quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A queda do império

Escrevo porque História de um Casamento conversou conosco e eu sei que não foi à toa. Não é estranho como tudo sempre vai se repetir em histórias como essa, mesmo que a gente nem se conheça? De Rubel à traição, há um efeito devastador repetitivo e idêntico no homem lírico. A gente só se dá conta no final. Calma, vem aqui, eu não quero te atacar. Esse texto é uma espécie de abraço. Não, um abraço não, que eu não sou de abraçar gente desconhecida e nem quero tanta intimidade contigo. Mas fica cada vez mais claro que eu te entendo mais e melhor que qualquer uma. É por isso que escrevo. Sei que é natural o processo de negação desse sentimento de agora, porque o que ele foi lá no início ainda faz eco bem fundo na memória. De um tanto que dá medo de voltar a ser grande. A gente vai minguando e assume essa condição como nossa. Há vida, mas não é mais a mesma: são os dilemas dele e a cabeça confusa dele despertando uma versão que você achou que havia morrido há muito tempo. A autoconfiança vai enredando nas canelas dele. Se ele caminha, dá medo. Sou porta-voz de uma notícia ingrata: a partir do momento em que você se deu conta disso naquela primeira vez - que só você sabe qual foi - e resolveu ignorar, perdoar e ficar, por qualquer razão que se confunda com um amor que tudo crê, tudo espera e tudo suporta, a culpa deixou de ser dele. Ainda dá pra não aceitar. Ainda dá pra aprender a levantar-se da mesa, como ensinou Nina.
E então as líricas se enredarão nos práticos, e sentirão um gosto estranho na boca. O gosto de serem elas mesmas.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Nada a ninguém

Como resistir à vontade de provar ao outro que evoluímos muitíssimo? De que agora somos mais legais, mais politizados, de que viajamos mais, gozamos mais, de que temos mais amigos, mais resiliência e mais dinheiro, menos problemas psicológicos e incomodações e menos ciúmes, de que somos intensamente merecedores de toda a redenção experimentada e que, de modo geral, estamos tão melhores que até parece que recebemos a visita de alguma entidade sobrenatural que pessoalmente compareceu ao mundo dos vivos para nos pacificar, enaltecer e fazer filial!?

Que bom quando tudo isso parece bobagem. Quando se comparar com o outro é tão desnecessário quanto se comparar com uma versão antiga de nós. Quando a gente compreende que não foi mais que o tempo e o seu trabalho natural. Quando abandonamos o "como pude!?" para dar lugar ao "naturalmente não poderia de novo". No mais absoluto silêncio.

É necessária muita certeza de si para não precisar provar nada a ninguém.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Bem

Obrigada por estar me provocando a olhar pra vida com um pouco mais de calma. Com um pouco mais de fôlego. Com um pouco mais de compromisso com o meu otimismo. Com um pouco mais de carinho pela mulher que eu me tornei. Entendo melhor contigo que algumas coisas podem ser diferentes de antes, porque eu mudei. E porque eu nunca tive alguém como você na vida antes. Ou porque eu tive, mas agora é agora e você é você. Com toda a sinceridade ou romantismo que dizer isso pode representar. De repente, eu quero gastar de novo todo esse exagero. Perceber que ele se regenera a cada vez que a gente se abraça. E eu fico mais exagerada e mais sorridente e mais cantante e dançante. E eu te agradeço... Por abrir essa frestinha pra mim. De luz, de cor, de som. Se eu beijo um canto diferente de você, virtualmente, toda noite, é pra acordar a possibilidade de celebrar o nosso encontro também em sonho. Eu te prometo que vou devagarinho. Pra não te assustar. Pra não invadir. Eu sei o tamanho da responsabilidade de entrar nesse mundo tão teu, onde tudo já foi tão difícil, gelado, escuro, indiferente. Eu sei, pode ser passageiro, pode acabar igual, pode fazer doer. A regra é doer. Mas por isso mesmo, eu te agradeço por agora, esse instante em que nada me dói. Onde o que dói você assopra. É bom poder vir pra casa, tomar o meu rumo, seguir o meu caminho, percorrer os meus labirintos, viver todo o meu dia (exatamente como antes), mas olhar o retrovisor e saber, sorrindo praquele retangulozinho onde às vezes te enxergo fumando e pensando, que você quer cuidar um pouquinho de mim agora. Justo naquela pequena parte da vida em que eu quase preciso: agora. Tô soltando uma mão do volante. O ar. E expirando o restinho daquele medo pra fora dos pulmões. Deixo vazios pra entrar essa vontade de viver que compartilhar momentos contigo tem me trazido. Eu não sei nada de depois, a gente nunca sabe, mas muito obrigada por agora.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Queimada

Relacionar-se é transitar, sempre perigosamente, entre um terreno que é próprio e outro que não é. É lúdico imaginar que estamos num jogo de queimada, mas nem sempre convém arremessar a bola para derrubar o que nos parece ruim ou uma ameaça do outro lado. É preciso saltitar entre as metades deste salão com passos de um ballet bem pensado e na ponta dos pés, arriscando a estadia num território no qual você é convidado para estar ou chega de surpresa. Sempre como visita. O mundo pode ser todo seu, mas é melhor não abusar. Não dá para fazer e acontecer fora de casa. É preciso descalçar os sapatos e respeitar os objetos espalhados pelo chão da casa alheia. Tudo no campo do outro também é particular e sagrado, um pouco estrangeiro, desconhecido, e vez ou outra até inóspito. Tudo está ali por um motivo. E é assim que deve ser, para que ninguém se perca pelo caminho. Ninguém nasceu ontem ou no dia que nos conheceu. Não adianta ir arrancando o que parece erva daninha do chão com toda força, mudando os móveis de lugar, varrendo a poeira fina que ficou a pretexto de fazer uma faxina necessária. E tem ainda aquele papo de Clarice: a gente nunca sabe qual o defeito que sustenta o edifício inteiro. Não se recomenda apontar o dedo na cara, explicando presunçosamente como a vida e a organização do ambiente funcionam. Porque cada templo é cada templo, e se organiza à sua maneira, no seu próprio tempo. É preciso tomar tanto cuidado para não impor as próprias verdades! Para não tentar domar ninguém nas nossas regras. Para não colonizar o outro. Para não colocá-lo ao nosso serviço. Estamos todos atravessando um processo de encontrar a melhor versão de si mesmos, aprendendo a enfeitar e arrumar o nosso espaço. Nem sempre queremos ajuda. Nem sempre estamos dispostos à catequização. Nem sempre precisamos. Há que se ter paciência: para o bem ou para o mal, ninguém volta igual depois de atravessar a fronteira.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Para a parte de mim que já se quebrou antes

