terça-feira, 16 de maio de 2023

Nêmesis

Sempre fomos uma família muito mais de suco de uva do que de caldo de cana. Deve ser uma fantasia imbecil há muito superada pela industrialização, mas gosto de pensar que essa nossa memória gustativa foi forjada pelos pés de inúmeras italianas gordas com os braços largos de tanto mexer polenta e que vieram antes de nós. As panturrilhas grossas de tanto sapatear à espera de seus maridos. Gosto de imaginar que para cada copo se cozinha muito vagarosamente um punhado de uvas maduras num fogão a lenha pequeno, demasiado familiar, numa panela de ferro grossa herdada de alguma avó, com uma sujeira fervida e entranhada que escorre pelas beiradas e se vê de longe. Gosto de acreditar que depois se espera coar por horas aquele caldo grosso num pano de louça sempre muito duvidoso, tecido em meada puída, mas firme e limpo, e que o produto final desse esquema tradicional, demorado e milenar funciona, afinal, para o meu paladar e para o do povo aqui de casa, com o charme de uma receita herdada. Da qual já conhecemos bem todo o revés e cada etapa do trabalho que exige o método, mas também o doce da fruta de cada época. Talvez por isso ao beber suco de uva nos sintamos tão em casa. Como se o tivéssemos aprendido de pequenos.
Deve ser por isso que não segurei um riso quando o trânsito desacelerou e na mesa de plástico da beira da rodovia essa outra família, quase alienígena, tão diferente de mim e da minha, escorregava sem suspeitar no fraco de suas contradições bacanas. Ou no doce exagerado de suas suposições líquidas. Eram três. E muito sérios. O pai com uma cara jovem e austera, a mãe com jeito de moderna e respeitada. A filha bancando a afrontosa. Mas todos habituados nesta ideia de ordenar à garçonete sempre o mesmo nome desse mau gosto abertamente difundido e peculiar. Fiquei até um pouco triste que ninguém os tenha avisado antes. Ao tempo em que a pequena desgraça deles também era mais uma prova incontestável da nossa supremacia tinta, o que aqui em casa ninguém nega. Da janela do carro, à distância, eu me dei conta: ninguém escapa do risível de um bigodinho de caldo de cana.