segunda-feira, 29 de abril de 2019

Para a parte de mim que já se quebrou antes

Eu te prometo não abrir mais a guarda, construindo fortalezas ao invés de pontes. Eu te prometo não deixar o que você gosta pra mais tarde. Não ceder. Definitivamente nunca ceder. Eu te prometo não dar sossego. E nunca mais deixar, nem mesmo secretamente, o destino de domingo na mão de alguém. Eu te prometo nem cogitar falar sobre sentimento. Não dormir fora de casa. Não dar o suspiro que precede a frouxidão. Não empolgar com uma gentileza. Não romantizar o que deveria ser tratado. Eu te prometo não demonstrar as fragilidades. Não higienizar as feridas na frente dos estranhos. Eu te prometo não abrir mão de absolutamente nenhuma convicção moral para caber em qualquer lugar. Eu juro solenemente que sei elencar prioridades autocentradas e não vou deixar de fazê-lo. Porque eu sei o trabalho que deu chegar até aqui. Pagar na mesma moeda. Recontar os trocados. Eu te prometo tirar força de onde não tem para que nada se repita. Não vou mais perder a direção dos pensamentos no meio da tarde. Eu te prometo não achar que qualquer coincidência é motivo para mais. Eu te prometo que nenhuma boca te fará sorrir mais que a tua própria. Eu te prometo especialmente o que não se promete a ninguém, porque foge do controle. Mas eu te perdoo, de novo, se você cansar de carregar o próprio mundo nas costas sozinha. Para ver recomeçar o quebrar-se e remendar-se. Quente e letrista. Outra vez.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Big bang

Tudo está no seu lugar. Ainda que o amor seja um peixe escorregadio, um corpo ensaboado ou um docinho coberto de gelatina que nos escapa sempre que tentamos firmá-lo entre os dedos. Tem no mundo esta mocinha bem loira de cabelo cacheadinho caminhando com uma sacola de compras e um abacaxi saltando para fora andando na minha frente. Tem o cara dos malabares no sinal e esta barata correndo pela calçada à procura de ser imortal resistindo ao próximo big bang, que é o sapato número quarenta e dois deste idoso lendo o jornal com o pé apoiado na parede da loja de eletrodomésticos. Tudo está onde deveria estar e nessas horas há uma calmaria que vem não sei de onde e cai vacilante como uma folha de outono no assoalho interno da gente. É quando a gente não se importa demais. Não espera demais. Não se detém demais. Não firma as rédeas demais. E flui com o tempo, que afinal é nosso aliado. A gente dá de ombros pra tudo, mas repara e aproveita este pequeno momento de agora, que o desinteresse de depois não tem fresta nem deixa espaço para retroceder. Por ele não passa a luz. Não vamos cortar a ponta da orelha da vida e nem esperar que enrede o rabo embaixo das pernas de quem estiver sentado na mesa de jantar. A gente cobre a aposta. E é curioso que para que esta constatação me venha leve muito leve seja necessário tanto contorcionismo. Ser amado é tão bom que a gente esquece que não é tudo. A sorte é que não há nada em desordem neste mundo. Tudo está no seu lugar.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

O que eu vi em você

A cor quase uniforme da pele. A inacreditável beleza da cova que afunda nas bochechas por baixo da barba quando fala ou sorri. E, por falar em sorriso, a precisão milimétrica com que os olhos estreitam ainda mais quando você se diverte e a sua felicidade invade o lugar ou se anuncia numa piada boba. O jeito de voltar pra perto e sentar um pouco mais próximo de mim a cada vez que levanta. O seco da boca. O calo e o áspero da mão e o seu tamanho. O álibi da juventude. O furinho na barra da calça jeans. Preferir o Marrone. Preferir Vida Vazia. O discurso convicto sobre estar só, que redunda e denuncia precisamente o contrário. A demora do ar fazendo o caminho das suas narinas aos seus pulmões. O seu peito tentando reter o ar para não sufocar, como quem espera impaciente por algo. A voz grossa e meio rouca. O silêncio que você faz quando ainda não ouviu os dois lados da história. O silêncio que escolhe fazer depois. O cansaço. Sobretudo o cansaço de insistir na solidão e esperar, com alguma angústia, ser salvo. O reflexo disforme de mim na tua vitrine, e que só se enxerga a depender de como incide a luz. A possibilidade. Eu vi em você o que eu sei que você sabe ou intui a meu respeito, porque sabe ou intui a respeito de si mesmo. Guardei esta resposta naquele silêncio do carro no outro dia, bem. Esta confissão é um portal que atravessa o tempo, a barreira do som e aquela tangente pela qual eu saí quando você perguntou o que eu vi em você.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Desiderando