Eu te prometo não abrir mais a guarda, construindo fortalezas ao invés de pontes. Eu te prometo não deixar o que você gosta pra mais tarde. Não ceder. Definitivamente nunca ceder. Eu te prometo não dar sossego. E nunca mais deixar, nem mesmo secretamente, o destino de domingo na mão de alguém. Eu te prometo nem cogitar falar sobre sentimento. Não dormir fora de casa. Não dar o suspiro que precede a frouxidão. Não empolgar com uma gentileza. Não romantizar o que deveria ser tratado. Eu te prometo não demonstrar as fragilidades. Não higienizar as feridas na frente dos estranhos. Eu te prometo não abrir mão de absolutamente nenhuma convicção moral para caber em qualquer lugar. Eu juro solenemente que sei elencar prioridades autocentradas e não vou deixar de fazê-lo. Porque eu sei o trabalho que deu chegar até aqui. Pagar na mesma moeda. Recontar os trocados. Eu te prometo tirar força de onde não tem para que nada se repita. Não vou mais perder a direção dos pensamentos no meio da tarde. Eu te prometo não achar que qualquer coincidência é motivo para mais. Eu te prometo que nenhuma boca te fará sorrir mais que a tua própria. Eu te prometo especialmente o que não se promete a ninguém, porque foge do controle. Mas eu te perdoo, de novo, se você cansar de carregar o próprio mundo nas costas sozinha. Para ver recomeçar o quebrar-se e remendar-se. Quente e letrista. Outra vez.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Big bang

Tudo está no seu lugar. Ainda que o amor seja um peixe escorregadio, um corpo ensaboado ou um docinho coberto de gelatina que nos escapa sempre que tentamos firmá-lo entre os dedos. Tem no mundo esta mocinha bem loira de cabelo cacheadinho caminhando com uma sacola de compras e um abacaxi saltando para fora andando na minha frente. Tem o cara dos malabares no sinal e esta barata correndo pela calçada à procura de ser imortal resistindo ao próximo big bang, que é o sapato número quarenta e dois deste idoso lendo o jornal com o pé apoiado na parede da loja de eletrodomésticos. Tudo está onde deveria estar e nessas horas há uma calmaria que vem não sei de onde e cai vacilante como uma folha de outono no assoalho interno da gente. É quando a gente não se importa demais. Não espera demais. Não se detém demais. Não firma as rédeas demais. E flui com o tempo, que afinal é nosso aliado. A gente dá de ombros pra tudo, mas repara e aproveita este pequeno momento de agora, que o desinteresse de depois não tem fresta nem deixa espaço para retroceder. Por ele não passa a luz. Não vamos cortar a ponta da orelha da vida e nem esperar que enrede o rabo embaixo das pernas de quem estiver sentado na mesa de jantar. A gente cobre a aposta. E é curioso que para que esta constatação me venha leve muito leve seja necessário tanto contorcionismo. Ser amado é tão bom que a gente esquece que não é tudo. A sorte é que não há nada em desordem neste mundo. Tudo está no seu lugar.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

O que eu vi em você

A cor quase uniforme da pele. A inacreditável beleza da cova que afunda nas bochechas por baixo da barba quando fala ou sorri. E, por falar em sorriso, a precisão milimétrica com que os olhos estreitam ainda mais quando você se diverte e a sua felicidade invade o lugar ou se anuncia numa piada boba. O jeito de voltar pra perto e sentar um pouco mais próximo de mim a cada vez que levanta. O seco da boca. O calo e o áspero da mão e o seu tamanho. O álibi da juventude. O furinho na barra da calça jeans. Preferir o Marrone. Preferir Vida Vazia. O discurso convicto sobre estar só, que redunda e denuncia precisamente o contrário. A demora do ar fazendo o caminho das suas narinas aos seus pulmões. O seu peito tentando reter o ar para não sufocar, como quem espera impaciente por algo. A voz grossa e meio rouca. O silêncio que você faz quando ainda não ouviu os dois lados da história. O silêncio que escolhe fazer depois. O cansaço. Sobretudo o cansaço de insistir na solidão e esperar, com alguma angústia, ser salvo. O reflexo disforme de mim na tua vitrine, e que só se enxerga a depender de como incide a luz. A possibilidade. Eu vi em você o que eu sei que você sabe ou intui a meu respeito, porque sabe ou intui a respeito de si mesmo. Guardei esta resposta naquele silêncio do carro no outro dia, bem. Esta confissão é um portal que atravessa o tempo, a barreira do som e aquela tangente pela qual eu saí quando você perguntou o que eu vi em você.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Desiderando

"Eu vim pra cá sem coleira, meu amo.
Do meu destino eu mesmo desidero.
[...]
Eu sou culpado de mim.
Vou nunca mais ter nascido em agosto.
No chão de minha voz tem um outono.
[...]
Lugar sem comportamento é o coração.
Ando em vias de ser compartilhado.
Ajeito as nuvens no olho.
A luz das horas me desproporciona.
[...]
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.
[...]
Esses vazios me restritam mais.
Alguns pedaços de mim já são desterro.
......................................
(É a sensatez que aumenta os absurdos?)"
   (Os deslimites da palavra - Manoel de Barros)

