quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Epitáfio de indigente

"Gosto de você" é quase inexpressivo. A gente gosta de comida, de filme, de cor, não de gente. "Dependo de você", por outro lado, nem consigo pronunciar, tendo ainda casa materna, comida na mesa, conta bancária de quatro dígitos e vivendo no século XXI. "Venero você" esbarra no meu feminismo. Lá sou eu mulher de venerar alguém? Falta-me o senso hierárquico, o temor reverencial para com a autoridade do outro. "Adoro você" tem uma direção: a santidade. Deus que me livre de querer beatificar um relacionamento, qualquer que seja ele. "Simpatizo com você"? Casimiro que me perdoe, mas também não dá conta.
Atravesso essa dificuldade com paixões arrebatadoras: tudo parece tão insuficiente para expressar. E "amo você" - representação máxima do que é sentir muito, para uma pessoa que não se detém na reflexão - pressupõe um peso. Há tudo que já foi escrito lido dito cantado dirigido interpretado antes sobre o amor. E a referência filial, certeira desde que nascemos. E todas as vezes que eu mesma já disse e escrevi amar antes. Em absoluto, nenhuma nunca se confunde.
O que eu sinto é então um epitáfio de indigente. Que diz muito, sem palavra alguma. Careço de habilidade para redigir os rótulos. Todas as vezes em que fica difícil me despedir por falta de predicado para o que está sendo para mim é porque estou, ao lado do outro, inquietantemente em minha própria companhia.
Confundi-lo comigo é o melhor elogio que nos posso fazer. 