"Eu vim pra cá sem coleira, meu amo.
Do meu destino eu mesmo desidero.
[...]
Eu sou culpado de mim.
Vou nunca mais ter nascido em agosto.
No chão de minha voz tem um outono.
[...]
Lugar sem comportamento é o coração.
Ando em vias de ser compartilhado.
Ajeito as nuvens no olho.
A luz das horas me desproporciona.
[...]
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.
[...]
Esses vazios me restritam mais.
Alguns pedaços de mim já são desterro.
......................................
(É a sensatez que aumenta os absurdos?)"
   (Os deslimites da palavra - Manoel de Barros)

Eu posso me justificar com os dissabores aos quais a monogamia já me sujeitou à vontade. Secretamente, pesa em mim uma culpa cristã de se distribuir. O que, como e quantos é justo e aceitável desejar ao mesmo tempo? Que parte de mim pode botar os outros na minha tormenta com intimidade, mil perguntas e abraços apertados, dançando com eles uma ciranda que atende aos meus caprichos? Que importância têm os caprichos deles nesta equação? Qual o salvo-conduto que a solteirice me dá? Que parte do outro é a expectativa que nele eu incuto e que parte não me diz absolutamente nenhum respeito? Melhor voltar à reclusão? Que parte de mim morreu e que parte está dormindo um sono profundo? Eu agora sou outra? Ou sou a mesma, ressignificando as coisas para que se tornem mais leves? Quando é que estaremos prontos e acabados para que os traumas anteriores não maculem a folha em branco que se nos apresenta? As folhas em branco que se nos apresentam todas de uma vez, mais de uma vez.
Por-se a serviço do desejo impõe um desprendimento que, às vezes, só mesmo botando a consciência já formatada de lado. E é mesmo possível e viável este descompromisso com as consequências sentimentais de ser desejante e objeto de desejo? Eu posso mesmo expatriar as responsabilidades emocionais que costumava ter para longe da vista? Só uma vez ou outra? Em nome de uma compensação histórica? Eu estou mesmo variando o investimento para reduzir o risco da operação? Ou estou diversificando as chances de enlouquecer? As pessoas riem. A verdade é que estou tão apavorada quanto elas. Com esta nova versão. Com os altos retornos. Com todos os riscos.
Abri uma fresta das portas e eles entraram. Inequívocos. Como uma manada de elefantes, pisoteando as minhas certezas, mesmo sem me fazer esquecê-las. E penso: não foi, justo isso, o que me fizeram para que eu me fechasse? Quão menos especial uma intimidade fica quando ela não é a única? Eu posso administrar esta situação, usando as algemas do medo de ser igual ao que me feriu? É isto então a liberdade? Eu não posso, eu não posso, eu não posso trair a minha liberdade com qualquer decisão a este respeito. Embora, às vezes, eu queira. É o vício falando outra vez? É sensatez? É absurdo? E vou andando de um canto a outro desta sala de estar dentro da minha cabeça e investigo, com o laissez-passer para fazer o que quiser bem guardado no bolso. Deixai passar, eu me digo. Solta tudo que te prende ou que tenha a ver com o medo e deixa de ser caduca. Tu viestes a este mundo sem coleira. É dentro deste grilo que saltita pra lá e pra cá que está o teu destino. Tudo é desiderando. As coisas serão como serão.