Eu posso me justificar com os dissabores aos quais a monogamia já me sujeitou à vontade. Secretamente, pesa em mim uma culpa cristã de se distribuir. O que, como e quantos é justo e aceitável desejar ao mesmo tempo? Que parte de mim pode botar os outros na minha tormenta com intimidade, mil perguntas e abraços apertados, dançando com eles uma ciranda que atende aos meus caprichos? Que importância têm os caprichos deles nesta equação? Qual o salvo-conduto que a solteirice me dá? Que parte do outro é a expectativa que nele eu incuto e que parte não me diz absolutamente nenhum respeito? Melhor voltar à reclusão? Que parte de mim morreu e que parte está dormindo um sono profundo? Eu agora sou outra? Ou sou a mesma, ressignificando as coisas para que se tornem mais leves? Quando é que estaremos prontos e acabados para que os traumas anteriores não maculem a folha em branco que se nos apresenta? As folhas em branco que se nos apresentam todas de uma vez, mais de uma vez.
Por-se a serviço do desejo impõe um desprendimento que, às vezes, só mesmo botando a consciência já formatada de lado. E é mesmo possível e viável este descompromisso com as consequências sentimentais de ser desejante e objeto de desejo? Eu posso mesmo expatriar as responsabilidades emocionais que costumava ter para longe da vista? Só uma vez ou outra? Em nome de uma compensação histórica? Eu estou mesmo variando o investimento para reduzir o risco da operação? Ou estou diversificando as chances de enlouquecer? As pessoas riem. A verdade é que estou tão apavorada quanto elas. Com esta nova versão. Com os altos retornos. Com todos os riscos.
Abri uma fresta das portas e eles entraram. Inequívocos. Como uma manada de elefantes, pisoteando as minhas certezas, mesmo sem me fazer esquecê-las. E penso: não foi, justo isso, o que me fizeram para que eu me fechasse? Quão menos especial uma intimidade fica quando ela não é a única? Eu posso administrar esta situação, usando as algemas do medo de ser igual ao que me feriu? É isto então a liberdade? Eu não posso, eu não posso, eu não posso trair a minha liberdade com qualquer decisão a este respeito. Embora, às vezes, eu queira. É o vício falando outra vez? É sensatez? É absurdo? E vou andando de um canto a outro desta sala de estar dentro da minha cabeça e investigo, com o laissez-passer para fazer o que quiser bem guardado no bolso. Deixai passar, eu me digo. Solta tudo que te prende ou que tenha a ver com o medo e deixa de ser caduca. Tu viestes a este mundo sem coleira. É dentro deste grilo que saltita pra lá e pra cá que está o teu destino. Tudo é desiderando. As coisas serão como serão.


quinta-feira, 18 de abril de 2019

Efeitos colaterais

Amanhã de manhã bem cedo tua boca vai prender o filtro branco entre os lábios. A barba feita contornando o rosto, impregnada de toda a ansiedade do dia anterior. Cê vai me perder porque nem sabe o quanto pode me ganhar. Cê não vai abrir a guarda. Eu não vou confessar. Não era esse o jogo? Vou surtar sozinha. Em silêncio. Lembrando que podia ter sido diferente, igual a tantas coisas na vida. Mas sem ter muita certeza. Engole esse mal entendido mais uma vez como se não importasse. Vai endurecendo aos poucos. Não vai ser a primeira vez que a gente confunde orgulho e desinteresse. Esperando a resposta de uma mensagem que, se reparar bem, nunca foi enviada. Ficou pelas tabelas. Assimilamos com essa força magnética dos corações partidos, ora atrativa e ora repelente. No fim do dia vai ser de novo só você e esse monte de pensamentos profundos na cabeça, que ninguém acessa. Que cê não quer mais tentar explicar. Que parece inútil tentar resolver. Sei porque é assim comigo. Os caras ao teu redor jogando sinuca no bar, que não são "petistas" nem um pouco sensíveis, nunca vão entender. Quem puder te ver, vai te ver acender outro cigarro e se confundir no meio das pessoas. Ninguém vai suspeitar que no fim do dia esse aperto no peito te dói mais. Que o ar falta mais. Que o estômago reclama mais. Cê não vai deixar eles saberem. Cê vai pedir outra cerveja pra evitar os olhos de se cruzarem. Eu vou atravessar a rua, apressada no salto quinze. Ninguém vai prestar atenção. A gente não vai saber o que aconteceu depois de nada acontecer. Cê vai achar que vacilou. Eu também. Depois vou lembrar de ti com o corpo em guerra: coragem e sabotagem, efeitos colaterais. Essa melancolia de hormônio sintético e essa introspecção de uma hora pra outra. A nuvem cinza que se recolhe no peito. Metamorfose inversa, como uma borboleta que se fecha no casulo até ficar feia e tosca igual lagarta. Cê vai fumar mais um. Eu vou abrir a janela do carro, porque não consigo respirar direito só de me lembrar. Eu vou abrir a janela do carro. Mas não vou me abrir. O dia vai terminar igual a tantos outros. Não era esse o jogo? Cê vai suspirar fundo lembrando que eu fui embora, como quem perdoa o que eu não digo. Eu acelero. Eu tô fugindo. Da armadilha de repetir a história, de você e de mim.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Demônia