domingo, 27 de setembro de 2015

Eco

A tentativa de reviver uma memória não passa de um eco e eu sei disso. Não é uma segunda resposta aos nossos dilemas pessoais, proferida pelo autor, a amante quase esquecida ou qualquer pessoa que tenha proporcionado a sensação original, mas uma repetição mecânica, em condições específicas, do que já foi dito, lido ou vivido algum dia, que dessa vez poderá ser interpretado de modo diferente. Um sentido para o presente, diretamente de um passado sobre o qual, enquanto estava sendo, não se precisava pensar muito a respeito.
As memórias servem para reorganizar o que passou de um modo nem sempre conforme e nem sempre cronológico. Por sorte, sempre haverá o recurso de olhar para trás e, numa esperança enfadonha que nos foi legada pelo empirismo, vasculhar a recordação em busca de alguma experiência que possa servir para influenciar a tomada de decisões no tempo presente. Há quem diga que as coisas que vivenciamos nos impulsionam, mesmo de maneira tácita e sem reflexões manifestas, às escolhas. A maioria de nós nunca terá certeza.
Eu posso fingir que não o quanto quiser, Laura, mas eu lembro com exatidão das nossas idas ao terraço do teu prédio. Os teus cabelos desgrenhados e escuros caídos sobre os ombros e as tuas perguntas malucas sobre as estrelas, o horóscopo e a minha disposição para insistir. Como se eu fosse um cientista maluco, meio cigano, capaz de te dar uma resposta precisa sobre o futuro. Como se desse para adivinhar o momento em que o tédio nos bateria à porta, para fugir primeiro, para não sofrer ou vitimizar quando a euforia acabasse. Tu olhavas para os lados, trêfega, debruçada no parapeito, procurando algo que pudesse te surpreender na cidade fria e escurecida. Um carro em alta velocidade, uma árvore antiga, quem sabe um mendigo ou um casal sexagenário. E eu só podia assistir ao espetáculo da tua frivolidade intensa e profunda – ninguém mais sabe ser frívola, intensa e profunda ao mesmo tempo como tu.
Falseavas a certeza de que aquele momento estava sendo infinito na minha companhia, fingindo ignorar a minha presença, sem me olhar nos olhos, para aquele instante não ser derruído por uma interrupção inesperada de realidade: nós dois, sempre tão sozinhos, ensaiando um par.
E então tu sorrias calma, sempre um pouco inquieta e um pouco confusa, sem se fazer entender. A mão tocava a minha e era familiar a sensação universal de estar consternado por aquele detalhe, aquele momento no terraço de um prédio velho do sul do mundo. Um terraço que, sozinho, não teria representado coisa alguma. Eu até hoje não entendo como aprendias uma palavra em libras, um símbolo em japonês, um poema imenso inteiro de cor, uma maneira sempre nova de me contar que estava sendo leve e tu desejavas estar ali, ao meu lado, até quando parecia irreal. E esquecias tão rápido, que se te pedia para repetir, já não sabias. Como que para dar espaço a uma surpresa nova. 
Aquilo, aquela pequena referência, era sempre uma verdade em ti. Uma verdade que, sem culpa nenhuma, nós sabíamos que acabava no capítulo seguinte. Fingias que a vida era descomplicada, sem parar de repetir todas aquelas coisas poéticas e dolorosas que já fomos e vivemos e nos fizeram chegar até ali, subir a escada precária de ferro, sujar as mãos, enferrujar o teu vestido rendado naquela aventura delicada e improvável.
Enlouquecido e entusiasmado, Laura, posso ser esmagado pela rotina, fatigado pelo álcool, embebido pela ternura de novos olhos castanhos, e jamais me desacompanha este rastro de te ler pela primeira vez, mais que uma vez e de diferentes e ternas formas, naquele terraço.
Eu só queria estar onde estivesse essa calma que de súbito se esvai agora, na forma de uma taquicardia, adivinhando este céu chuvoso de setembro da penumbra do meu quarto. Vou celebrando o que éramos, como se ter vivido aqueles momentos ainda fizesse parte do que sou agora.
Não me confesso nostálgico, Laura. Não posso generalizar esta sensação que só tu e os livros me causam. Repito o teu nome sem pensar muito a respeito, enquanto escrevo. Não quero a culpa de não te repetir concretamente, então te chamo, pra ver se tu vens, se tu voltas. Se ressurges, sempre inédita, como antes.
Depois de duas semanas sentando todos os dias na cadeira de frente para a escrivaninha e as janelas de madeira de moldura branca, sem sucesso, e finalmente agora, conseguindo confessar, como se alguém um dia pudesse ler, parece que pode funcionar: talvez eu venha derretendo as minhas geleiras.
Mais do que para refletir sobre tudo que já vivi, mudei de apartamento para me sentir capaz de mudar minha vida. Para me sentir capaz de reescrevê-la e inspirar alguma identificação. Em ti, por ti, quem sabe. Há uma espécie de matéria que constitui todos os românticos, neste território límbico chamado fim de um domingo.
Minutos antes fechei o livro com a sensação de abandono, depois de terminá-lo. Quantos destes já se foram? Dou conta de elencar, caso me esforce, a dúzia de clássicos que qualquer um com pouca presença de espírito teria orgulho de se vangloriar que leu, mas, no geral, não sei quantos deles – desde os mais desimportantes – já me passaram pelas mãos. Quantos já me agitaram os instintos e entre uma página e outra fizeram com que eu pensasse melhor sobre qualquer certeza que parecia absoluta, depois foram esquecidos? Não é possível reviver o ineditismo de um livro. Muito provavelmente, ainda que o releia o leitor não experimentará as mesmas sensações da primeira vez e se surpreenderá com trechos novos, antes despercebidos. Nunca a mesma surpresa novamente. Depois da primeira leitura, cada experiência sensorial que foi provocada não ressurge senão como um eco.
E o que eu digo sobre memórias e ecos, Laura, na verdade não passa de uma especulação. Eu quero dizer que reverberas no meu destino. Eu especulo o que continuas sendo em mim depois de nos despedirmos, mas não cravo resposta. Então dialogo contigo à distância, em segredo, em silêncio, enquanto olho janela afora como se estivesse, também eu, olhando para o fundo dos teus olhos escuros, enquanto olhas para o mundo debruçada no parapeito daquele terraço.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Ninguém se salva de si

