segunda-feira, 25 de maio de 2020

O tempo antes da vindima

Outro dia uma amiga foi brutalmente ferida de amor e senti um impulso de entrar no carro e ir correndo socorrê-la. Imediatamente eu quis curá-la. Express. Arrancar tudo de uma vez. Livrá-la de antemão de toda culpa. E oferecer vodka ou cachaça. E cachorro-quente. E já ir avisando e antevendo o vômito. Quis oferecer um colo. Acelerar o processo. Dar a ela uma sacudida. Gasolina e fósforo para queimar todas as coisas que lhe dessem na telha na frente da porta de casa. E o que mais ela sentisse que precisasse, eu tinha para compartilhar. Mas não podia sem um pedido de socorro alto e claro.
Quis escrever a respeito. Depois achei invasivo. Depois me dei conta de que podia falar daquela dor  porque era também um pouco minha. Como a vontade de sair logo daquela condição, a qualquer custo. De dar as voltas por cima e por baixo todas de uma vez. Eu conheci a vontade de chorar. E depois a de parar de chorar. E a de querer lustrar o orgulho com um pano bem limpo, vestir uma roupa nova e sair por aí, a fim de restabelecer a ordem natural de todas as coisas, caótica como ela só.
Ouvi paciente a versão completa. Aproveitei para tentar assimilar a ternura e a sensatez que ela tinha com aquilo, e que eu nunca tive, porque ela é mais doce e mais nobre que eu. E me dei conta de que eu não devia tentar arrancar isso dela. Devia deixá-la criar sua própria receita para sair daquele lamaçal.
Ainda assim, ofereci um lenço. Banho quente. Roupa limpa. Chá bem doce. Pouso lá em casa. A manga da minha camiseta, na altura do ombro, pra que ela encostasse o rosto e ficasse ali o tempo que fosse necessário, embalada como criança pequena, soluçando eventualmente. Aceita em todas as suas fragilidades. Ela não sabe, mas também cogitei abrir bem as janelas, pra deixar o ar entrar. Lavando assim nossas almas. Em silêncio. Limpando o caminho das pedras. Remendei em pensamento os nossos rasgos, com todo cuidado. Tricotei ligeira as saídas de praia e os cachecóis de lã para que pudéssemos ir, mundo afora, protegidas do clima e de todo o mal.
Nessa época, outra amiga um dia acordou e me disse que ia começar a ler Voltaire e os clássicos e parar de pentear os cabelos. Era como se dissesse: vou aproveitar o tempo antes da vindima para criar musculatura. Embora elas não soubessem, havia um elo universal entre as duas e seus processos. Era igualmente potente assistir à que se quebrou toda de uma vez levantar e a que, depois de tanta construção, ainda queria reforçar os fundamentos das suas verdades.
Não se diz a uma mulher brutalmente ferida que vai passar. Isso ela sabe. Fará coisas impensáveis pra que aconteça. Sei porque já estive lá. Porque acontece todo dia. Nos é exigido este renascer, que só acontece de dentro pra fora e no tempo sagrado dos nossos próprios relógios.

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