Dizem que as sereias são demônios marinhos. Não é engraçado!? Você me apresentou Nando Moreno e eu não gostei porque achei muito parecido com Eduardo Costa mas ainda assim, ou quem sabe por isso mesmo, outra vez eu segundei com Kafka reescrevendo o mito de Ulisses na cabeça, numa das minhas passagens literárias preferidas de todos os tempos: "Para se prevenir das sereias, Ulisses tampa as orelhas com cera e se faz prender ao mastro […] Ele confiava totalmente no punhado de cera, nas cordas que o prendiam, e no prazer inocente de confrontar as sereias, que possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto, que é o seu silêncio. Pode-se conceber, embora tal não aconteça, que alguém possa escapar de sua música, mas certamente não de seu silêncio [...]".
É segunda-feira e eu acordei no teu peito, mas antes do meio-dia eu percebi que você era o herói porque tinha escolhido não dar voz à sereia. E, sendo assim, a menos que uma outra casualidade tão enorme e pontual quanto a última nos acontecesse, não nos encontraríamos mais tão cedo como nas últimas duas noites. Embora conheçamos nossos nomes completos e eu saiba o teu endereço de cor. 
Nesta era de excesso, você me pôs num lugar de não-fala. Um exílio para desconfiar em silêncio, com progressão geométrica, da promessa de repetirmos tudo um pouco diferente daqui a sete anos. Tornando impossível que neste meio tempo eu lhe corrompa com a minha obsessão por falar a verdade, cooptar o mocinho para o meu time e consertá-lo no fundo do meu mar.
É mais ou menos como se, pondo cera nos ouvidos, você tivesse escolhido utilizar o que é feito para uma coisa para fazer outra. Um secador de cabelo para desembaçar o espelho do banheiro ou algo assim. Ter à mão uma sereia e escolher que ela não cante é um enigma que se desvenda fácil. De Édipo a Electra, passando pelas pessoas atrás destas janelas que se vê da janela de onde se vê toda a cidade no escuro da noite, todas as nossas tragédias são extremamente parecidas. E se é verdade que evitar que eu cante pode te poupar de algumas dores de cabeça, também preciso te lembrar que ninguém é capaz de se prevenir do impacto de uma sereia em silêncio.
Que será? Eu me pergunto e tua determinação ri dos meus encantos com a força de um soco na boca. Caso não durem mesmo mais que uma semana, sei que depois um de nós ainda vai lembrar que, mesmo quieta, eu sou demônia e capturei de perto um pouco do brilho do teu par de olhos pequeno.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Aviões de verdade

A flexão é um ato kamikaze. Você estica os cotovelos com os pés em posição de prancha ou joelhos apoiados e se projeta contra o chão com uma coragem absurda, confiando que os músculos dos braços darão conta de te botar para cima novamente, repetidas vezes. Porque dão. Eles sempre dão.
O movimento tonifica o corpo. Se você contrair o abdômen, melhor ainda. Quanto mais flexões você faz, mais fará da próxima vez. Mas precisa se dispor a ir e voltar do nível mais baixo que a gravidade permitir, de preferência sem soltar o peso todo, num mergulho contra o solo que adianta a cabeça muito para a frente das mãos. Dá um pouco de medo no início, mas passa. Depois da primeira vez só melhora, porque você adquire a autoconfiança de saber o que está fazendo e passa a fazer conscientemente. Às vezes sem querer fazer. Às vezes com os braços tremendo, como se tivessem medo de sair da inércia, a condição mais confortável. Às vezes você vai descansar exausto, com o rosto encostado no tatame, e tudo bem. Porque isso ajuda no processo de se dar conta de que envergará todo muitas vezes, mas não quebrará nunca.
Os ombros também precisam dar conta do recado, porque guardam uma das articulações fundamentais para que tudo aconteça. É preciso esquecer do quanto pesa. É preciso botar a matéria à disposição da metáfora. E se na gramática as palavras se contorcem em flexão para virarem outras no pretérito imperfeito, no futuro ou no presente e no imperativo, a verdade é que para fletir na vida é preciso confiar em si mesmo com toda a dedicação, de absolutamente todos os músculos. Inclusive do coração. Para fazer uma flexão que te torne mais forte com sucesso, você vai precisar de um corpo e de coragem para usá-lo para emergir.
A flexão é uma verdade que vem à tona. Você se reconhece humano e em constante progresso. A flexão exige força e, ao mesmo tempo, te faz cada vez mais forte. É como finalmente substituir aviões de papel por aviões de verdade.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Soterrar

Pra que endereço eu mando o faqueiro de prata e um cartão com o passe bem, muitas felicidades, que os filhos venham com saúde!? Como é que eu faço pra ser testemunha desse grandioso momento e, ao mesmo tempo, manter o sorriso na cara e os prazos em dia? Como é que eu vou lidar sozinha com esta merda? Pior: como é que eu vou lidar acompanhada com esta merda imensa, sem que ninguém perceba? Se eu ainda corro de medo de não estar pronta para a vida ao menor sinal de proximidade. O que que sobrou pra mim além deste orgulho grande, duro e indigesto, que não vai bem com feijão, com cerveja, com nada? Quantas camadas de lama grossa serão necessárias para soterrar mais esta? Que belo timing! Francamente, que belo timing. Como é que eu vou continuar sendo capaz de substituí-lo por alguém que vive de renda e nunca ouve Caetano? Eu vou lamber o chão de quantas praias paradisíacas, palácios e monumentos históricos até conseguir deixar de vez tudo pra lá? Quantas milhas eu vou peregrinar pra finalmente esquecer e me encontrar? Quão reclusa eu vou precisar ficar? Como expurgar estes demônios que agora cantam alto nos meus ouvidos? Quantas contas eu vou refazer sobre os preços que eu não pagaria para tê-lo por perto? Quando é que eu vou aprender a perder a competição do jogo do contente? Se eu tenho uma falta de talento nata para não ser honesta comigo mesma. Quando é que vai deixar de fazer diferença? Quando é que eu vou ouvir - e acreditar - na minha própria voz me explicando com toda a calma e paciência que agora sim, mocinha, veja bem, agora sim aquele tempo é final e definitivamente longe demais.

domingo, 31 de março de 2019

De carne, de queijo ou de fruta.