Vale mais o que fazemos do que nos fizeram do que o que nos fizeram. Eu digo isso para parafrasear Sartre irresponsavelmente, é claro, mas muito mais para me catequizar no acerto.
É que eu tenho percebido nas pequenas coisas, como ir almoçar sozinha e não sentir solidão alguma na minha companhia, que as coisas podem ser boas apesar de. Encho o prato de tomate, cenoura e alface e fico contente ainda que ninguém aplauda. Sento de costas para quem chega, não atento para, não desperto ou provoco um olhar sequer, senão do garçom e dos senhores do caixa, porque lhes é ofício. E mesmo quando passo despercebida tenho estado em paz, a alma sorrindo. Sem deixar de aproveitar o que me é dado.
Bate um vento, a basculante fecha num susto. Eu bato os talheres, a criança ao lado chora, o velho esboça um bravejo. Aquilo, é claro, toca cada um de um jeito. Como rigorosamente tudo no mundo.
É por isso que não vale deixar o mar revolto de fora perturbar a maré calma de dentro. No fim do dia é cada um por si. Mesmo para quem dorme com as pernas entrelaçadas, no fim do dia é cada qual com seu cada qual. Se eu morresse amanhã - e os deuses que me livrem, porque sabem que quero viver mais umas oito décadas - uma lição bonita eu já teria aprendido: já que ninguém se salva de si, é útil inventar, a cada dia, um jeito bom de conviver consigo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Tramear


Estendo a mão e toco. A última falange de um dedo, os outros, as outras, o dorso, a palma, os movimentos suaves. O toque é um mergulho e aproveito a lentidão do sono para também me esquecer de respirar. Eu tão invasiva e tão aberta e terna, encho os pulmões, estendo a mão e toco. Um toque de camaleoa, para decorar a cor. Elogiá-la em silêncio. Para confirmar a mesma temperatura: a pele quente como o primeiro raio de sol da manhã. Para tramear os cabelos e imitar o cheiro... Para despir um sonho bom.
O toque se avizinha e me adivinha. Sim, o habitat me convida. É em segundos como este que planejo cuidadosamente os discursos e ensaio um tom de surpresa para quando forem repetidos. Eu quero me confundir sempre ali, mas não confesso verbalmente e nem preciso. As referências que o digam por mim.
Permito e aceito e desejo que os meus frontes de guerra sejam transpostos de um jeito arrasadoramente doce. Incansavelmente adorável. Desarmo as defesas e deixo o desvario ir se acomodando, penetrado no meu tom de independência e liberdade, que já nem faz mais sentido, já que, ao que parece, agora a vida depende daquele gesto. Constante, certeiro e retilíneo. Se eu não tocar, não serei eu, tão uniforme, sendo invadida. Não serei eu.
Quando dei para admitir, um impulso incontrolável e difuso já tinha se listrado em mim. Foi como ser feliz de novo.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Balé


Dobro as pernas como borboleta, a espinha ereta, o olhar fixo. O cabelo solto, as mãos sem precisão. Faz frio, eu aqueço para um balé de perfeições insuspeitadas. A boca entreaberta suplicando o sopro de vida. Não me esforço para disfarçar o encantamento. Cada detalhe atordoa. Não sei se os olhares se cruzam ou se os tatos se tocam, quando sou toda audição. O som distrai e invade. É um consolo e uma descoberta: a cabeça acenando estranho, em sincronia, em um tremelique lento e ritmado. Essa ciranda não para e de repente acontece. Ele se conecta com algo que há de profundo em mim e que agora, uma vez mais, eu conheço. Vai valsando para dentro e solitário enquanto belisca as cordas. O som saindo, ensurdecedor, como que por si, o formato do rosto e os cabelos desalinhados como o meu coração costuma estar. Uma coincidência, já não estou mais ali. A gente agora dança em segredo nos grandes salões, mas ninguém vê. Ele inventa um jeito de estar girando que acomoda o meu desejo anti-intuitivo e tortura os meus acasos. Mão na cintura, a outra em riste. Aquilo tudo toca, dá uma vertigem. Só o que temos é aquele instante. O casamento arranjado dá mais romantismo para a fuga, sempre se lê a respeito. Ninguém suspeita, mas é um encontro de almas. Praticamente em segredo, sou transportada para outras eras. Convivo em par com todos os amantes do mundo. Olho fundo nos olhos e pertenço àquele lugar e àquele momento como pertencem, mornas, as lembranças eventuais de uma saudade esquecida. Aplaudo o que acabamos de ser. Ele se curva para agradecer, demorado, e não se sabe se está contente ou se não se envaidece com a aprovação. Mas sorrimos. Como se sorrir na companhia reforçasse uma intimidade que é instantânea. Eu sei e ele sabe que o amor à arte é um narcisismo, já que é sempre sobre nós que ela diz algo e é sempre, involuntariamente, sobre o que nos diz, em particular. Eu vou embora, fugidia, quase sem forças para encontrá-lo, distante, nos sonhos, sem nunca mais vê-lo. Dorme ali um romance escondido que não se desvela, uma tórrida-ingênua-romântica-ridiculamente-pretensiosa paixão que não se leva a efeito como rezam os manuais. Levo comigo uma paz de espírito que me adormece tranquila e me atiça para a vida. Vão se esvaindo as pontes, enquanto caminhamos sobre elas. Não há retorno possível, por isso é que estes momentos são raros. Se parar para pensar, uma vida nunca cabe inteiramente na outra. Mas sobra e há - que bom que há - o assombro, uma vontade, o balé, a valsa, uma certeza. E o intraduzível.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Como cantiga