quinta-feira, 18 de abril de 2019

Efeitos colaterais

Amanhã de manhã bem cedo tua boca vai prender o filtro branco entre os lábios. A barba feita contornando o rosto, impregnada de toda a ansiedade do dia anterior. Cê vai me perder porque nem sabe o quanto pode me ganhar. Cê não vai abrir a guarda. Eu não vou confessar. Não era esse o jogo? Vou surtar sozinha. Em silêncio. Lembrando que podia ter sido diferente, igual a tantas coisas na vida. Mas sem ter muita certeza. Engole esse mal entendido mais uma vez como se não importasse. Vai endurecendo aos poucos. Não vai ser a primeira vez que a gente confunde orgulho e desinteresse. Esperando a resposta de uma mensagem que, se reparar bem, nunca foi enviada. Ficou pelas tabelas. Assimilamos com essa força magnética dos corações partidos, ora atrativa e ora repelente. No fim do dia vai ser de novo só você e esse monte de pensamentos profundos na cabeça, que ninguém acessa. Que cê não quer mais tentar explicar. Que parece inútil tentar resolver. Sei porque é assim comigo. Os caras ao teu redor jogando sinuca no bar, que não são "petistas" nem um pouco sensíveis, nunca vão entender. Quem puder te ver, vai te ver acender outro cigarro e se confundir no meio das pessoas. Ninguém vai suspeitar que no fim do dia esse aperto no peito te dói mais. Que o ar falta mais. Que o estômago reclama mais. Cê não vai deixar eles saberem. Cê vai pedir outra cerveja pra evitar os olhos de se cruzarem. Eu vou atravessar a rua, apressada no salto quinze. Ninguém vai prestar atenção. A gente não vai saber o que aconteceu depois de nada acontecer. Cê vai achar que vacilou. Eu também. Depois vou lembrar de ti com o corpo em guerra: coragem e sabotagem, efeitos colaterais. Essa melancolia de hormônio sintético e essa introspecção de uma hora pra outra. A nuvem cinza que se recolhe no peito. Metamorfose inversa, como uma borboleta que se fecha no casulo até ficar feia e tosca igual lagarta. Cê vai fumar mais um. Eu vou abrir a janela do carro, porque não consigo respirar direito só de me lembrar. Eu vou abrir a janela do carro. Mas não vou me abrir. O dia vai terminar igual a tantos outros. Não era esse o jogo? Cê vai suspirar fundo lembrando que eu fui embora, como quem perdoa o que eu não digo. Eu acelero. Eu tô fugindo. Da armadilha de repetir a história, de você e de mim.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Demônia

Dizem que as sereias são demônios marinhos. Não é engraçado!? Você me apresentou Nando Moreno e eu não gostei porque achei muito parecido com Eduardo Costa mas ainda assim, ou quem sabe por isso mesmo, outra vez eu segundei com Kafka reescrevendo o mito de Ulisses na cabeça, numa das minhas passagens literárias preferidas de todos os tempos: "Para se prevenir das sereias, Ulisses tampa as orelhas com cera e se faz prender ao mastro […] Ele confiava totalmente no punhado de cera, nas cordas que o prendiam, e no prazer inocente de confrontar as sereias, que possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto, que é o seu silêncio. Pode-se conceber, embora tal não aconteça, que alguém possa escapar de sua música, mas certamente não de seu silêncio [...]".
É segunda-feira e eu acordei no teu peito, mas antes do meio-dia eu percebi que você era o herói porque tinha escolhido não dar voz à sereia. E, sendo assim, a menos que uma outra casualidade tão enorme e pontual quanto a última nos acontecesse, não nos encontraríamos mais tão cedo como nas últimas duas noites. Embora conheçamos nossos nomes completos e eu saiba o teu endereço de cor. 
Nesta era de excesso, você me pôs num lugar de não-fala. Um exílio para desconfiar em silêncio, com progressão geométrica, da promessa de repetirmos tudo um pouco diferente daqui a sete anos. Tornando impossível que neste meio tempo eu lhe corrompa com a minha obsessão por falar a verdade, cooptar o mocinho para o meu time e consertá-lo no fundo do meu mar.
É mais ou menos como se, pondo cera nos ouvidos, você tivesse escolhido utilizar o que é feito para uma coisa para fazer outra. Um secador de cabelo para desembaçar o espelho do banheiro ou algo assim. Ter à mão uma sereia e escolher que ela não cante é um enigma que se desvenda fácil. De Édipo a Electra, passando pelas pessoas atrás destas janelas que se vê da janela de onde se vê toda a cidade no escuro da noite, todas as nossas tragédias são extremamente parecidas. E se é verdade que evitar que eu cante pode te poupar de algumas dores de cabeça, também preciso te lembrar que ninguém é capaz de se prevenir do impacto de uma sereia em silêncio.
Que será? Eu me pergunto e tua determinação ri dos meus encantos com a força de um soco na boca. Caso não durem mesmo mais que uma semana, sei que depois um de nós ainda vai lembrar que, mesmo quieta, eu sou demônia e capturei de perto um pouco do brilho do teu par de olhos pequeno.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Aviões de verdade

