quinta-feira, 11 de junho de 2020

O solilóquio da coruja

Se eu me concentrar, todo poste pode virar um pedestal. Digo, eu sei me aquietar, fechar os olhos, fazer de cada canto alto o meu altar, o meu templo, o meu ambiente de meditação, e ninguém sequer suspeita que eu estou à espreita. Eu tenho também essa coisa de conseguir torcer o pescoço e enxergar muito mais do que precisaria, ampliando de um jeito meio esquisito o meu campo de visão. Não é exatamente bonito me ver fazer isso, mas acho que é curioso, porque animal praticamente nenhum faz, então talvez se possa chamar essa minha aptidão de fábrica de um "talento diferencial" entre os outros animais. De cima de qualquer árvore eu posso contemplar inteiramente a vida noturna - eu, que tudo vejo, incluso na noite e no oculto, e só Deus sabe a benção e a maldição que isso é, porque já vi muita coisa boa e ruim.
Tenho fama de arquétipo da sabedoria e do conhecimento, mas a verdade é que isso só acontece porque quando se está de boca fechada, calada num canto, como eu fico quase sempre, é mais difícil que se perceba a ausência de inteligência, se for o caso. Então eu saio ganhando pontos nessa questão porque não costumo ser muito eloquente, mas não é exatamente um mérito. É por isso que não me envaideço com os rótulos que me dão no reino animal. Acho que bem no fundo eu sou só uma coruja. Sem muitos predicados. Com a minha carinha redonda, o meu nariz curvado, essa falta de lábios, a penugem meio fosca. É assim que me enxergo nos vidros espelhados dos prédios do centro da cidade, quando saio pra dar uma volta de madrugada. Normalzinha. Coruja-padrão. Garota exemplar.
Às vezes, porém (ou por isso mesmo), eu intuo a presença de alguém que pretende se aproximar. E imediatamente eu sinto uma necessidade profunda de fazer barulho e não sei bem por quê. Talvez queira ser notada. Temida. Respeitada. Talvez queira me provar que eu posso, faço e aconteço. Talvez queira delimitar um perímetro só meu pelas ondas do som, onde seja capaz de imperar soberana. E o pior é que às vezes funciona. Às vezes, basta eu fazer aquela barulheira que eu nem sei o nome, que a bicharada ao redor se contém, se acanha. E não há bicho que não cochiche pelos cantos da relva: "não chega perto, não chega perto que hoje a coruja tá terrível". Só que depois de uma meia hora fazendo barulho eu fico quieta de novo, reflito um pouco e acho tudo uma bobagem imensa. É, bom, pensando melhor, talvez o meu problema seja esse excesso de narcisismo, essa abundância de autoanálise, esse monte de pensamentos sobre mim mesma, essa intenção de fazer com que me vejam assim ou assado, essa coisa "autovenerativa" mas, ao mesmo tempo, bastante autocrítica.
Refletindo agora, é curioso que naquela noite eu tenha saído pra caçar. Faço isso relativamente pouco. Lembro de ter pensado comigo: vou dar uma de louca, depois eu ponho mais essa aventura na conta da cadeia alimentar, do instinto de sobrevivência, da necessidade de dar o que comer às crianças, essa lenga-lenga toda que os humanos fazem, sabe? Eu posso reproduzir esse discurso. O humano, aliás, que inventou essa coisa de mãe-coruja pra falar da superproteção, mas não se dá conta do peso que tem ser uma filha-coruja. E, se me detenho no tema, preciso assumir que somos todas. Somos filhas-corujas, lidando diuturnamente com a necessidade de se impor diante do mundo, de criar uma personalidade, de imprimir nossa marca na nossa própria história e, por que não confessar, de exercer em alguma área da vida a nossa vontade intensa de rebeldia.
Naquela noite eu fui rebelde. Quando me lembro, eu dou uma risadinha. É legal pra caralho de lembrar dessas coisas que eu já fiz. Faço uma cara sacana toda vez. É como se eu tivesse um segredinho comigo mesma e com aquele gato. Bom, por um lado, coitado. Talvez pra ele não tenha sido uma experiência tão divertida assim. Aquele dia me deu uns três minutos de coragem insana e eu avancei contra o chão, pra não deixar pedra sobre pedra. Não tinha ideia do que realmente ia fazer. Pra ser bem honesta, eu teria avançado no que estivesse pela frente. Precisava gastar a minha voracidade, o meu apetite de aventura. Meu lado menina-má. E, bom, era aquele gato que tava na frente. De modo que eu me lancei contra ele com força, com pena, com barulho, de bico e tudo e, lá pela metade da minha empreitada, ele se soltou. Rodopiou no ar, rolou umas dezoito vezes no chão e saiu corrido, ligeiro, ofegante. Com o coração na boca.
No fundo, não sei agora se fui eu quem fui mole na intenção ou se ele foi hábil de se livrar a tempo. Porque, assim, falando bem friamente a respeito, eu sei que o teria devorado logo e voltado pro meu "tédio contemplativo" imediatamente após a refeição. Mas digo mais e vou além: teria outro jeito? Como é que eu ia chegar naquele bichinho bonito, meio filhotão, miado manso, passinho lento, e dizer com voz macia: "com licença, senhor gatinho, você poderia por um acaso assim, quem sabe, por obséquio, me acompanhar até a minha casa pra eu comê-lo vivo?". Não dá, né. Não dá pra fazer esse tipo de coisa se a vontade é de exercer a minha própria rebeldia.
E pra ser franca eu tenho um pressentimento de que gatinhos não funcionam bem o tempo todo assim, na maciota. Eu acho que eles andam com aquela cara de sonsos e despreocupados por aí, catwalk, não sei que lá, como se nada importasse tanto assim, mas precisam também de vez em quando de uma coruja doida pra animar a vida. Ou não se enredariam manhosos nas pernas dos outros fazendo ron-ron e demonstrando gentileza. Acho que eles precisam viver coisas assim pra depois contar aos amigos "Noooossa, cara, e aquela vez que uma coruja quase me pegou e eu consegui escapar!? Foda, man...". Ou talvez essas sejam só as coisas que eu imagino ou gostaria de ouvir um gato dizendo, e a verdade é ligeiramente diferente. Nunca se sabe.
O fato é que cometo tantos gestos contidos durante o dia e durante a noite e durante a vida, enquanto vou voando silenciosamente por aí com essa minha aerodinâmica tão bem adaptada ao ambiente, que esse tipo de evento ganha um lugar especial na minha memória. Sei que enlouqueceria se não fosse um pouco louca às vezes. Tenho certeza de que eu vou fazer de novo sempre, sempre. E não é porque eu não saiba o que é agir com equilíbrio. É que eu não quero. Não quero estar no alto de um poste acima de qualquer instinto ou emoção o tempo todo. Não quero estar sempre imaculada no meu pedestal. Não quero atravessar a vida despercebida, bela e recatada. Não quero pensar no que vai ser do gatinho, no que vão falar ou na descompostura evidente pra quem me assiste realizar estes ataques famintos. Pelo menos em algumas ocasiões posso sentir, perto do chão, que há vida no alto e no chão. Que há corujas e gatos. E que qualquer existência, na natureza inteira, é sempre curta demais pra se negar o direito de arder.

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