domingo, 9 de março de 2014

Desatemos


Conheço um senhor muito rabugento. Suas respostas são monossilábicas, sua disposição para o interlocutor é rasa. Ele é arisco no trato, arredio na prosa, sucinto nos gestos. Vez em quando dá um medo de que vá morder alguém que ameaça contato menos trivial e tenta lhe arrancar algo além do "para onde?" "quatro e vinte e cinco". Já presenciei muitas cenas de rispidez gratuita em que ele, circunspecto com seu siso aumentativo, deixa de mostrar os dentes.
Para crianças pequenas, entretanto, ele se abre. Reparei duas vezes ou três: É ver um bebê de colo e ele finalmente arrisca... Só sorrisos. Sou capaz de crer que, na ausência de todos nós, ele afinaria a voz só para agradar a criança e arrancar uma gargalhada pueril, quem sabe tomando o pequeno nos braços e girando no ar. É assim que eu imagino a força materializada que me transmite o sorriso inesperado.
Não sei se é o instinto paterno que aflora, não sei se a infância lhe é memória cara, não sei. Às crianças, ele não cobra a passagem, tampouco o preço da cara fechada de uma vida adulta. Talvez a fragilidade das crianças o compadeça, como faz para a maioria de nós, talvez a fragilidade de qualquer criança se confunda com sua própria fragilidade.
É quando penso que as fragilidades fazem mais do que apiedar. Elas chamam o olhar para o que merece atenção, nas entrelinhas do que escrevemos sobre nós mesmos e nas tentativas falhas de ocultá-las. As fragilidades acendem setas luminosas para o lugar de nossa existência que faz lacuna para ser preenchido com sentimentos bons. Paz e amor, quem sabe os hippies tivessem razão. Para aquele senhor, paz e amor na presença de uma criança.
Nossas fragilidades são pontos sensíveis, às vezes trancafiados a sete caras amarradas nos nós de todos os dias.

Desatemos.