segunda-feira, 24 de maio de 2021

Eu queria ler a minha biografia

Eu te acho absolutamente dissimulada. E, ao ver a sua desfaçatez agir diante dos meus olhos, me apavora pensar no quanto você é capaz de fazer comigo exatamente o mesmo que já vi você fazer com os outros. É que você é muito descarada, mas uma cínica extremamente polida e convincente quando quer. E quase sempre quer. De um mau-caratismo incontestável e, ainda assim, sabe sair de boa-moça. Ou tentar. É quase como se você pensasse que ninguém nota, se tudo for feito pelas beiradas. Mas eu notei. Eu noto. Eu não sou capaz de desnotar. Quem sabe uma aparência de decência e normalidade convença os outros da sua profunda humanidade. Deve ser por isso que me incomodam tanto os seus incômodos. Essa fuga de ser de carne e osso e dar uns berros. Me incomoda o jeito como você aborda as pessoas para falar dos seus incômodos. Me incomoda essa existência robótica que você inventou pra si mesma em público. Um tom que se impõe pela passivo-agressividade e aproveita de alguma posição de desconforto do interlocutor para impregnar o ambiente. De um jeito que às vezes desata a falar, ainda que ninguém queira ouvir. Um jeito de nunca ser objetiva para não arcar com a consequência de pensar como você pensa e fazer o que você faz. Mas eu sei que você faz. Estou te vendo muito, na versão mais crua possível, enquanto você se cozinha toda nesse fogo brando na minha frente, até ferver de raiva. Tudo atrás de um sorriso pseudocortês. É uma coisa que eu já vi antes, mas não lembro muito bem aonde. Talvez naquelas partidas de sinuca onde a bola tangencia uma aresta da mesa e, muito devagar, acerta um ângulo que a gente não percebia antes que existia, mas o jogador sim, porque remoeu tudo de uma maneira ardilosa no início da jogada (vingativa?). Parece te vir muito natural. Essa naturalidade da sua maquiavelice me assombra. Talvez porque seja familiar esse hábito humano de não ser ultra sincero para conseguir conviver com os outros em harmonia. Mas eu acho que você levou isso às últimas consequências. Outro dia li que a gente mente trocentas vezes por dia. Nunca contei quantas vezes eu minto por dia. Ainda assim acho que seria divertido contabilizar uma a uma das suas mentiras num caderninho (sádica?). Pensando bem, eu nem preciso. Sei de cabeça quantas vezes enxerguei o que te interessa. Enxergo o aquecer de seus panos desde o princípio de cada movimento. Enxergo as meias-palavras. Enxergo como você se dirige sempre omitindo o que realmente interessa, para primeiro saber o que lhe interessa, e arquitetar uma situação inteira de desconforto só pra mim. É uma coisa muito eu-e-você rolando na cena. Na terapia eu fui orientada a te envolver numa energia cor-de-rosa em pensamentos para me livrar disso, já que não podemos falar a respeito, mas a verdade é que eu não quero te curar. Não já. Pelo menos não sem antes entender tudo o que se passa e se você é mais boa ou mais má (ressentida?). Eu quero falar mal de você como uma cigarra que berra até perder a casca e depois estourar. Depois tomar um banho e, aí sim, me sentir limpa. Pronta pra outra. Porque no fundo eu sei que tudo isso tem qualquer coisa de espelhamento (e das cinco linhas que já li de psicanálise na vida posso dizer que sim, esta irritação tão profunda não pode vir de outro lugar que não do fato de que enxergo alguma parcela de você em mim, e é só isso que me apavora). Em voz alta eu pretendo negar o quanto puder. Já que pensar que nossos maiores contrastes são, na verdade, feitos de uma tinta que se esmaece em aquarela de mim pra você redobra o acumulado dessa ojeriza. Se penso que toda repulsa que você me provoca também é um pouco minha, de mim pra mim, lembro de uma anedota que ouvi de uma professora do colégio uma vez que dizia que a cada vez que apontamos o dedo, pelo menos outros três ficam virados pra nós. Ficou gravado em mim que tudo que enxergamos no outro pode ser uma parcela de algo nosso com a qual não sabemos lidar. Um conflito interno que, não dissolvido, é regurgitado para o mundo na forma desse rancor azedo. Que seja. Não vou terminar a frase porque ainda não estou pronta para dizer que sei que te abominar pode dizer mais sobre mim do que sobre você. Porque aí, egoísta, vou me obrigar a ser empática. Vou começar a ficar pensando na sua história, nos pequenos rachados da sua estrutura, naqueles traumas familiares cabeludíssimos que eu desconheço e em todos os daddy issues que você não conta a ninguém. Temo que os maus hábitos os denunciem. De qualquer modo, tem também a sua relação com dinheiro e poder. E, se penso nisso, o melhor que posso fazer é sentir pena. Porque este sentimento de um pouco de dó nos alija um pouco do sentimento de ranço, que é o mais danado de todos e se impregna por detrás das pálpebras. E eu não quero sentir ranço de mim através deste meu reflexo no fundo dos seus olhos. Vou olhar para aquela parede agora enquanto vou sendo selecionada para mais este ato do seu faz de conta. Sobretudo porque gosto de pensar que o que te trouxe até aqui também pode te levar para outro lugar. Oxalá eu me leve também.