Estou interessada no que acontecerá depois que eu te invadir. Eu, para variar, não admito que agora venha o tédio. Quem é você depois que eu meter o pé na porta? E por detrás desta cortina. Quem é você nu de toda esta parafernalha tecnológica e este relógio enorme no pulso? Se eu limpar até o caroço desse teu cinismo e eliminá-lo da cena. Depois de eu atravessar a beleza, a ilusão e o consumismo dos primeiros atos. Depois que não te sobrar nenhuma gota do benefício da dúvida. Quando for depois de eu me dar conta de que não és um graveto. O que a tua ilha me reserva? O que tem no fundo da tua gaveta guardado pra mim? Serás potente o suficiente para bancar a segunda rodada deste jogo? Eu quero saber se você vai sustentar a panca. Eu pago e dobro a aposta para ver a próxima jogada. Vai ser lirismo, calmaria, uma viagem a dois, o deslumbramento da experiência ou o meu gozo no ato? Deixa eu ver um pouco mais de perto se você tem futuro. Se vai me fazer soltar um foguete por dia pela tua chegada. Se quem perde sou eu se a gente não der pé, ou se não. Eu acho melhor você ter guardado um pedaço de carne, de queijo ou de fruta para o final deste prato, porque já sublimei tudo o mais que havia para resolver antes do melhor chegar.

sexta-feira, 22 de março de 2019

Anônimo


No oitavo dia, fez-se o vácuo. Um hiato que denunciava que eu não exercia mais nenhum poder sobre a minha criação. Senti um gosto estranho na boca e uma ressaca nos músculos pélvicos. Deve ser assim parir. Devolver para o mundo o que nunca deixou de ser dele, com todas as angústias e incertezas do fim da gestação. Você agora era um cara totalmente diferente, finalmente dissociado de qualquer influência minha. O que era estranho mas bonito, e pensando bem eu bem que podia colocar este episódio no meu portfólio como a magnum opus da porra toda: a vez em que eu finalmente influí no conserto de um homem, ainda que não tenha desfrutado disto.
Depois de irmos do céu para a terra e depois de eu reinventar a sua humanidade, bem no fim você desgarrou de mim. Era de se esperar. Partiu-se um cordão que tecemos por meses com agulhas grossas, e eu contemplei o que havíamos sido um para o outro com todo o vazio e o oco que agora havia, feito abismo, entre nós. Você amou de novo outra pessoa quando eu ainda era incapaz de lidar com o entulho que tinha ficado e ia se amontoando. E você nem me viu enquanto cruzou esta ponte, descalço e cego. Mas eu não vou dizer que era cedo. Não guardei desejos maléficos para depois do fim. Gastei todos neste processo. Para te ser franca, se eu pudesse, teria me desfeito de você muito antes. Antes eu só não podia.
Num exercício constelatório, pus em fila todos os meus personagens preferidos que morreram nos livros e nos filmes, sem que por isso eu ou a história houvéssemos acabado junto ou perdido o sentido. E de repente você apareceu metido entre eles. Um rosto familiar no meio dos que se foram para nunca mais. Atrás de você uma moça. Com uns cabelos cacheados e uma coisa carnavalesca em formato de coração na cabeça, deusa do amor guiando o teu caminho por outro caminho.
Francamente, o oitavo dia era o tempo perfeito. Não havia mais o que criar, recriar ou contemplar na minha cabeça. Só fui capaz de enxergar ali. Com a memória em pedaços. Vasculhei em busca de resiliência no armário, porque ainda precisava. Era um trapo velho esquecido num canto. Mas ainda me servia sob medida. Vesti. Funcionou. Não doía mais. Não fazia mais sentido nenhum estender as mãos. Era até bonito ver que eu tinha te parido melhor do que era antes, mesmo que ninguém visse nunca a minha assinatura.
Quando compreendi que a arte é maior que seu autor, te larguei anônimo no mundo e pude deixar de sentir o amargo no fundo da língua. Relaxei os músculos e soube que já era tempo de aceitar que nossos corpos haviam expelido cada pedaço sólido um do outro. Até os que tínhamos trancados no meio dos dentes, fazendo peso nas ancas, cravados como espinho entre os tecidos moles. Agora sei que eu não preciso mais fazer força. Que este ouriço está parido. E que o problema maior da ignorância é que ela é cheia de lacunas que vão se completando com a nossa imaginação, de qualquer forma. E que a nossa imaginação se expande. Como este buraco negro. Em direção ao vácuo do oitavo dia. Para o nada. Para um recanto do universo ao qual ninguém nunca teve acesso. Para nunca mais.

terça-feira, 19 de março de 2019

Dois coelhos

Nossos joelhos estão roxos por baixo das calças e só nós sabemos o por quê. É de uma intimidade muito maior do que o sexo. Quando eu olho mais para a tua boca do que para os teus cabelos, sei que estou perdida. E você talvez suspeite, porque me olha do extremo oposto do banco de trás e eu fico calma por sete segundos. Sei que estou fazendo tipo: o seu ou algum, qualquer que seja. Nem por isso a minha calma é falsa. Não é que você saiba de cor o caminho, mas você sabe fazer parecer que sim. Que tudo dará certo, que há tempo para tudo, que as coisas são como são. Simples. E aí eu te espremo e não sai nada. Eu retorço você como à metade de um limão ou de uma laranja e não sai uma gota. Será plástico? Está tudo bem. Está tudo bem, porque talvez a tua falta de suco ou de seiva me traga algum equilíbrio na busca. E a tua mão entrelaça na minha olhando as unhas miúdas e não faço a mais vaga ideia se você suspeita ou não que a do anelar da mão esquerda é postiça. Botei anteontem e torci para que ninguém percebesse. Você percebe? Não consigo adivinhar se isto é importante, porque afinal eu te espremo e ainda não sai nada. Eu conheço os animais de estimação que frequentam a casa, e aquele ímã da geladeira que parece um moai mas veio de outro lugar que não a Ilha de Páscoa, mas eu não quero voltar ao tema. Não quero me demorar, embora perceba que agora eu posso, se quiser. Que é bem possível que você venha a querer. Que querer o outro de novo, pelo menos mais uma vez, é o contato mais íntimo que se pode estabelecer. Os gelos se quebram sobre a pia da cozinha e fazem barulho. Ninguém acorda. Ninguém aparece. Pisca uma luz verde naquilo no canto da sala, que eu nunca sei se é um sensor de alarme ou uma câmera. A cozinha fica suspensa nesta possibilidade que agora somos eu e você. Compartilharemos algum destino? E, afinal, isso importa? Se os seus beijos são grandes, e nossos joelhos estão roxos por baixo das calças. E se ninguém mais suspeita que estamos aqui e algo em nós nos complementa. A gente ainda não tem certeza, mas tenta. Aproveita a intimidade. A intimidade que é este fio laranja bordado cuja cor persiste depois de lavar, e que convém admirar com cautela. Não sei o que a vida me dá quando me dá você de novo, tudo tão fácil e calmo, mas sei que quando ela nos dá dois coelhos, às vezes é melhor deixá-los soltos na garagem para ver o que acontece.

