quarta-feira, 17 de abril de 2024

Status

Neste mundo de obsolescências cuidadosamente programadas, por descuido eu sucumbi a um discurso de durabilidade. Nem os amores querem mais ser sólidos, mas ainda assim eu me vali deste pretexto como quem aposta na permanência. Tatuei o contorno de uma maçã mordida sobre superfície cintilante entre os dedos, atrás dos dorsos das mãos — das duas, porque não consigo segurar o trambolho direito com uma mão só. Faço questão de deixar claro que o tamanho deste é i-gual ao do anterior. E por isso “eu não me acostumaria com um menor, sabe?”. Repito feito um papagaio culpado o discurso da vendedora, sob os veementes protestos do meu dedo mindinho, que logo reclama do excesso de carga, e por isso reclama também a mão esquerda, como sua assistente. Veja bem, não é que eu quisesse um celular da moda, pensando bem acho tão ridículo dizer “da moda” quanto desfilar por aí com um telefone desse, acho melhor dizer: de última geração, com a maior potência, a maior memória e a maior tela, e o maior preço. Não é que eu tenha me detido por tempo suficiente nesta aspiração e por isso fizesse dela um sonho ou uma grande conquista. Antes o contrário. Este seria, na verdade, um desejo genuinamente incompatível com a modéstia nos gestos e nas intenções sobre a qual se ergueu e foi guiada a minha vida inteira. Até o dia de hoje. De repente lembrei que pra mim a ostentação era só uma denúncia da imensa carência de reconhecimento de status a que às vezes estamos submetidos. Ao que se somou a compreensão de que o status só tem gosto de status se sua fórmula for seguida à risca, com quem mais pode comprando e portando os últimos lançamentos de cada coisa lançada — este que talvez seja o pacto mais silencioso da estrutura do capitalismo. E quanto a nós, felizes os que conseguirem alcançar a Deusa Elite, que tudo pode consumir, pelo menos nos detalhes mais triviais e parceláveis. Tateando estas descobertas irrefutáveis, fui traçando pra mim ao longo dos anos a rota oposta. Acho muito chique ser modesta. Menos é mais. Pretensiosa, acho que em última análise sempre quis negar o próprio poder conferido ao status que vem das coisas. Sem me dar conta que talvez um dia eu pudesse ter sem querer ostentar, nem mesmo minimamente. Sem perceber que isso pudesse virar um tipo de fardo. E talvez justo aí, neste descolamento entre a convicção e a possibilidade, que reside a minha inquietação: de quantos em quantos “eu posso, então por que não?” descerei os níveis até os confins da mediocridade estética e do mau senso? A quantos símbolos de progresso uma pessoa se rende antes de perceber que compactuou com alguns costumes de atraso? Em quantos clubes indigestos entrarei silenciosamente sem precisar apresentar credenciais só porque estou com os sapatos certos? Que papel eu tenho agora nesse teatro do qual eu costumo zombar? O que é progresso e o que é excesso? Jurei pra mim que daria um tapa em quem primeiro me perguntasse o número ou os predicados do modelo, mas não honrei a palavra porque teria dado uns três tapas em menos de vinte e quatro horas.
O fato é que comprei um iphone. Desde então venho me recusando a escrever a palavra iPhone, grafada como ordena a marca, defendendo assim o último pilar moral que me restou antes de parcelar no carnê uma BMW conversível, ou quem sabe um Jeep Renegade, este outro signo da nossa era — capaz de transitar bem entre a figura do playboy sendo pretensamente educado pelo pai, que não lhe deu um carro mais importado, e um novo-quase-rico sem muito pedigree ou demasiada ambição. Iphone, então. Porque já me basta a subversão da convicção, não me permitirei subverter também a norma culta escrevendo uma maiúscula no meio da palavra (ainda menos com esse esforço descomunal na telona com caracteres especiais totalmente embaralhados para o meu costume no acentuar e pontuar as coisas) para me referir a um telefoninho afrescalhado. Que agora é meu. Diariamente. Convive comigo. Dorme lá em casa. Então é isso: depois de me debater em vão, como um peixe prestes a morrer numa faixa de areia muito específica entre um grande bloco de areia feito das classes ascendentes e um grandioso mar de uma elite engolidora de sentidos e significados, ou, para dar mais poder às palavras, depois de amanhecer macieira tendo adormecido bananeira, sucumbi. Eis-me aqui com este aparelho novo para o qual, obsoleta, eu nunca me programei ou preparei.

Gastei alguns mil pensamentos reais para descobrir o óbvio: sou atravessada por muitas questões só por tê-lo nas mãos, mas talvez seja só um telefone.