A flexão é um ato kamikaze. Você estica os cotovelos com os pés em posição de prancha ou joelhos apoiados e se projeta contra o chão com uma coragem absurda, confiando que os músculos dos braços darão conta de te botar para cima novamente, repetidas vezes. Porque dão. Eles sempre dão.
O movimento tonifica o corpo. Se você contrair o abdômen, melhor ainda. Quanto mais flexões você faz, mais fará da próxima vez. Mas precisa se dispor a ir e voltar do nível mais baixo que a gravidade permitir, de preferência sem soltar o peso todo, num mergulho contra o solo que adianta a cabeça muito para a frente das mãos. Dá um pouco de medo no início, mas passa. Depois da primeira vez só melhora, porque você adquire a autoconfiança de saber o que está fazendo e passa a fazer conscientemente. Às vezes sem querer fazer. Às vezes com os braços tremendo, como se tivessem medo de sair da inércia, a condição mais confortável. Às vezes você vai descansar exausto, com o rosto encostado no tatame, e tudo bem. Porque isso ajuda no processo de se dar conta de que envergará todo muitas vezes, mas não quebrará nunca.
Os ombros também precisam dar conta do recado, porque guardam uma das articulações fundamentais para que tudo aconteça. É preciso esquecer do quanto pesa. É preciso botar a matéria à disposição da metáfora. E se na gramática as palavras se contorcem em flexão para virarem outras no pretérito imperfeito, no futuro ou no presente e no imperativo, a verdade é que para fletir na vida é preciso confiar em si mesmo com toda a dedicação, de absolutamente todos os músculos. Inclusive do coração. Para fazer uma flexão que te torne mais forte com sucesso, você vai precisar de um corpo e de coragem para usá-lo para emergir.
A flexão é uma verdade que vem à tona. Você se reconhece humano e em constante progresso. A flexão exige força e, ao mesmo tempo, te faz cada vez mais forte. É como finalmente substituir aviões de papel por aviões de verdade.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Soterrar

Pra que endereço eu mando o faqueiro de prata e um cartão com o passe bem, muitas felicidades, que os filhos venham com saúde!? Como é que eu faço pra ser testemunha desse grandioso momento e, ao mesmo tempo, manter o sorriso na cara e os prazos em dia? Como é que eu vou lidar sozinha com esta merda? Pior: como é que eu vou lidar acompanhada com esta merda imensa, sem que ninguém perceba? Se eu ainda corro de medo de não estar pronta para a vida ao menor sinal de proximidade. O que que sobrou pra mim além deste orgulho grande, duro e indigesto, que não vai bem com feijão, com cerveja, com nada? Quantas camadas de lama grossa serão necessárias para soterrar mais esta? Que belo timing! Francamente, que belo timing. Como é que eu vou continuar sendo capaz de substituí-lo por alguém que vive de renda e nunca ouve Caetano? Eu vou lamber o chão de quantas praias paradisíacas, palácios e monumentos históricos até conseguir deixar de vez tudo pra lá? Quantas milhas eu vou peregrinar pra finalmente esquecer e me encontrar? Quão reclusa eu vou precisar ficar? Como expurgar estes demônios que agora cantam alto nos meus ouvidos? Quantas contas eu vou refazer sobre os preços que eu não pagaria para tê-lo por perto? Quando é que eu vou aprender a perder a competição do jogo do contente? Se eu tenho uma falta de talento nata para não ser honesta comigo mesma. Quando é que vai deixar de fazer diferença? Quando é que eu vou ouvir - e acreditar - na minha própria voz me explicando com toda a calma e paciência que agora sim, mocinha, veja bem, agora sim aquele tempo é final e definitivamente longe demais.