Chopin

Eu me lembro da primeira vez que vi um homem tocar violino. A mão direita subia e descia como a de um cirurgião habilidoso, com trejeitos muito típicos e uns óculos ovalados mirando o instrumento de canto. O pescoço retorcido e uma feição de êxtase e contentamento com a própria produção artística que só tem quem tem muita certeza do que faz. Eu acho até que ele chegou a fechar os olhos por alguns momentos, para sentir o que estava fazendo. A cena era linda. Já era o fim do inverno mas fazia frio e eu tinha me ajeitado na arquibancada e esquecido do celular e da hora e do desconforto, e só ouvia aquele som feito por aquele homem, encarando-o com um espanto na medida em que o concerto avançava. Como se fosse uma novidade que o som do violino saísse dali (de um violino tocando uma pessoa). Como se houvesse algum outro jeito ou espaço pequeno para que o som saísse entre as cordas e as cerdas. Como se. Como se. Como se. Pra mim, como se tudo fosse sempre um simulacro do que na verdade é. Lembro de suar um pouco na palma das mãos e na dobra dos joelhos. De nervosa. As pupilas dilatando. Um cheiro de hormônio saindo dos poros. Estava apaixonada! Devo ter ficado corada porque lembro de não conseguir, definitivamente não conseguir deslançar a mirada dele por duas horas ou menos, apesar de todos os outros instrumentos de corda que formavam um semicírculo ao redor e de toda a plateia. Enxergar o violinista em seu mister produziu em mim efeitos devastadores, e pouco importa que não tenham sido inéditos. Nunca mais pude ouvir música clássica sem lembrar daquele dia. Jamais pude pronunciar Chopin do jeito errado depois daquele episódio em que estive obcecada em puro amor e franco interesse romântico numa figura de quem não ouvi mais do que as explicações entre o prelúdio de um excerto e outro. Lembro de sair do teatro improvisado com as mãos enfiadas nos bolsos, envergonhada de que alguém pudesse reparar quanta atenção à apresentação eu havia dedicado. Desde então devoro tantos textos de psicanálise quanto me são possíveis e busco - é bem verdade, sem muito progresso - investigar o magnetismo que aquilo provocou em mim. Vou buscando um autor que já tenha se debruçado sobre o tema. Que explique o meu fascínio sobre o intangível e repasse a receita para voltá-lo - como um olhar - para dentro. Que dê a lição de que o outro não existe para que eu sacie nele o meu desejo por lirismo. Que diga que a satisfação dos próprios desejos não é coisa que se delegue.
Eu me lembro do quanto me custou, muito depois, perceber que não amei o violinista naquele fim de tarde, mas apenas a ponte entre nós formada pela arte: que, afinal, não leva a lugares muito distantes de mim.

sábado, 9 de março de 2019

Take me to church


Na quarta de cinzas, rezei para desquerer a nossa química, desenviar aquela mensagem e dessentir a correnteza desse frio na barriga me levando de novo para o centro do furacão, mesmo sabendo que certos verbos e feitiços não admitem ser desfeitos. E nem combina comigo tentar, porque sei que eu não posso contra a força avassaladora da ação e de como me sinto quando encontro Deus nos detalhes. Dobrei os braços e sobrepus as mãos torcendo para que a luz do mesmo sol que te guiou pelas esquinas de Los Angeles em direção à tua melhor epifania também me ensinasse a lidar com o carnaval do nosso encontro. Com o que viesse ou não viesse depois.
Você ainda não sabe, mas eu só acredito nesse Deus de coincidências. Arquitetadas coincidências, como a nossa. Eu passo meses cega, e de repente sou capaz de enxergá-lo na areia, na cor do céu e nos pássaros do fim de tarde. Na figura de capuz das tuas costas. No pé magro que carimba pegadas no mundo. Naquela mesa para quatro em que só havia nós. No cachorro preto lustroso abanando o rabo. Eu só congrego na fé dos encontros marcados. Quase posso sentir palpável girando no ar o milagre da sincronicidade quando descubro que você também vive querendo saber quanto do mundo é acaso e o quanto é livre-arbítrio.
Ensina-me com bondade e paciência sobre a existência de um passo adiante do karma yoga. Sou toda ouvidos. Não há poro meu que não implore por semelhante aprendizado. Ensina-me a conversar sobre os livros que eu ainda não li, e a lê-los. A imaginar sequoias com uivos de vento em lugares magnânimos em que eu nunca estive. E, de repente, a estar um pouco neles pelo brilho nos teus olhos. Faça as contas: não é pedir demais. A gente sabe que os miseráveis da mesa ao lado jamais suspeitarão como é sentir nada semelhante. Que não são capazes de imaginar como o mundo está girando aqui agora. Que nem a sua mãe conhece estes pequenos defeitos na voltinha do teu nariz que eu acabei de descobrir e decorar sem fazer esforço nenhum. A gente não precisa dizer em voz alta que essa rachadura na minha xícara foi feita para caber a cordinha do chá. A gente sabe. De tão intuitivo, é anti-intuitivo. Você sabe, você sabe e eu tenho certeza de que só encontros assim nos curam de nós e de nossas solidões.
Ensina-me a deixar fluir com toda a força. Aprende comigo a deixar correr, como correm a vida nos trilhos e o sangue nas veias. Atua como este poderoso instrumento. Abre as portas. Deixa atravessar a Lagoa, e o mar, e o mundo. E enxerga a virtude nessa minha obsessão. Conserva com algum espanto essa tua tez de quem apetita que Nietzsche regresse. Ensina-me a ser eu como eu venho querendo ser há muito e nem me percebia. Caminha comigo. Mancha o dínamo do meu entusiasmo com a tinta da tua pele, feito combustível. Take me to church. Ou só ilumina a porta de entrada. Em ti aceito, de novo, sem saber por quê, qualquer coisa entre o profano e o sagrado.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Algures

