terça-feira, 7 de julho de 2020

Louca de homem

Do interior da cidade de onde eu venho vem também a história de uma jovem que enloucou de homem. Tinha uma família boa, foi bem criada, estudou e usava umas saias até o joelho, como mandava o figurino da época. A menina era um primor. Mas quando as pessoas se deram por si, ela enloucou de homem! Não é que tenha virado quenga, não - embora isto sempre dependa muito da perspectiva moral com que se olhe para as situações. O que conta o senso comum é só que seus pensamentos se descaminhavam muito nitidamente quando chegava perto de um homem. A ponto de não dizer coisa com coisa e sair estrada afora com o dedo anelar sem adorno para o alto dizendo: aqui não aqui não aqui não! E às vezes era só o padeiro passando, o filho da vizinha em uma bicicleta, qualquer homem praticamente incapaz de lhe fazer mal algum.
Para que se curasse dos maus hábitos, às vezes passava meses enclausurada sozinha no sanatório da Vila Inês. Todo mundo sabia, mas fazia de conta que não, para manter as aparências. Diz-se que voltava sempre como quem volta de uma viagem, revigorada. Noutras ocasiões a família, farta de suas sandices, rendia-se a deixá-la fazer das suas em público. Assim, diz-se, foi se construindo sua fama e, sobretudo, foram-se todos acostumando com a acidez de seu comportamento, que nem por isso deixava de ser bastante patológico.
Houve vez de um grupo inteiro de oito estudantes de Medicina descer da capital só para se debruçar sobre seu caso. Quiseram testar se a literatura técnica e seus microscópios e tubos de ensaio davam conta de explicar a causa, uma predisposição, os sintomas e o potencial contagioso da doença. Mas não teve jeito. Só o que conseguiram descobrir era que as enloucadas dela começaram no dia em que viu um moço muito bonito cruzar a rua e sem querer ele desplugou o fone de ouvido da caixa de som que carregava no bolso e, no ato, a praça da cidade foi tomada de um barulho muito alto, meio triste, dançante e melancólico.
Pensava-se inicialmente que ela houvesse ficado fascinada com aquilo, tanto, que seguiu o moço até encontrá-lo. Sabe-se que o encontrou sentado num banco da estação, os fones de volta nas orelhas, sem prestar-lhe a mínima atenção. E ela gritava e era como se surdo da música alta ele também ficasse cego para sua mímica agitada que não tinha fim e também ficasse não-tátil pra os chacoalhões que ela lhe dava nos ombros para chamar-lhe a atenção plena.
Conta-se a boca pequena que foi a maior vergonha que já se viu uma mulher passar quando ele seguiu, impassível, com a mala e o chapéu na mão, e tomou o primeiro trem para longe. E ela ali, naquela afobação teatral. Naquele mesmo dia, mais tarde, diz-se no interior da minha cidade que a jovem contou a uma amiga que queria só devolver a ele um lenço branco de anil que deixou cair na frente da farmácia e, com tanto barulho e espantamento, ninguém reparou. Mas já nem a amiga lhe acreditava.
Dali pra frente, ela enloucou de homem. Não havia mais qualquer deles sobre a Terra que pudesse chegar perto sem acordar nela um grave tique nervoso. Às vezes, ouvi dizer, ela vociferava outros berros além daquele típico do anelar em riste. Coisas como: quero água, quero água, pão e vinho e atenção, água/pão/vinho/atenção, água/pão/vinho/atenção. Repetidas vezes, até cair de sono exausta ou dopada e acordar mais uma vez dentro da ambulância ou já nos leitos brancos e assépticos da ala psiquiátrica. A fim de conseguirem contê-la um pouco para regressar à vida em sociedade, mantida a saúde pública e a dela própria.
Porque é sabido até hoje no interior de onde eu vim que se um homem lhe tocasse quando estava naquele estado de nervos típico de quando um homem lhe havia acabado de tocar, brevemente também recaía sobre ele uma enxaqueca terrível, e a sequela que ficava quando a dor de cabeça passava era não entender mais uma palavra que não fosse literal. Música então, nem pensar. Parecia mandinga. Ou uma coisa de energia mitológica medusiana, seja lá como funcione evocar estas coisas.
Antes que eu nascesse, deram-se os fatos de seu óbito. Conto de ouvir falar, porque acho a história curiosa e toda muito pitoresca. Daquelas que só se ouve com tanta riqueza mentida de detalhes no interior do interior, depois de muito telefone sem-fio. Pois diz a anedota de seu passamento que a jovem, já não tão jovem, acostumada a enloucar muito de homem desde muito nova, um dia ouviu no corredor do mercado começar a tocar baixinho e ir-se avolumando aquela mesma música que se ouviu na praça da cidade inteira no fatídico primeiro dia de seu enloucamento.
Diz-se que todos presentes no estabelecimento que conheciam a história e também os seus floreios posteriores ficaram apreensivos. Esperaram, esperaram, atentos e temerosos. E nada do espetáculo inconveniente de sempre. Quem esteve lá jura que era como se ela não estivesse sentindo nada. E diz-se que parecia estar se esforçando muito para ocorrer o contrário.
Da última vez que suspirou, não houve griteiro nem chilique. Ela não espumou de ódio de homem nenhum, como se esperava. E então caiu devagar, escorando-se no carrinho cheio de compras. Tinha perdido o viço. O brilho nos olhos inteiro de uma vez. Por um momento ligeiro a vida parecia passar-lhe como flash, disseram os presentes. Tudo enquanto ela caía lenta entre a prateleira do trigo e a do arroz. Básica e calada como poucas vezes na vida, foi-se encontrar com o que quer que esteja do lado de lá. E embora se possa cogitar que foi para o céu, no auge de sua insana santidade, como se espera que possam ir os inimputáveis, também não há quem possa garantir que uma hora dessas não esteja queimando tranquila no inferno. Não há quem possa garantir que não fosse má e cáustica. Nem que ainda não esteja esperando o derradeiro instante em que a alma do último indie de meia tigela queime inteira na ponta do último cigarro do último moderninho subversivo que brotar desavisado na nossa cidadezinha lá do interior.

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