Hoje eu só queria chorar a tua dor e te perdoar por todas as minhas incompreensões. Ficar em posição fetal, calada, compadecendo de ti em segredo e te oferecendo a minha sanidade diante do mundo. Dizendo, como cantiga pra ninar a criança, por uma metáfora, que ninguém merece ser punido por parecer frágil. Que ninguém merece parecer frágil por amar demais e estar perto, e a gente sabe disso. Eu só queria que o meu asco não fosse dúvida, que a minha surpresa não fosse pavor, que o meu pavor não fosse medo, que o meu medo não fosse repulsa. Que a minha repulsa não tivesse motivo pra se repetir. Que a vida te fosse diferente, nesse particular, porque você merece. E porque não merece. Tomara que saiba. Eu rezo aos deuses que saiba.
Hoje eu só queria purgar teu desconsolo e a tua lembrança e te livrar do peso sangrando contigo, em silêncio, num abraço apertado sem palavra alguma.
Hoje eu só queria chorar a tua dor.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Inconfissões

Gargalho jogando a cabeça pra trás, como a vó Cecília, e acho uma delícia. Não gosto de usar ponto de exclamação quando a frase termina com as letras I ou L. Nunca assisti a um filme completo da trilogia Star Wars, porque sinto sono. Sou hipocondríaca, embora deteste tomar remédios. Quando pinto as unhas de cores que não as quentes, parece-me que estão sempre mal feitas. No dia seguinte ao de uma noitada de salto alto, o pé calejado é um troféu contra o piso gelado. Adio conversas ao telefone enquanto tenho outras tarefas possíveis. Quando eu durmo de bruços, quase sempre ergo as pernas do joelho pra baixo. Invariavelmente, eu ronco. Meu cabelo cai mais do que é normal. Contabilizo derrotas na esperança de me tornar invencível. Prefiro me render e gostar de personagens egocêntricos do que detestá-los porque me enxergo neles. Também por isso adoro os vilões. Conservo um tom de empáfia todo especial pra quando me sinto ameaçada ou pra revidar quando ralham comigo sem necessidade. Às vezes, ensaio diálogos em frente ao espelho mesmo sabendo que o interlocutor não vai seguir o roteiro. E, finalmente, tenho um estilo de vida onde todas essas assertivas estão contidas.
Há muitas coisas sobre mim que, por um motivo ou por outro, não confesso pra início de conversa, em entrevistas de emprego ou na fila do banco. Não porque as rejeito segundo os padrões éticos, nem porque não me orgulho delas, mas porque não quero ser desmascarada com idiossincrasias tão banais e inexplicáveis, até mesmo pra mim. Só quando alguém percebe é que vem o confronto: eu sou! Estou sendo idiossincraticamente banal. A gargalhada da vó Cecília, a paranoia com a pontuação, o ronco.
Sem me esforçar ainda sinto o cheiro, de encrenca, e reprovo o gosto. Sem muito esforço, percebo que nada será como antes e ainda não sei se realmente comemoro ou lamento a máxima. A peculiaridade do outro soca na cara de quem chega, produto de tudo que ele é e viveu, e sob pena de ser injusto a gente precisa olhar, quando menos espera, pro próprio rabo em vez de apontar o dedo. Pro quanto a nossa singularidade nos é cara, ainda que ela confronte ou agrida a do outro. Precisa refletir quão elásticas não devem ou devem ser as concessões pra possibilitar a convivência.
No cinema, protagonista esbarra em alguém e aquele momento sutil de depois que os primeiros livros foram recolhidos do chão determina o felizes para sempre. Na vida real, a gente se depara com uma porção de inconfissões, depois do primeiro capítulo. Todas fazem parte de um todo que podemos tranquilamente desgostar e largar, porque não nos é cópia fiel. Ou usar de antítese.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