"[...] E agora eras tu que me abandonavas, que tinhas pressa de regressar à tua vida real - tão longe do deserto, tão longe do sonho, tão longe da nossa solidão a dois! Abandonavas-me assim, doente numa cama de hospital, como não se deve abandonar ninguém que nos ame, pois não?

Foste-te embora, foram-se embora as outras visitas desse dia, uma enfermeira veio dar-me um remédio e mudar o frasco de soro, e eu fiquei sozinha, a pensar em ti e na tua visita. Através da janela do quarto, percebi que a tarde estava a acabar e que as luzes da cidade se iam acendendo. Lá de fora vinha o ruído do trânsito ao fim do dia, um ruído de gente e automóveis apressados, gente que queria voltar para casa, onde estavam os que amavam ou os que se tinham habituado a amar, sem fazer demasiadas perguntas nem exigir nada mais do que esse amor tranquilo de todos os dias. É verdade que nunca quis ou nunca vivi para querer isso para mim. Queria mais, vê tu! Queria viver no limite todos os dias, queria que as coisas estivessem sempre a correr. Conhecer novas pessoas todo o tempo, sair, ir a discotecas, divertir-me todos os dias, sentir que podia seduzir todos a minha volta e brincar com isso. Mas agora, agora que a noite chegou e que fiquei sozinha, agora que sei que também tu voltaste para uma casa onde tens alguém à tua espera, alguém que te ama, alguém que te dá paz, também a mim, de repente, me apetecia poder ir para casa e ter à minha espera alguém que me amasse. Não, não estou a dizer que queria que fosses tu. Não estou a dizer isso, estou a falar de alguém. Alguém sem nome.

Eu sei que algures, mais adiante na minha vida, hei-de encontrar quem esteja em casa à minha espera quando eu chegar. Sim, eu sei, está escrito, é sempre assim. Mas era agora que eu queria não sentir este vazio, não te sentir tão distante, tão longe do deserto. Queria só dar um sentido à nossa viagem. Já sei, já sei que nada dura para sempre - só as montanhas e os rios, meu sábio. Mas o que fomos nós um para o outro: apenas companheiros ocasionais de viagem? Com o tempo contado, com tudo previamente estabelecido e com prazo de validade previsto à partida? Foi só isso, diz-me, foi só isso o nosso encontro? Não ficou mais nada lá atrás, não deixamos nada de nós, os dois, no deserto que atravessamos? [...]"

(Miguel Sousa Tavares, in: No teu deserto. Companhia das Letras, 2009, p. 108).

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Trofeuzinho

Você não me chacoalha. Não importa o quanto se atreva. Eu não visto minha saia florida para lhe esperar no domingo, nem olhei para trás enquanto manobrava o carro para partir todas as vezes. Sinais claros de que você é aquele lugar que eu não vou guardar para comer confortável enquanto a fila tá grande, porque acho deselegante. E não é que você tenha culpa ou não seja apetitoso, não. Eu quem já cheguei dando de ombros. De blusa furada. Querendo passar o tempo. Trocando a lente pelos óculos. Feministando e fazendo pouco caso. O que é quase a mesma coisa. Manifestando um pouquinho essa ojeriza que me bate ao misturar a energia do meu corpo com outro corpo cuja cabeça é tão diferente da minha. Mais uma dessas grandes bobagens espirituais do novo século. Mas aí você exagerou: abusou da ênclise. E da minha boa vontade. Abriu os botões da camisa. Tirou a barba. Fez enquete. Contraiu o bíceps para a plateia, mostrando que era um piadista pouco inspirado e sem cerimônia para brincar sobre vantagens pessoais, mas também achava que era o super homem. No escuro da minha caverna, eu bati palma para a sua tentativa. Mas tive certeza de que não dava mais para mim. E para a minha superioridade. Ou para os seus melindres. O seu portanto é perante e, ainda assim, você é muito pedante. De uma pobreza de espírito radioativa, que me arranca todo o remorso em ser, também eu, um pouco espírito de porco, como estou sendo agora. Finalmente tive coragem de jogar você inteiro para a torcida. Perdeu por aclamação e unanimidade. Nascemos falidos, eles disseram. E ninguém ousou argumentar com o papo da compensação histórica.
Se escrevo é porque, além de babaca, eu sei ser justa. Se eu não perdoo, não é por nada, é só porque você não me chacoalha. Não balança a estrutura. Não me dá abalo Císmico. Temo que eu não queira lidar com você porque tenho preguiça. Suspeito que não esteja no mundo para lhe morder e lhe assoprar, embora desejo que você encontre alguém que esteja. Não me disponho a passar mais vergonha com você no meu parquinho. Por isso, sei que não será amor. Já que amor é sobretudo se dispor a passar vergonha no parquinho. Ou pelo menos arcar com este risco. E eu, em se tratando de você, desisti antes de tentar. Não sei dizer se o problema é comigo ou se você é o inseto de asinhas bonitas que não voa. Só tenho certeza de que não quero que as suas patinhas sujem mais o meu terreno sagrado. Passe bem! Mantenha os brios. Seja você. Não se jogue no chão. Queria sentir muito.
Não há desapontamento maior que o de varrer alguém da vida e não doer.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Gosto de morte

