.
Quem sabe seja isso, então: uma espécie de maturidade. Ou uma velhice precoce. Quem sabe a idade e o tempo me impossibilitaram dessa coisa volátil própria dos que são mais jovens. Trouxeram-me uma responsabilidade emocional, fiel e senil, que me pesa no mais fundo da personalidade, sobrecarregando as articulações. Como dores nas juntas ou hérnias de disco. E, então, apodera-se de mim uma preguiça incalculável de ter contatinhos. Que me dificulta muito essa sedução indiscriminada de qualquer par de peitos que se me apresentem.
Porque são só peitos e hálitos luminosos de chiclete recém posto na boca, Laura. E eu sou piegas demais para não desejar sempre o bafinho de bom dia do domingo.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

O deslumbre da coincidência

No décimo segundo dia, meu instinto de se aninhar finalmente descansou, contemplando assustadíssimo sua criação. Estava mesmo farto da labuta de forjar esse conforto. Quase cansado da expectativa dessas jornadas e trocas e renúncias que se emendam, incessantes, uma na outra. Cinco dias de atraso em relação à obra divina, demonstrando sua frágil e carente humanidade. Tudo pronto e acabado.
De repente, foi feito um fôlego. Um vácuo. Uma lufada bem-vinda, porém ardida, de consciência. Um suspiro embaixo d'água. Seria, quem sabe finalmente, um cessar fogo definitivo das satisfações no fim do dia? Ou, pelo menos, um momento suficiente para a constatação do que há de apavorante nessas entregas de corpo e alma desde o princípio?
Agradeci a Deus três vezes de olhos fechados por aquela pausa - toda providência tende a ser divina para os que creem -, enquanto sussurrava: agora eu vou crescer pra dentro. Não ao lado, não, não ao lado. E chacoalhava a cabeça: agora eu vou crescer pra dentro. Agora eu vou ganhar musculatura emocional.
Os olhos do meu instinto continuaram bem abertos e se enxergando, apavorados. Eram dois buracos profundíssimos, percebendo que ainda não conheciam o limite dessa entrega sem padecer de angústia. Era o meu instinto, quem sabe finalmente, parando de operar e, quem sabe finalmente, fazendo com que eu parasse de ignorar o cenário para prestigiar personagens.
O bicho indomado que há em mim precisa desnudar suas asas pra fora, sem esse instinto. Eu só não quero - eu rezo ao Pai, Deus me ajude!, eu rezo ao Pai - eu só não quero perder o deslumbre vívido e intenso das coincidências.

terça-feira, 2 de maio de 2017

A mulher do outro lado

De repente aconteceu. Eu vi chegar ao longe o morno desespero d'A Viajante de Rubem Braga. Vinha a passos lentos, onde quer que eu estivesse. Como uma neblina, inconfundível, apoderando-se de tudo que era nítido do horizonte pra cá. Da janela do carro, da rua irregular, do pôr do sol no mar aberto. Vindo, vindo. Impedindo de saber onde se põe as mãos para conter. Como um abraço de braços largos de incerteza que docemente e em alguma medida me acolhessem, mas firmes demais pra que eu não fizesse um gemido de incômodo.
Não era uma saudade, longe disso, definitivamente não era uma saudade, mas ainda assim quase me cegou. Era uma dúvida. Um desconforto. Um não saber. Era um não enxergar de caminho, caminhando mesmo assim. Mover-se. Ir andando que atrás vem gente, como diria minha avó. Era um: quem estou me preparando para ser? Quem quero ser, quem vem chegando? Que mulher me espera desse outro lado do que ainda não sou? Passada a hesitação, hei de aprender.
Conheço e prefiro o que vem depois dessa névoa baixa e fechada. A sensação de quando olhamos para as paredes de um bar e nos vimos pertencer àquele instante inteiro de serenidade e completude. Finalmente sem querer estar noutro lugar. Com o contentamento leve de pensar em si como alguém que não, não morrerá de solidão, ainda que já não encontre o futuro que esperava. Alguém que dobrará as curvas desse caminho e, sempre inesperadamente, perceberá que para qualquer direção haverá um mar, surpreendentemente belo. Um chão. Surpreendentemente firme. E um firmamento, para sonhar de novo.
Há algo de necessário e bonito nos períodos obscuros da vida, como bem se enxerga com essa paz que chega só depois.