No que é essencial

Quando eu espero o dia seguinte chegar pra revidar uma ofensa sóbria do impulso, sou ela. Quando eu ergo a cabeça, altiva, depois de uma ocasião em que o caráter de alguém contrasta com o meu, sou ele. Quando eu me sinto nascida para o que faço, sou ela. Quando o meu humor é ágil e perspicaz, sou ele. Quando defendo algo em que acredito, sou ela. Quando defendo alguém em que acredito, sou ele. Quando eu ponho os pingos nos is, sou ela. Quando sou generosa e estendo a mão, sou ele. Quando dou o braço a torcer porque prefiro estar em paz do que ter razão, sou ela. Quando cumpro à risca uma promessa, sou ele. Quando eu me mantenho forte em nome do amor que sinto por alguém, sou ela. Quando me faltam palavras para dizer meu amor e eu o traduzo com gestos, sou ele.
Quando sou eu, sou sempre ambos. Meus pais fizeram por mim o que de melhor poderiam: deixaram que eu tivesse os meus próprios defeitos. No que é essencial, imprimiram-se em mim.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Sorri e vive

Um pragmático age, refreia e espera o confete. Sua racionalidade coage e manipula a realidade para que caiba em uma premissa da física, uma regra geral, uma verdade, um preceito lógico e moral. Um pragmático se preocupa com o que vai parecer, certo e errado como adversários. O artista só aparece e atropela.
Um artista não pede licença para fazer suas escolhas. Ninguém vive a dor e a delícia por ele. E ele não mede a dor de antemão. Para um artista, a aprovação alheia é, no mais das vezes, apenas a aprovação alheia. Boa, mas prescindível. O artista pode errar cem vezes, pois se perdoará, insistindo cento e uma.
Um pragmático não se converte em artista da noite para o dia. Não se aprende. Um artista se permite, e permitir-se é sempre um risco. Requer coragem. A arte é, por excelência. O pragmático tentará dissecar a alma humana, enquanto um artista a reflete e toca. O toque é lento, fundo, raro, intenso, imediato. O pragmático se debate, porque não compreende - sobretudo não compreende, embora demasiado tente - a complexidade. Um artista também não, mas se conforma. Faz parte. Sabe sempre que tudo passa, e um carrossel passa, repetidamente, pelo mesmo lugar, e a criança não sorri menos, apenas solta os braços e sente que voa.
O artista vive lutos excruciantes e aprende com eles, mas em pouco tempo os pesos não pesam mais. O pragmático se concentra no fardo, até se confundir com ele. Suas memórias repetem os desacertos, preocupa-se com os mecanismos. O artista só engrena, samba, empresta e doa. Um pragmático cobra caro. Um pragmático nunca trombará com um artista sem repreendê-lo.
O artista provoca um riso constante e o mundo enternece com a cara pintada e bendita. Um pragmático pragueja. O pragmático espera que o amor encaixe, feito tetris. O artista, inteiro, transborda e pede mais.
Mãos dadas com a intensidade, abre-se o mundo, levitam os caminhos. O artista desfila na avenida da vida, braços abertos entoando a canção, o coração repleto. E o pragmático tenta, em vão, compreender este mistério. O artista, não. Sorri e vive.