sexta-feira, 15 de maio de 2020

Eco [17]

- É óbvio que a tua leveza não se sustenta num compromisso... 
Arqueei as sobrancelhas e arregalei os olhos esperando que ela concluísse o raciocínio antes de começar a me defender.
- ...porque a intimidade acelera muito essa tua vontade horrenda de controle. Como da vez que tentou me ensinar a plantar e regar o meu próprio manjericão, lembra? É um exemplo bobo, mas era um momento meu, eu já sabia fazer aquilo ou pelo menos queria descobrir como fazer por mim mesma. Só que você é in-ca-paz de deixar as pessoas serem como são. Praticamente um imperador romano da convivência romântica. Eu não sei... eu francamente não sei pra onde foi toda aquela doçura de antes. É como se o passar do tempo tenha acordado em ti uma vontade de me consertar e expandir o território das tuas verdades.

Ela sorriu cínica, fazendo aspas com as mãos na palavra consertar. De um jeito que não deixava dúvidas de que, segundo as convicções dela, não se deve tentar consertar ninguém. Decisivamente, confessar tudo aquilo de uma vez parecia blindá-la um pouco do poder que eu vinha exercendo sobre ela. A verdade estava dita. Agora vinha o desafio.
Eu só assenti, meio envergonhado. Porque talvez, nem tão no fundo assim, a Laura tivesse razão. E ela era terrivelmente precisa nas palavras quando tinha razão. E era mesmo terrível ouvir verdades da boca dela naquele contexto. E pensar que fui eu que puxei o assunto, crente de que ela não concordaria comigo! Não lembro do que respondi depois, nem se respondi, mas tenho recordação de ter pensado a respeito em todos os inícios que se seguiram. Talvez tenha sido ali, naquela conversa, que eu comecei a fugir desse processo de não sustentar minha "leveza" em qualquer relacionamento, buscando sempre identificar o momento exato em que a melhor versão de mim se perde para esta outra que parece um imperador romano. E cortar tudo ali.
Hoje me ocorreu o que, naquele dia, eu poderia ter esclarecido à Laura para desfazer um pouco a minha imagem ditatorial na cabeça dela. Devia tê-la lembrado que tudo em mim sempre foi domínio público. De modo que o cara leve e despreocupado do início já era um perturbado, e é injusto insinuar que eu não tenha transparecido a minha loucura. Ela apenas não feria a Laura antes, e até aí, ponto pra mim. Pra mim, a quem nunca faltaram habilidades sociais. Eu sempre me reparti com as pessoas e isso significa sempre dar a elas todos os detalhes da minha personalidade, ao menor sinal de convívio. E, sim, eu sempre tive um ego do tamanho do mundo. Talvez essa certeza de mim implique uma facilidade para forjar a intimidade com alguém desde os primeiros tijolos. E quem sabe esta intimidade pretenda mesmo contaminar as pessoas com as minhas verdades, mas nem por isso eu merecesse ser tão duramente responsabilizado pela minha tentativa de persuasão.
A informação de que a minha leveza se despedaça neste processo de conviver a longo prazo mudou um pouco as coisas de figura, Laura. Nada mais foi igual pra mim depois daquela nossa conversa. Em jogos de verdade ou desafio, eu sempre provoquei as verdades. Talvez tenha estado preparado de menos para responder aos desafios.

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