Só me dei conta de que eles já tinham devorado seis cigarros seguidos cada um enquanto atualizávamos uns aos outros sobre como tínhamos passado a noite quando, bastante íntimo, ele perguntou a ela se tinha café em casa. Meu nariz de fumante passiva ardia, e a ideia de tomar uma xícara de café naquela hora da manhã parecia perfeita, mas perigosa. Eu não precisava ter visão de raio-x para ver a úlcera se formando lenta nos nossos estômagos com aquela combinação.
Não há papila gustativa na minha boca que não recorde da pasta de dente impregnada nas dobras das nossas línguas da noite anterior, meio que sem enxaguar, para mascarar a ressaca. A cada aproximação era como se eu girasse o indicador inteiro dentro de um cinzeiro cheio e pusesse na boca com vontade, achando que era goiabada. E esquecesse e em seguida pusesse de novo e de novo, até dar um pouco de náusea. "Gosto de morte!"
Senti a frase pontiaguda entrar entre a quarta e quinta costela da minha própria barriga, ouvindo com espanto, como se as palavras tivessem vindo do além. Um espectro incontido da minha consciência. Ele sorriu amarelo-nicotina, mais do que os vãos entre os dentes. Ela encolheu bem os ombros e expirou na direção dos pés um cinza difuso, de certo bem da cor dos nossos pulmões e com a profundidade das rugas. Quase não pude crer que eu tinha dito aquilo em voz alta. O olhar deles se cruzou por meio segundo. Fazia calor e tinha nuvem, mas àquela altura o clima seria horrível, fosse como fosse. Eu estava indiscutivelmente fora daquele sentimento empático de cumplicidade, que envolvia somente os adictos.
Eles concordaram. Fizeram piada. Rimos todos, um pouco nervosos. Depois fizemos silêncio. Depois a chaleira ferveu. Tomei meu café instantâneo com leite e duas colheres de inconveniência. Morno. Amargo, como era de se imaginar. Conversamos e desconversamos. Não comemos nada por horas. Parecia prova de resistência. E o corpo pondo pra fora um fel unânime que se espalhava por todo o recinto. Almoçamos duas da tarde. Na sesta, deitei no peito dele no sofá improvisado. Tenho certeza que os meus cabelos e os dele tinham o mesmo cheiro. Senti os dedos que passavam de leve nas minhas costas nuas, tão ternos que pareciam querer arrancar minha culpa com afeto, sem eu precisar pedir desculpa por nada.
Ali, naquele afago, eu quis contar a ele que, apesar de tudo, eu não fui sempre assim. Quis confidenciar que na segunda-feira eu voltaria à minha vida normal e me sentiria uma super heroína que combate a moral e os bons costumes pelas ruas da metrópole nas horas vagas, quando ninguém está olhando. Também por causa dos beijos tóxicos dele. Quis falar qualquer coisa que não deixasse suspeita de que eu chegaria em casa e, sim, correria para o banho, e, sim, esfregaria o sabonete nos braços e nas pernas e no rosto inteiro com muito mais força do que é costume. E esfregaria shampoo atrás das orelhas e escovaria os dentes com cuidado, como num ritual. Quis contar da impressão de que ele jamais acessaria a camada mais profunda de mim. Que não se infiltraria pelos meus poros. E o quanto ele deveria agradecer aos céus por isso. Quis explicar que eu sei bem como é querer tanto manter algo aceso, ao alcance da mão, por pior que seja o gosto na boca e por mais danosos que sejam os efeitos.
Era tarde. Fiquei muda. Ele acendeu mais um no anterior, sem controle. Encostou os lábios finos no filtro novinho e branco e se empenhou tanto no movimento de sucção que, por trás da cabana feita para não apagar a chama, eu via as bochechas magras afundarem entre as duas carreiras de dentes, deixando-o ainda mais magro e mais pálido. Sorriu um sorriso envolto naquela névoa venenosa. Olhei fixo para aquela possibilidade que ele tinha me dado. Poderíamos viver aquelas horas sem nos importar ou apenas tragar a morte juntos, enquanto vivíamos. Só dependia escolher.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Cavo um abismo

É sempre o mesmo tango
Em frente às mesmas portas
E meus sapatos estão rotos
De dar voltas
Fazendo buraco no chão
Fazendo que vão e não vão

Saio pra ver o movimento da cidade
Só pra ver no que vai dar
E dou.
E dou num muro de tijolos. Lindo, forte e tosco. Tão extenso que não se sabe qual dos lados protege. Dividindo todas as coisas em continentes de antes e depois de uma grande beleza. Um divisor entre nós, os líricos inveterados e enfastiados de dançar sempre o mesmo tango em frente às mesmas portas, e aqueles que sofrem um sofrimento desconhecido, porque sem eco na literatura. Passo as bolinhas gordas do lado de baixo dos últimos dedos pequenos do pé contra esse muro. Não é desprezo. É um flerte. E penso apenas: venha cá. Desdivida-nos. Equilibre-nos. Tu és tão bonito. E eu tenho sede para dois. Quero ralar os meus joelhos para te alcançar e transpor. Como se não importasse. Alcançar. Quero ficar de barriga para cima, do lado de lá, contemplando a grande beleza. Não a tua, mas a deste gesto. Sem cigarro. Sem subterfúgio. Numa simplicidade infantil e tosca e hábil, como a tua. Forte. Casco de tartaruga. Ninja. Justo aquela da qual ninguém se lembra do nome, porque não estudou arte o suficiente. Tão bonito, tão bonito que só podia mesmo estar do outro lado esse tempo todo, ignorando os preceitos mais básicos da noção de profundidade.
Cavo um abismo cada vez mais fundo
E tu te amontoas,
o Everest.
É sempre o mesmo tango
Em frente às mesmas portas
E meus sapatos estão rotos
De dar voltas
Fazendo buraco no chão
Quero alcançar meu inferno e tu
Teu céu.